quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Vale a pena reflectir nisto---texto enviado por Márcia Cristina Hungerbühler via «Facebook»"!

A queda do Muro de Berlim e o fim do campo socialista decretaram o término do longo período inaugurado com a revolução russa de 1917 e do socialismo do século XX.
O socialismo, que havia passado a, pela primeira vez, fazer parte da atualidade histórica da humanidade, praticamente desapareceu da agenda contemporânea, há duas décadas.

A China optou por uma via de economia de mercado, Cuba tratou de se defender de retrocessos ingressando a seu “período especial”, o Fórum Social Mundial surgiu para lutar contra o neoliberalismo.
Essa viragem histórica – acompanhada pela passagem de um ciclo longo expansivo a um recessivo da economia capitalista, de um modelo regulador a um modelo neoliberal, - representou, ao mesmo tempo, a transição de um mundo bipolar a um mundo unipolar sob hegemonia imperial norte-americana.

Mudanças todas de carácter regressivo, que alteraram de forma radical a correlação de forças mundial a favor das forças conservadoras.

Esgotava-se um modelo de socialismo, que se caracterizou por promover a estatização dos meios de produção, a partir da expropriação da burguesia privada, e não da socialização dos meios de produção, produzindo uma imensa burocracia que dirigia os Estados de economia centralmente planificada.

O seu esgotamento se deu tanto pela falta de democracia e de participação política dos trabalhadores, como pela falta de dinamismo económico, que os relegou a não superar os ritmos de desenvolvimento econômico do capitalismo, como a depender das economias capitalistas, de forma subordinada.

Nunca um sistema daquela dimensão se havia desmoronado por um processo de auto degeneração, a ponto de praticamente não apresentar nenhum tipo de resistência interna, adaptando-se de forma suave à restauração do capitalismo nos seus territórios.

O que revelava os efeitos desagregadores que a ideologia ocidental tinha tido sobre o sistema, especialmente sobre seus estratos dirigentes, levando ao que os próprios ideólogos norte-americanos não esperavam – sua autodissolução.

O modelo do socialismo do século XX foi um modelo de socialismo de Estado – como alguns autores o caracterizaram. Buscou, através da acção determinante do novo Estado, o apoio para tentar recuperar a distância em relação ao capitalismo ocidental, decorrente das rupturas com esse sistemas terem se dado na periferia atrasada e não no centro do sistema, como previa Marx.

Para Lenine tratava-se apenas de uma mudança temporária de roteiro, até que a revolução em um país da Europa ocidental pudesse resgatar a Rússia do seu atraso.
O fracasso da revolução alemã – o país em que mais se condensavam as contradições depois da sua derrota na primeira guerra – praticamente condenou a Revolução Russa ao isolamento.
A partir daí, as rupturas seguintes se deram na direção oposta, da periferia profunda – China, Vietname, Cuba.

Nas palavras de Lenine, era mais fácil tomar o poder nos países mais atrasados, mas sumamente mais difícil construir o socialismo.

Reduzida ao seu isolamento, a Rússia optou pelo “socialismo num só país”, em um país atrasado, afectado pelo cerco dos países ocidentais, pela guerra civil interna, posteriormente pela invasão alemã.

O modelo estatal foi uma decorrência disso, de buscar uma acumulação socialista acelerada, que dificultasse o bloqueio ocidental contra a URSS.

Stalin optou pela expropriação maciça dos camponeses, que permitiu a industrialização acelerada dos anos 30 – e propiciou as condições de resistência e derrota diante do poderoso exército alemão – mas à custa da ferida agrária de que nunca se libertaria a URSS até seu final, e da destruição da democracia interna no partido.

O socialismo se reactualiza, pelas próprias mazelas do capitalismo, porque o socialismo é o anticapitalismo, a incorporação dos avanços económicos, mas em um outro tipo de sociedade, que nega o caráter discriminatório e injusto do capitalismo, negando-o e superando-o numa sociedade solidária.

Enquanto houver capitalismo, haverá, mesmo que embrionariamente, um projeto socialista, que sempre precisa ser recriado, renovado, a partir dos balanços do capitalismo e do socialismo existentes

O socialismo do século XXI, para chegar a existir, tem que partir do balanço de conquistas e erros do socialismo do século XX, se não quiser repetir sua trajetória.



Postado por Emir Sader

"Magritte..."


... "le magicien"

"Ooops!...Lá Se Vai A Década!..."


Aquela senhora de que falo mais abaixo, a tal Pluckett, terá lido, por exemplo, "Watson Was a Woman" de Rex Stout?

[Falo??... Oh! Diabo! Eu disse: "Falo"??!...

Oops! Lá se vai a década!]

"«No Sex, Please, We're Portuguese» ou «Casamentos Gay, NUNCA, «óviram»?..."

A propósito da 'entrada' imediatamente a seguir:

Cá para mim, o problema não é o casamento entre pessoas do mesmo sexo; o problema começa a ser o do casamento entre pessoas mas é do mesmo... século!

É que há por aí tanta gente que, sem dar por isso, passa a vida a enganar-se de século que temo seriamente que daí possam resultar incompatibilidades graves e consequências eventualmente irreversíveis na formação da identidade das crianças a adoptar por casais "temporalmente disfuncionais".

Agora a sério, falando de casamentos entre pessoas do mesmo sexo: vocês já me viram bem o escândalo que é o arranjinho [aquilo, cá para mim, é lésbico, é... 'lesbice'! Só pode!] entre aquelas duas, a Sociedade Portuguesa e aquela 'amiguinha' dela, a Igreja Católica??

Duas mulheres muito agarradinhas uma à outra em plena História, "Ai-filha-para-aqui-ai-querida-para-acolá"??!!...

Mete nojo, não é?

Por essas e por outras é que eu sou contra essa pouca-vergonhice toda!
Meu rico Cavaco!

Oh! Filho! Tu "impicha-me" essa coisa, como se diz na América onde ainda há algum pudor e alguma vergonha!

[Tirando a Califórnia, claro!...]


Mas "impicha" mesmo, "óviste"?...

"Ter Um Corpo [E, Ainda Por Cima, Com Um Sexo!] É Tão Grosseiro, Tão Invasivo, Tão Inconveniente, Tão... Tão... PRIMÁRIO, Não É?..."


Do "Correio-da-Manhã" de 15.01.10:

1º Página 30: "Casamento gay belisca a qualidade da democracia".

2º Página 32: "Empregada de café arrisca pena de três meses: Pode ser presa por usar fio dental"

3º Página 40: "Piada gay trava segundo Sherlock Holmes"

"Robert Downey Jr. ... insinuou no programa de David Letterman que a famosa personagem de Arthur Conan Doyle teria uma relação homossexual com Watson.

Andrea Pluckett, actual detentora dos direitos sobre 'Holmes', ficou indignada com o comentário e já ameaçou retirar permissão para usar as personagens em novas aventuras cinematográficas caso Downey Jr. volte a questionar a sexualidade do detective britânico".

Tudo isto no mesma edição de um só jornal de um único dia!

MEU DEUS! TER-ME-EI ENGANADO DE SÉCULO??!!


[Imagem 'gentilmente cedida' por usaconfidential.files.woldpress.com]

"Bebo, não pago e não tenho medo de ninguém!..."


Leio numa coisa dobrada ao meio chamada "Correio da Manhã" [que me garantem ser um jornal] esta coisinha absolutamente deliciosa.

[Eu transcrevo para quem não conhece o tal "Correio", não se preocupem!]

Cá vai, então:

"As autoridades inglesas consideraram José Sócrates suspeito no caso Freeport e pediram para ver as contas bancárias do primeiro-ministro. O pedido foi recusado." [Sublinhado meu]

Não sei por quê, ao ler isto, ocorreu-me, de repente, 'aquela' da guerra do Solnado que dizia:

"Estava eu a falar com o capitão do inimigo, entra um soldado a correr, muito excitado:

---Meu capitão! Fiz um prisioneiro!
---"Onde é que ele 'tá?
---'Nã' quis 'viri'!..."

E concluia o 'soldado' Solnado:
"Na guerra há prisioneiros, assim: nhurras..."

E, agora, acrescento eu: "Graças a Deus que a guerra acabou!!!...

E dizem vocês [todos três que me lêem, em coro] aliviadíssimos-da-silva e [se possível...] com vózinha meio abichanada e os olhinhos piedosamente postos em alvo, como os anjinhos na missinha de Domingo:

GRAÇAS A DEUS!!

[Já agora, só uma dúvida: de onde será primeiro-ministro este tal Chico Aristóteles ou lá como é que ele se chama que assim consegue com tanta facilidade e jeitinho "dar a volta" aos diligentíssimos e mais-que-famosos bófias da Inglândia?

Do País do Homem Invisível?
Da terra do Mandrake, o mágico?

...Ou da vila onde nasceu o... "Bebo-não-pago-e-não-tenho-medo-de-ninguém", mais conhecido pelo "Chuck Connors do Casal Ventoso"?...
Ah! Deve ser isso, deve!...]


[Imagem 'gentilmente cedida' por harakabaraka.com]

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

"Mais do mesmo... vindo dos mesmos..."


Num artigo do "Público" de hoje, vem o embaixador de Israel em Portugal afirmar, a dado passo, expressamente o seguinte---e cito: "A doença do anti-semitismo está à nossa volta e tem vindo a aumentar nos últimos anos".

E acrescenta, logo a seguir: "A deslegitimação de Isreal é a sua moderna expressão".

Ora, há um equívoco, no mínimo, potencial muito grave nesta formulação que confunde, perigosa e a meu ver, nada inocentemente, anti-semitismo e oposição de ordem política ou, "simplesmente", ética e humanitária ao modo como o estado de Isreal gere topicamente a sua acção no Médio Oriente.

O crime e a brutalidade militar sistemáticos [sistémicos!] e até tristemente 'estratégicos' e contínuos são, com efeito, para qualquer indivíduo minimamente bem-formado e defensor de valores universais de humanismo, argumentos mais do que suficientes para pôr, muito claramente, em causa os fundamentos éticos e de natureza especificamente humana sobre os quais assenta um estado nacional que, muito mais do que um país, se tornou já, hoje um verdadeiro reduto fortificado e um veículo militarmente poderosíssimo de expansão cega e a qualquer custo [os famigerados "colonatos" basteriam para atestá-lo] assim como de opressão---senão mesmo de tendencial exermínio---de todas as formas de vida, designadamente humana, em seu redor.

Isto, esta justíssima indignação e esta escandalizada repulsa perante um comportamento brutalmente expansionista e implacavelmente opressor dos povos em volta levanta, queiram-no ou não aqueles que com ele se mostram concordes, graves problemas de legitimidade que, mesmo admitindo que comecem por ser "apenas" de ordem moral, humanitária, civilizacional e ética e não especificamente política, acabam, inevitavelmente, por repercutir e, de modo muito sério e seriamente penalizador, no domínio específico do político.

Enquanto apoiante assumido e confesso---orgulhoso, mesmo---deste posicionamento de firme e incondicional repulsa e/ou activa rejeição relativamente às políticas expansionistas e brutalmente militaristas; aos comportamentos profundamente desumanos e, sob muitos aspectos, demonstravelmente incivilizados [in-civilizados] do estado de Israel, não tenho alternativa a considerar extremamente infeliz porque, no mínimo, objectivamente mistificadora a confusão que se pretende ver estabelecida entre anti-semitismo e isso que, mais do que um qualquer direito que, ainda que legítimo, se pode exercer ou não, configura um verdadeiro dever e um imperativo genuíno de consciência, impossível de não ser sentido por qualquer indivíduo minimamente consciente, responsável e civilizado, independentemente das suas ideias políticas, da sua raça ou da sua nacionalidade.

Choca-me muito sinceramente que um jornal que, mesmo quando dele muitas vezes discordo, hasbitualmente respeito pela dignidade com que, em geral, trata os diversos tópicos da realidade contemporânea se preste a servir de veículo dócil e acrítico para o que, de facto, não ultrapassa o plano da mera propaganda e do simples marketing político, em claro desrespeito por milhares de seres humanos---todo um povo, de facto---sem voz que, se a tivesse, nos daria seguramente conta daquilo que falta ao marketing e à simples propaganda---o reverso, bem mais negro e arrepiante, de todos os marketings e de qualquer propaganda.

"Le Déserteur" de Boris Vian


Foi um texto que acabou, algures no tempo, por se me 'colar' definitivamente à memória, o poema que mais vezes declamei, sobretudo em voz baixa, para mim [às vezes sem ter sequer a noção clara de que o tinha começado a fazer] em tempos---num tempo particular e íntimo que, por uma razão qualquer, estes últimos dias me trouxeram, de novo, quase integralmente revivido, ao espírito.

Recordo-me de ter chegado a Amsterdão num dia gélido de inverno, completamente desorientado pela visão ominipresente, obsessiva, da neve e pela sucessão de escalas e imediatas repartidas sem destino, inteiramente ao sabor de um verdadeiro caos de informações contraditórias de pura circunstância ["Não pares em França, tenta a Holanda!" "Aqui na Bélgica é difícil que te legalizes: tenta a Suécia!" ou até: "Eu, se fosse a ti, tentava mas era o Chile!"---um Chile onde, aliás, escassos meses mais tarde, conduzida por uma sinistra personagem de Inquisidor "doublé de" "Mussolini Subtropical" cujo nome é indigno de ser expressamente mencionado, uma verdadeira tempestade de crimes e abjecções indizíveis, havia de seguir-se ao sangrento derrube de Allende e do metódico assassínio de quantos tiveram a veleidade de segui-lo na utópica aventura por ele, pouco antes, esperançosamente iniciada].

Recordo-me de ir de porta em porta numa Amsterdão completamente gelada e persistentemente 'crepuscular'---levei um dias inteiro a deambular por ali, planta da cidade em punho, procurando o contacto cujo nome levava, no meio de uma babel de vozes cujo sentido---pela primeira vez, desde que partira uma semana antes, de Portugal---me escapava por completo---e de, de repente, uma porta se ter aberto na velha Atjejstraat [só "Atjejstraats eram duas, a "eerste" e a "tweede"...] e alguém me ter finalmente acolhido com algo mais do que a fria e polida indiferença germânica que fora até aí presença constante desde que desembarcara, para me dizer: "É aqui, sim! Podes entrar!"

Recordo-me de uma casa enorme, um de caos indescritível de livros, discos e cartazes [cartazes da China de Mao, do MPLA---"Koffee voor Nederland, bloed van Angola", dizia um deles]---um comunitário de jovens estudantes e trabalhadores---da Catherine, da Irene, do Engelhardt e de um modo muito particular, do Mark, que, com uma guitarra e uma boa vontade verdadeiramente comovente pela genuína marca de obstinadamente muda cumplicidade mas, também, de pura humanidade que trazia consigo e me era especialmente dirigida, entoava as palavras arrepiantemente belas deste "Le Déserteur" de Vian cujas últimas palavras eu aguardava sempre com uma assustadora expectativa de que tivesssem, por miraculosa intercessão de um qualquer deus da poesia, entretanto deixado de estar lá e que pareciam---mas sobretudo porque pareciam---ecoar de forma verdadeiramente ominosa as sinistras palavras de gélida advertência daquele comissário fronteiriço em Port Bout que pouco antes me havia dito: "Oui! Vous pouvez passer par là. Mais dêpechez-vous quand-même, ham? Je vous donne cinq minutes pour en fair parce qu' après ça je fais sortir une patrouille. Ja la commanderai moi-même et... je tire bien, hein?..."



"LE DESERTEUR"

de Boris Vian

Monsieur le président
Je vous fais une lettre
Que vous lirez peut-être
Si vous avez le temps
Je viens de recevoir
Mes papiers militaires
Pour aller à la guerre
Avant mercredi soir
Monsieur le président
Je ne veux pas la faire
Je ne suis pas sur terre
Pour tuer des pauvres gens
C'est pas pour vous fâcher
Il faut que je vous dise
Ma décision est prise
Je m'en vais déserter
Depuis que je suis né
J'ai vu mourir mon père
J'ai vu partir mes frères
Et pleurer mes enfants
Ma mère a tant souffert
Elle est dedans sa tombe
Et se moque des bombes
Et se moque des vers
Quand j'étais prisonnier
On m'a volé ma femme
On m'a volé mon âme
Et tout mon cher passé
Demain de bon matin
Je fermerai ma porte
Au nez des années mortes
J'irai sur les chemins
Je mendierai ma vie
Sur les routes de France
De Bretagne en Provence
Et je dirai aux gens:
"Refusez d'obéir
Refusez de la faire
N'allez pas à la guerre
Refusez de partir
"S'il faut donner son sang
Allez donner le vôtre
Vous êtes bon apôtre
Monsieur le président
Si vous me poursuivez
Prévenez vos gendarmes
Que je n'aurai pas d'armes
Et qu'ils pourront tirer!"


Boris Vian

"«Al Olmo Seco» de António Machado"


Era por aqui que a minha modestíssima [sempre caracteristicamente caótica e assumidamente impressionista!] "antologia pessoal" deveria ter começado: por este sublime "Al Olmo Seco" de Machado.

Uma vez, fiz, de uma assentada todo o percurso de Sevilha a Colliure onde o Poeta está sepultado, passando por essa árida mas, para mim, íntima Soria do próprio Machado com o único propósito de reconstituir uma espécie de trajecto interior machadiano que ficou como uma das coisas mais belas, vibrantes e inesquecíveis que alguma vez, fiz na vida.

Em Soria, descobri quase por acaso [de facto, completamente ao acaso na minha costumeira errática e excitada romaria em busca de alfarrabistas que, juntamente com o liceu local, era ponto de partida obrigatório em cada cidade ou vila visitada, fosse ela qual fosse, para a respectiva 'descoberta'] um livreiro que tinha 'postais de Machado' mandados fazer especialmente por ele, esteticamente muito imperfeitos e quase pueris, mas [que é o que importa!] obviamente sentidos---e acabámos por subir juntos até ao local onde um cura anónimo, machadiano ou 'machadista militante' como nós---contou-me ele---havia mandado, em data hoje completamente irreconstituível, talvez a seguir à guerra civil, [re] plantar um velho ulmeiro em homenagem àquele Machado íntimo e comum que, como o poema lembra, ressurgira ou renascera de umas «cinzas íntimas» que não haviam, porém---é o poema ainda quem no-lo revela!---logrado dilacerá-lo nem, em caso algum, vencê-lo; esse Machado secreto e exemplar que nos havia unido a todos numa espécie de laço invisível, transmaterial e imensamente misterioso, capaz de ultrapassar as barreiras e limitações do Tempo e fazia de todos nós---mesmo do velho cura anónimo há muito desaparecido---companheiros [mais do que companheiros: cúmplices] de uma aventura interior única que sabia impor à Morte as suas próprias leis e unir o Tempo todo numa espécie de intemporal e inconsútil celebração da Beleza ideal que é aquela que resulta da errância, material ou íntima e interior, vivida sempre positivamente, como uma aprendizagem ou uma iniciação minuciosas e fecundas---que é como quem diz: da obsessiva, estóica, heróica, definitiva, contínua superação da Dor em Conhecimento e em Consciência.

Da transmutação alquímica daquela numa Beleza, final, permanente literalmente completa: obsessiva e absolutamente perfeita, numa palavra...

AL OLMO SECO

Al olmo viejo,
hendido por el rayo
y en su mitad podrido,
con las lluvias de abril y el sol de mayo,
algunas hojas verde le han salido.
¡El olmo centenario en la colina
que lame el Duero!
Un musgo amarillento
le mancha la corteza blanquecina
al tronco carcomido y polvoriento.
No será,
cual los alamos cantores
que guardan el camino y la ribera,
habitado de pardos ruiseñores.
Ejército de hormigas en hilera
va trepando por él,
y en sus entrañas
unden sus telas grises las arañas.

Antes que te derribe,
olmo del Duero,
con su hacha el leñador,
y el carpintero te convierta
en melena de campana,
lanza de carro o yugo de carreta;
antes que, rojo en el hogar, mañana
ardas, de alguna misera caseta
al borde de un camino;
antes que te descuaje un torbellino
y tronche el soplo de las sierras blancas;
antes que el río hacia la mar te empuje,
por valles y barrancas,
olmo, quiero anotar en mi cartera
la gracia de tu rama verdecida.

Mi corazón espera
también hacia la luz y hacia la vida,
otro milagro de la primavera.


António Machado

"Encore Magritte: Befreiung durch der Kunst..."


L' Art et son double» oder «Der Kunst Himmelfahrt..."

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

"«Fatalismo morfológico-linguístico» ou «Linguística É Comigo»!" [Arte de Carlos Machado Acabado]


---Eu cá não concordo nada com aquela ideia do Saussure que fala da circunstância de, segundo ele, a relação entre o símbolo linguístico e o significado ser completamente aleatória e arbitrária...

---Homessa! Então por quê?!

---Então, já viste: em Portugal, há a Madeira, o Alberto João Jardim, a censura política, a coboiada dos tachos, o analfabetismo crónico, a miséria e sempre, sempre aquelas confusões todas com dinheiros---e como é que eles pronunciam a palavra "política"?
"Pulhítica"!

---No Porto, depois do Paulinho Santos e do Jorge Costa, há agora aquele Hulk e aquele tal Sapunaru ou lá como é que ele se chama, os túneis, os pontapés, aquele regabofe todo da arruaça constante a caminho dos vestiários---e como é que eles pronunciam a palavra "vestiário"?
"Bestiário"!

Achas isto tudo coincidência?
Eh! Pá! Não me lixes!
Arbitrário e aleatório o tanas, ouviste!
O gajo não percebia era nada daquilo!...

"Com Progresso É Outra Coisa..." [Arte de Carlos Machado Acabado]


---Diz no jornal que executaram ontem no Iraque um antigo colaborador de Sadaam Hussein...

---Que horror, a pena de Morte!

---Mas o jornal diz que a execução "contrastou" com a do próprio Saddam há quatro anos em que o preso, antes de morrer, foi insultado pelos próprios executores os quais filmaram a morte dele: desta vez, foi tudo muito ordeiro e respeitador, sem filmagens nem "cânticos" nem "insultos".

---"Ah! Bom! Assim, está bem!

Impressiona o modo verdadeiramente vertiginoso como a civilização avançou no mundo em apenas quatro anos!"...

"O Coveiro dos Peixes-Tributo a Magritte"


[Colagem sobre papel e cartolina de Carlos Machado Acabado]

"My Mood Of Late..."


"My Way"

And now,
the end is near,
And so I face the final curtain.
My friends,
I'll say it clear;
I'll state my case of which I'm certain.
I've lived a life that's full
I've travelled each and every highway.
And more, much more than this,
I did it my way.
Regrets?
I've had a few,
But then again,
too few to mention.
I did what I had to do
And saw it through
without exemption.
I planned each charted course
Each careful step along the by way,
And more, much more than this,
I did it my way.
Yes, there were times,
I'm sure you knew,
When I bit off more than I could chew,
But through it all,
when there was doubt,
I ate it up and spit it out.
I faced it all and I stood tall
And did it my way.
I've loved, I've laughed
and cried,
I've had my fill
my share of losing.
But now, as tears subside,
I find it all so amusing.
To think I did all that,
And may I say,
not in a shy way
Oh no.
Oh no, not me.
I did it my way.
For what is a man?
What has he got?
If not himself
Then he has naught.
To say the things he truly feels
And not the words of one who kneels.
The record shows
I took the blows
And did it my way.

Yes, it was my way.

[Na imagem: "Traveller's Tales", colagem sobre papel de Carlos Machado Acabado]

"Magritte-2"


L' artiste et sa création---son ombre?
Son revers?

"Ende-Das Ende Nährt Sich"---visual soundbite"

EnDnDeEnDeendEnDEndeeEedENdeEnDeEnDEeEedeEnDeEndEEnDEenDeEdEenDEendeeenDEe.

"Una Gaviota"

Um poema para o Haiti que uma Amiga sul-americana, Luisana Medina, acaba de me enviar e que, depois, de tê-lo já partilhado com a Amiga Ana da "Encosta do Mar", não resisto a divulgar aqui, no "Quisto":

"Dios me bendice,
pues que me regala una tierra gentil
que nadie iguala
ni halle mejor en la extension remota

"Haiti, la llaman, es una gaviota,
es dulce, alegre, tibia, como un ala
inadvertida se vistio de gala
ante el caribe que su faz azota.

De malignas serpientes y alimañas
despejaron sus dioses las montañas

poblo la selva ibolele de trinos

Hoy como ayer deslumbra al navegante,
la que esperando al parecer amante,
extiende al mar dos brazos diamantinos.

Esther Maria Osses
Poesia en Limpio

NO ES EL INFIERNO, ES UNA GAVIOTA...
ESTA HERIDA....
Y SOLO LA CURAN LOS LATINOAMERICANOS!!!!!!!!!!
CONTINUEMOS AYUDANDO AL PUEBLO HAITIANO!!!!!!!!!!!!!!

[Imagem extraída com a devida vénia de telescopes.binoculars.co.uk]

"All I Really Want To Do..."


Não simpatizo intelectualmente lá muito [para não dizer simplesmente: não simpatizo rigorosamente nada e rejeito-as sem hesitar!] todas as generalizações e as tipificações por definição, abusivas com que uma certa subfilosofia comum adora 'substanciar' as suas invariavelmente fragéis e insubstantivas formulações.-

O tipo de "discurso analítico" que passa a "vida argumentativa e teórica" a dizera dizer: "os portugueses são", "os americanos gostam", etc. etc.

Fazem-me sempre lembrar aquela "semântica repulsivamente analfabruta" do discurso colonialiozante-tipo de há quarenta/cinquenta anos quando perorava do alto da sua erudução adquirida nas páginas do "Novidades" ou nas berças de uma província "interior e sem electricidade ou saneamento [também cultural ou sobretudo cultural...] básico" qualquer: "o preto é", "o branco pensa" e por aí fora num discurso tipificador a arruimador da realidade que era, afinal, a muralha de defesa argumentativa única da sociedade colonial para permanecer colonial quanto tempo fosse podendo e a deixassem...

Tenho, pois, razão, acho eu, para detestar qualquer discurso categorializxante e tipificador, sobretudo se emitido a partir da maior parte dos 'mídia pop' de hoje que é onde a tal interioridade física mas sobretudo mental e crítica faslha de saneamento básico se alojou nos tempos que correm.

É, por isso, com natural reserva de princípio que leio textos como o de Pedro Lomba no "Público" de ontem, 25, sobre "A América e a Europa".

Deu até concordo genericamente, reparem, com a análise histórica e antropológica---histórica e antroplogicamente sustentada---que Lomba faz da "América".

Concordo com aquela ideia de uns quantos europeus de [forçada] exportação vagamente reorganizados em país ou da absoluta inexistência mental e cultu(r)al habilmente pretextuada por uma constituição a que muitos se obstinam, contra toda a lógica, em chamar "país".

Isso é História, isso é [solidamente] antropológico.

Já discordo [e muito! E por completo!] daquela ideia têm uma "democracia" que não-sei-quê enquanto que uins tais "eutropeus" já possuem uma outra que não-sei-que-mais.

Que existe um "ethos americano" que "coiso, mas, exactamente ao contrário, não um europeu que... "coise", num sentido qualquer.

Essa do "ethos americano" e do "ethos zero" "europeu" que, pelo contrário, não "coisa" [nem sairá de cima?---pergunto eu] faz-me lembrar aquele soberbo poema do Dylan [quando o Dylan ainda era Dylan e não lhe tinha ainda dado para querer ser outra vez o Sr. Zimmermann] que eu já aqui recordei e que dizia qualquer coisa como: "I don' want to categorize you, simplify you or quality you".

É que o Dylan, nessa altura, sabia bem onde conduzem---a que "devious states of [human and political] mind" conduzem invariavelmente as "categorizations", "simplifications e qualifications"---sabia-o quando elas constituiam um património cultu(r)al e político da interioridade histórica, mental e física ainda sem jornais e televisões, muito antes, pois, de ela poder chegar às cabecinhas "livres" dos leitores de jornais e espectadores de televisão apanhados [ou "apanháveis"...] desprevenidos entre duas telenovelas e um concurso foleiro qualquer.

Entendamo-nos: o ethos de uma certa "americanidade" persistente e imperfeitamente reconvertida das suas origens genocidas e [forçadamente, convenho] assilvestradas é o "ethos" da pradaria convertido em "ethos".

É o "Buffalo Bill ao poder" erigido em ideologia de um vago Estado construído em labirinto, como o palácio do 'outro', para não entrar lá muita gente e, sobretudo, certa gente que roube as pistolas ao Buffalo ou meta o Custer onde ele devia há muito estar, apesar dos "esfotrços" do Fonda e até do Flynn para "branquear" a selvajaria sem nome e sem elevação---sem perdão!---que ele corporiza e configura.

A América "au jour le jour", como escrevia a Beauvoir, já tinha descoberto há muito no tal ethos supostamente assente num código por sua vez substanciado numa "cultura" [numa "cultura", "of all things"!] de "trabalho, responsabilidade individual" onde "a liberdade" não-sei-quê o fim da História de que chegou a falar o Fukuyama antes de fazer marcha atrás quando deu de caras com o Bush, o Iraque e esse "charabã", essa palinódia toda de iniquidades e abjecções "em fila indiana" ["Indiana"?! Oh!" Diabo!... "Native American", talvez...] atrás umas das outras à espera para entrarem finalmente em triunfo na História pela porta da frente desta e por fim com direito a serem recebidas como... chefes de estado, na linguagem chilra e sonsa dos clichés.

Com a terra roubada e a cobertura tranquilizante de um puritanismo de sentido único os "pioneers" fizeram um ethos de que ninguém ["et pour cause"...] os convence a largar mão!

De onde ninguém os arranca nem a tiro!

E têm boas razões para isso, como país que não são mas enfim: fingem, às vezes convincentemente ser.

O espírito Buffalo Bill dá-lhes força para mandarem uns índios abaixo e lhes ficarem com as terras.

Alguns, aliás, já traziam experiência da Europa de onde os correram por isso mesmo.

Já o puritanismo os abastece da culpa necessária para simularem uma humanidade que o reral raramente confirma e a existência de Reagans, Bushes e Bushes não ajuda nada a credibilizar.

"Acabar a História" e a percepção ou a consciência subjectiva e cultu(r)al dela, isto é, "fechar-lhe a porta à chave" do lado de dentro dela com os outros todos à porta ["Draussen Vor Dem Tur", como titulava um autor alemão conhecido dá um jeitão do caraças e um "ethos" giríssimo.

Sempre?

Para sempre?
Para sempre não mas enquanto a gente for podendo, é uma festa.

Enquanto há dinheiro, tudo são rosas---até o que o não é nem se parece, como dizia o meu avô.

Com dinheiro, parece!

Assim, como digo, é fácil acabar a História e ir por ela fora exibindo o "ethos": abrindo o sobretudo e exibindo o ethos às senhoras...

... que são os comentadores crédulos e generosos para com certas abjecções muito bem disfarçadas de "cultura"...

A Europa?

A Europa não tem um "ethos" como o dos Estasdos Unidos ['o meu "ethos" é maior que o teu e essas coisas todas']?

Errado!

A Europa [não a das aspas, cozinhada em laboratório; não essa Europa "de síntese" dos Blairs, dos Barrosos e dessa "tropa fandanga" entravatada toda; desses "Doktor Caligari" que, dos seus "Kabinette" guardados a sete chaves, nos cortam a Europa toda aos bocados fingindo uni-la e a metem, depois, em latas como as de sardinha, para exportação]; a Europa, não a a indústria que a usa como matéria prima de neo-imperialismo refundado possui um ethos, sim senhor!

Ou possuía, até há pouco!

Era a diversidade cultural e era a longa História que havia dialectizado e, de algum modo, civilizado uma não menos longa tradição de exacções e abjecções que aqui acabaram por se ir educando e genericamente cultuivando e na "América" acharam terreno fértil patra, exactamente ao invés, se consolidarem e confirmarem na luta pelas terras dos índios e, logo a seguir, pelas dos que as vinham roubado aos índios que passaram a disputá-las, naturalmente, entre si...

A democracia europeias vinha de Aristóteles e de Platão na forma abstracta de um consciência e de uma ética que a Grécia, quando... "teve de se ir embora dela", entregou à História para que esta a convertesse, então, numa civilização, num ideal político e, claro, num ethos.

E ela esteve, aqui e ali, quase a consegui-lo, aliás.

Só falhou por pouco.

Num certo sentido, conseguiu-o mesmo, não falhou: na formação de uma consciência de "educada e estratégica, organizada" senão mesmo "orgânica"] persistente dissenção ou "dissensionalidade" [lembram-se dos Zolas e dos Dreyffus? Dos Sartres e das "questions algériennes"? Pois, aí têm! É isso! É esse o ethos europeu onde a Europa sem aspas , a Europa boa, a Europa, apesar de tudo---dos Blairs, dos Barrosos, agora até dos Sócrates e dos Sarkozys---viva tem ido [agora, se calhar, já perdeu em grande parte o jeito mas enfim...] consistentemente buscar energias para se revitalizar continuamente e mesmo reinventar regularmente "malgré tout", "malgré", às vezes, "elle même"...

Mas é justamente esse fermento de "educada dissenção" que ela aprendeu---que as suas elites, as verdadeiras, as fecundas, as dos Zolas e dos Sartres aprenderam---a interiorizar e a reprojectar conmtínua e, sobretudo, pluralmente sobre o conjunto da europeicidade a toda a volta, na forma de uma não menos educada insatisfação cultu(r)al e civilizacional orgânica, ínsita, aberta permanentemente à mudança e ao futuro que, ao menos na forma de uma [nada hegeliana, não confundam] Ideia a Europa tem por ethos e eu espero ardentemente como europeu que ela nunca perca nem ceda a deixar que se funda e uniformize, homogenize, num ethos de sinal único onde a História fique eternamente agarrada e condenada a não mais se mexer...


[Na imagem, edifício de Filip Dujardin, arq. belga, extraído de bozar.be]

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

"Aviso: «Hoje não me apetece falar com ninguém» ou «Gente Inteligente Não Entra!»..."


Sofri uma espécie de desilusão!

Assim, não dá, Deus---não dá mesmo!

Já é a segunda numa semana---e ainda agora a semana começou!

Daqui a nada "fecho, de vez, a loja" ou saio por aí fora em pijama e tudo a gritar como o "outro": "Stop the world! I want to get off!"

[Os disparates que a gente diz quando alguém [às vezes, "só" a Vida...] nos fere ou magoa---ou quando imaginamos que isso aconteceu, também pode ser!...

Livra!]

Mas eu acho mesmo que se 'ser estúpido andasse', eu nem precisava de rodas---deixa-me ir atrás de mim e pronto: com a embalagem que ganhava chegava lá primeiro que eu próprio!...

Ou coisa assim...


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Boa noite!

Vou-me mas é deitar antes que diga alguma asneira!

Pode ser que dormindo...---que "isto" hoje não está mesmo para conversas e amanhã não-sei-não...

Há dias em que Chisca Imbrósio diz quase tudo---na frase lapidar da Hermínia...
["Chisca Imbrósio", então, hoje!]

"Deixo-vos, por hoje, com Magritte..."


Termino com uma das minhas maiores 'paixões espituais': Magritte.
Em Bruxelas cheguei a morar [sem saber] a dois passos [poucos mais seriam, na realidade, sobretudo para mim que ando depressa] de uma das casas em que Magritte habitou, em Ixelles e que hoje é Casa-museu.

Viria a visitá-la mais tarde, quando nos anos '90 voltei a Bruxelas exactamente pela mesma via [mas agora de carro] que utilizei em '72, para lá chegar: Madrid, Barcelona, Paris via Port Bou e Cerbère, Bruxelas, Amsterdão e, de novo, Bruxelas.

Magritte: Magritte é, para além de um pintor cuja "loucura" coincide ponto por ponto com a minha própria [como talvez só aconteça com mais Miró e algum Bascon...] é uma das mais estimulantes provas de que todas as generalizações são, no limite, uma forma de imperdoável violência cometida sobre a realidade.

Na verdade, tudo quanto de injusto ouvi sobre a pretensa "estupidez natural" dos belgas ["Les belges? Ah! Mais que c'est quand même con, ça, quoi!"] se esboroa por completo perante essa torrencial mas, ao mesmo tempo quase comovedora, quase "geometricamente" "naïve" verve magritteana, com os seus "trompe-l'oeil" conceptuais deliciosamente cândidos e excitante---amorosamente!---'previsíveis', marcados por uma espécie de ofegante, intensamente juvenil, 'excitação" ou "entusiasmo" plásticos ["visual elation"] emocionantemente inocentes, quase tímidos [daí a proximidade da "festa"---da "romaria visual" que é Miró] quase infantil mas invariavelmente feliz [a de Magritte é, definitivamente, uma "arte feliz"!] eco estético e conceptual de uma época onde a infância---inclusive a da própria consciência que é indiscutivelmente a mais difícil de encontrar e, sobretudo, de conservar---era ainda algo não só de geralmente possível como---melhor ainda!---de social e politicamente apreciável.

Claro que, para "justificar" e "legitimar" definitivamente a Bélgica e os belgas, haveria ainda, além desse "brave René d' Ixelles", por exemplo, Hergé, "cet espèce de salaud fasciste et raciste", "ce type affreusement opportuniste, coventionel et degrellien"; Jacobs e os seus Prof. Mortimer, Capitão Edgar, "fiel Nasir" e o tenebroso Olrik que felizmente atormentaram a minha infância o tempo suficiente para que ela ficasse sendo, também por isso, algo de definitivamente habitável e digna de ser ocasionalmente recordada---e, sobretudo, num plano mais sério, o exaustivo e intelectualmente minucioso Ernest Mandel, uma das poucas pessoas [tirando, possivelmente, o próprio Trotski] capazes de me tentarem, com alguma hipótese de sucesso, no sentido de que me convertesse, um dia, ao trotskismo...

Não foi, todavia, necessário recorrer a qualquer deles: felizmente, Magritte, esse vulcânico, imensamente divertido "geómetra dos sentidos", esse "Escher humanizado" e resgatado do cepticismo pela sua admirável 'propensão para a fragilidade', pela sua tão característica e distinta "vocação para o prazer"---e a prodigiosa "fête foraine" dos sentidos, esses rituais incrivelmente envolventes e estimulantes, empolgantemente vitais que ele foi um dos poucos a possuir o segredo e que com ele recomeçam sempre, infatigaveis e certos, a cada novo olhar!

Sacré René!

Sacré Belgique, ma deuxième patrie de circonstance!...

"Por Uma Educação Para Um Improvável Futuro Próximo---Sobre uma intervenção de Nuno Crato no programa da SIC «Plano Inclinado» "


Ouvi a intervenção em causa quase por acaso à hora do almoço.

Sobre ela, muito haveria a dizer [com certeza, mais do que aquilo que vou eu próprio aqui fazer] mas vou-me concentrar em dois aspectos que me interessam, de modo particular sendo eu, mesmo hoje, aposentado, o professor que fui, no activo, durante mais de três décadas.

Refiro-me, para começar, à exigência feita por Nuno Crato relativamente à definição por parte de um governo e de um ministério da Educação que não temos e, provavelmente, nunca tivemos em democracia---dos de antes nem vale, por razões óbvias, a pena falar, agora, aqui...---de metas claras para o ensino [em substituição daquele palavroso e invariavelmente errático, bizantino e muitas vezes 'piedoso', quase eclesial, linguajar aparentemente bem intencionado e de eufonia sempre assegurada] envolvendo "competências", "performações", "niveis de performatividade", "escalas performativas" e o que mais por lá se ouve sem, em momento algum, se poder, com sinceridade, dizer---mesmo aqueles que do ensino fazem profissão---o que possa significar realmente a maioria daquelas "coisas" pomposas e estratégica [senão mesmo... prudentemente] vazias...

Ora, eu devo dizer que, como professor, cuja carreira atravessou os derradeiros anos do fascismo e todo o circuito democrático-institucional [que não é exactamente a mesma coisa que "democrático", "democrático" tout court mas enfim...] e teve, por isso, oportunidade de testemunhar pessoal e directamente, os níveis de degradação que o ensino sofreu de então para cá [e demonstravelmente sofreu: a educação demo-institucional consegue ser pior e, a mais de um título, menos satisfatória do que a produzida em ditadura, pela ditadura e, sobretudo, para a ditadura!]; eu, dizia, a partir desse capital de experiência profissional só posso concordar com essa necessidade absolutamente vital de saneamento técnico-científico e/ou, se assim se preferir dizer: de 'operacionalização' estrutural da Educação que é como quem diz [está pressuposto!] a urgência absoluta em entregá-la, em cometê-la---finalmente!---a alguém que tenha uma noção mesmo só minimamente clara e consistente dos usos [não hesito em dizer] civilizacionais da Educação, isto é, da sua utilidade material para um desenvolvimento minimamente sustentável e orgânico [sem esquecer: realmente democrático!] do próprio País além, claro, dos meios técnicos credíveis e consistentes para conferir a tudo isso expressão operativa efectivamente credível.

Diz o professor Crato: é imperativo exigir que, do ano tal se saia a saber concretamente isto e isto, no outro a seguir, aquilo e mais aquilo---e assim por diante.

Volto a dizer: não podia concordar mais com o princípio.

A "Educação" em Portugal tem sido, de facto, consistentemente uma espécie de "escritório de contabilista" camuflado 'doublé de' "território de caça" [e de promoção política] para incompetentes palavrosos e não-raro desesperantemente medíocres, especialistas em camuflar as ideias e os conhecimentos que invariavelmente parecem todos indiferentemente vocacionados para não terem numa teia de verbosidade pegajosa e, em geral, completamente inútil; num autêntico "lamaçal" ou "paúl semântico" "a perder de vista" pelo qual qualquer verdadeira ideia ou potencial iniciativa minimamente inteligente e consistente está à partida condenada a acabar engolida, tragada, naufragada, sem apelo nem agravo.

A maior parte dos Ministérios da Educação que conheci [e conheci todos os que vigoraram em "democracia"---não deixem, já agora, por favor, de atentar nas aspas...] fazem-me sempre---a mim que, além de professor, sou cinéfilo... "por vocação"--- uma sequência notável de um filme norte-americano dirigido por Franklin J. Shaeffner sobre a vida do Gen. Patton onde este, ao chegar à unidade militar cujo comando vai assumir, depara com um caos inimaginável de inépcia e de negligência que o deixam, como militar, profunda e muito naturalmente horrorizado.

A dado passo, depara Patton concretamente com um soldado que, apesar de se encontrar de serviço, dorme tranquilamente sentado numa cadeira.

Com aquele pendor truculento e militarista que o caracterizava e que o filme de Shaeffer [um filme onde colaborou Francis Ford Coppola] espelha e sublinha, Patton pontapeia a cadeira onde o soldado repousa fazendo-o cair---de imediato, se apressando, porém, a pedir-lhe uma espécie de desculpa sarcástica, dizendo qualquer coisa como: "Pronto! Está bem! Vai lá dormir outra vez! Tu, ao menos, sabes o que andas aqui a fazer..."

Essa é mesmo, diria eu, a única diferença entre a [des] organização naquela unidade militar do exército dos E.U.A. nos anos '40 tal como a evoca o filme e todo o edifício da Educação em Portugal nas últimas três décadas: no primeiro destes casos, ainda havia uma pessoa que sabia minimamente o que estava ali a fazer...

Muitas vezes me ocorre esta sequência notável de "Patton" quando deparo com a maior parte das medidas tomadas pelos "sábios pedagogos" que os diversos governos constitucionais tiveram a brilhante ideia de colocar a gerir a Educação em Portugal, desde um exótico e pedagogicamente impensável Sottomaior Cardia, claramente para lá deslocado---ele que ali, de resto, triunfalmente, se apresentou aureolado da reputação de "filósofo" adquirida, sobretudo, a partir da sua colaboração na "Seara Nova"...---com propósitos [a que pouco terá faltado para serem-no confessadamente] políticos, que a imprensa da época---de que possuo, de resto, extenso mostruário---não deixou de documentar; desde esse àqueles que foram sem dúvida os dois piores e mais escandalosamente ineptos ministérios da educação que conheci---e conheci, volto a dizer vários: o de uma tal Maria do Carmo Seabra sobre a qual caíu, como se sabe, entretanto, um piedoso manto de silêncio desde que, em boa hora, a senhora abandonou---imagina-se e espera-se que definitivamente---o cargo e a anterior titular da pasta, Maria de Lurdes Rodrigues a única rival, entre diversos candidatos, a poder legitimamente aspirar com hipótese de sucesso a concorrer com a anterior para esse pouco invejável e pouco dignificante prémio de o pior ministro da educação de sempre, em Portugal, depois do 25 de Abril de '74...

Por tudo isto, volto a dizer, só posso concordar com o princípio enunciado pelo Prof. Crato no sentido de conferir expressão material, concreta, à necessária credibilização metodológica e epistemológica da gestão da Educação em Portugal que é como quem diz à sua modernização num sentido orgânico e profundo que nada tem que ver com modismos formais ou bizarrias de novo rico da política e da Epistemologia.

O único problema---a única reserva, em qualquer caso---é que, em momento algum da intervenção do Prof. Crato, o ouvi discorrer sobre aquilo que falta para garantir que uma educação finalmente credível em termos técnicos e, ao mesmo tempo, na prática, eficaz é também uma educação civilizada, humanista e, por isso [ao menos teórica ou ao menos tendencialmente] "integral", a saber: uma perspectiva teórica e crítica sobre ela própria.

Uma perspectiva teórica e crítica ínsita ao sistema---e no contexto dele dotada de expressão especificamente institucional e curricular.

Eu não digo que ela não a tenha: digo que não o ouvi mencioná-la---e isso preocupa-me porque partilho obviamente das críticas do Prof. Crato ao que tem demonstravelmente sido uma "educação" completamente avulsa, sem conteúdo ou projecto próprio, conduzida aos soluços e de uma forma sempre ancilar e sempre redutoramente instrumental relativamente à sua própria 'economia' vista esta como um referencial absoluto e omnipresente---e, ao mesmo tempo, desligada de qualquer projec
Partilhando delas, preocupa-me não o ter ouvido, por exemplo, falar sobre o papel vedadeiramente essencial da Filosofia na formação de um olhar crítico e, ao mesmo tempo, humanizado e humanista orgânico sobre a realidade ou sobre o papel não menos crucial da Literatura na formação de uma consciência essencialmente estética [que é também ética e cumulativamente crítica] que projecto de educação integral algum pode, sem graves riscos para a "saúde civuilizacional" da sociedade proposta, dispensar.

Foi o indecoroso "analfabetismo cívico" de ministérios como aqueles dois que expressamente citei e que foram, de facto, maus de mais «para serem verdade» [foram maus de mais até para este Portugal dos últimos trinta/trinta e tal anos; este Portugal formalmente democrático cujo conceito de democracia remonta, porém, a uma patética corruptela do espírito do 25 de Abril, infectado pelo virus de um novembrismo peseteiro e venal quev espetrou na sombra pela sua oportunidade para enttrar na História à boleia dass fragilidades de um Abril demasiado jovem para contê-lo]; foi, dizia, o indecoroso analfabetismo cívico de sucessivos ministérios da educação que criou as condições para a emergência daquela situação descrita por José Gil num texto de 2006 da "Visão" [intitulado significativamente "O apagamento da Filosofia?] onde o autor recorda o modo como um saber, repito, absolutamente essencial para a formação equilibrada da consciência intelectual mas, também, cívica e até histórica dos indivíduos foi sendo [eu---que nem sequer sou professor de Filosofia e por isso sou insuspeito de qualquer interesse egoisticamente profissional ou corporativo---não hesitaria em dizer: criminosamente] desvalorizado e objectualmente postergado dos currículos o mesmo sucedendo com o estudo da Literatura que, um dia, um "iluminado" qualquer com inimagináveis poderes de tutela tentou substituir pelo estudo [!] de regulamento de um concurso pimba à época muito falado---o patético "Big Brother" de desgraçada e ainda recente memória...

Este um aspecto---uma reflexão que a intervenção do Prof. Crato que comecei por citar me suscita; um aspecto cuja abordagem eu concluiria, aliás, sintetizando deste modo: é evidente que uma pessoa com um mínimo de esclarecimento e inteligência só pode conceber hoje-por-hoje um modelo de educatividade capaz de conter em si [alguma, pelo menos] aptidão para, por um lado, interagir reconhecível e também organizadamente com o real assim como para, por outro lado, impor a si próprio objectivos claros, definidos e, como é evidente, pontualmente demonstráveis que possam ser continuamente reinvestidos naquela mesma operacionalização contínua do modelo, anteriormente referida.

Isso não está em causa---ou só o pode estar para os "analfabetos da pedagogia e da didáctica", mesmo aqueles---ou sobretudo aqueles!] que conseguem, por uma razão ou por outra, chegar a ministros.

O que eu temo muito concretamente é que aí se esgote o projecto educacional que idealmente há-de um dia substituir a incoerência tutelar e política actual.

E aquilo que eu não ouvi hoje o Prof. Crato dizer parece, de algum modo, justificar aquele receio de princípio.

Outro ponto envolve um famigerado "exame de admissão" à carreira docente.

De facto, sob a roupagem apelativa da razoabilidade e do bom senso, a ideia contém, em si, implicitamente um absurdo ou um conjunto de absurdos e monstruosidades várias dificilmente ignorável.

Eu, por exemplo, não compreendo [e já escrevi isto em diversos artigos dados à estampa n' "O Professor"por exemplo] como pode haver num país todo um ramo específico do ensino superior concebido para formar docentes que só após tê-lo feito vai tentar averiguar se aqueles que acabou de formar... servem, para exercer a profissão para a qual... foram formados!

Até que me provem o contrário---e escrevi-o!---todas as eventuais reprovações num exame desta natureza e com estas características são reprovações do próprio sistema educativo como tal a si mesmo muito mais do que às pessoas que eventualmente nele reprovem.

Faz-me arrepiar a ideia de como é possível haver quem caucione sem a questionar---pelo contrário: encorajando-a na prática!---a despesa em dinheiros públicos e privados; o gasto em tempo útil da vida das pessoas e das sociedades assim como em disfunções de vária ordem com um projecto destes e ainda por cima, chame a isso "saneamento" do modelo ou dos modelos de educatividade em Portugal!

Então, as Escolas [ditas?] Superiores de Educação não conseguem fornecer a si mesmas [e à actividade que é, por estatuto, a sua própria] 'feddback' credível em matéria da mais elementar orientação profissional?

Formam técnicos e... "depois logo se vê"?

Que é, afinal, um técnico?

Que pensam as pessoas em geral sobre o que é um técnico se aqueles que têm o dever de formá-los parecem, afinal, não ter disso uma ideia assim tão clara, definida e operativa como tudo isso?

Quem paga afinal a formação falhada dos técnicos assim falhados?

E quem paga aqueles que não se formaram noutras áreas do saber porque a Universidade não soube perceber a tempo que seriam muito melhores médicos ou engenheiros e arquitectos do que professores?

Não será, de resto, esta ideia de "primeiro, formam-se os técnicos e, depois, logo se vê se servem para... técnicos" já o resultado daquele paradigma teórico de educatividade puramente tecnocrática às qual falta, até institucionalmente, como atrás refiro, uma ideia ou uma filosofia de si própria e do mundo em que [afinal, não] se insere?...

Em que, bem vistas as coisas, afinal, talvez, se não insira?...
Vale seguramente, penso eu, reflectir seriamente em tudo isto.

"Leituração e «Objectividade Criativa»: Aspectos de um Programa Pessoal de Apropriação Teórica da Realidade"


Não aprecio---rejeito, aliás, instintivamente; rejeito... por confessa vocação"---o 'registo Clara Ferreira Alves', sempre caracteristicamente "auto-biográfico", sempre ensimesmado e irresistivelmente auto-admirativo, muito estilo "intelectual-português-de-suplemento-literário-anos-sessenta", assim tipo: "Joyce e Proust são grandes escritores e Borges extraordinariamente lúcido, não sou?..."

Há relativamente pouco tempo cruzei-me fugazmente---de raspão...---com o 'milieu' teatral por iniciativa do meu amigo Armando N. Rosa, dramaturgo e ex-colega de escola e lá, àparte meia-dúzia de fulanos interessantes e com indiscutíveis mas pouco auto-publicitados méritos [e até confessos "bichos-de-mato", como eu próprio e como o João Mota] reencontrei, inteirinho, o mesmo 'boneco' intelectualmente narcísico e auto-embasbacado de que não gosto rigorosamente nada [agora a interrogar-se, ao que parece mais estarrecido do que nunca: "mas por que é que não me admiram e não ouvem, no mais respeitoso e venerador, boquiaberto, dos silêncios as minhas tiradas geniais sobre praticamente tudo o que mexe e que Deus criou precisamente para que eu tenha um pretexto para atirar tiradas, exactamente do mesmo modo como, na canção do Zeca, "os sheiks das fitas dão porrada a quem passa" e logo calhou serem as minhas que são precisamente as mais geniais de todas?!"...] e, confesso, voltei a não gostar.

Seja como for, mau grado tudo quanto digo, lendo há escassos dias uma entrevista que Clara Ferreira Alves fez recentemente... "a si mesma a propósito de Eduardo Lourenço", li-lhe uma ideia de que [finalmente gostei!] e que adopto, de resto, desde já, como minha: interrompendo o questionário que estava a fazer a si própria a pretexto de entrevistar Lourenço, dirige-se a dado passo, Ferreira Alves a este afirmando: "Existem escritores menores sobre os quais já o ouvi falar que não têm nos livros aquilo que você põe lá. É como se lhes desse mais talento".

Ora, a mim, como disse, não me repugna nada---pelo contrário!---adoptar sem reservas o que está aqui dito---e que pode mesmo perfeitamente ser uma espécie de 'motto' ou de 'divisa' para a maneira como eu próprio, enquanto leitor ou 'espectador' [uma palavra de que não gosto francamente nada mas enfim!...] me relaciono com o Teatro ou o Cinema---ou, já agora, com a Literatura, a Pintura, a Música: "leiturando-os", muito mais do que vendo-os ou lendo-os simplesmente a todos eles..

Amar uma obra---um filme, um livro, um quadro, uma sinfonia---seja ela qual e de que género ou disciplina artística for, é, com efeito, no fundo, exactamente isso: "reescrevê-la, reescrevê-la sempre", à obra; reinventá-la, perdoá-la e amá-la nos seus defeitos mas, sobretudo, nos nossos próprios defeitos---e desejos.

E desejo.

Eco, que se fartou de "leiturar", queixa-se do que chama, de forma expressamente depreciativa, "sobre-interpretação".

Esquece-se, por exemplo, da que Freud fez do "Hamlet" que sendo em muitos aspectos demonstravelmente errada e inexplicavelmente abusiva---invasiva e "sobre-interpretativa---é, ainda assim [ou por isso mesmo?] admiravelmente cativante porque também poderosamente estimulante.

De facto, nos seus erros e imperfeições, extrapolações e petições de princípio, ela confronta-nos com os nossos próprios desejos, por vezes, não abertamente expressos [e até aí insusceptíveis de serem-no por falta justamente de uma alavanca ou de uma chave circunstancial que os suscitasse na consciência em vez de deixar que permanecessem, para sempre na sub-consciência]; nos seus erros e inexactidões de fundo, ela "abre"---"expõe"---numa palavra, a obra inteira ao futuro---no limite, a todos os futuros; fala-nos do "Hamlet" ou dos "Hamlets" que Shakespeare escreveu mas, também---e num certo sentido: sobretudo---daqueles que ele não escreveu mas podia ter escrito; interpela o próprio "Hamlet", "dialectiza e expande", em tese, infinitamente ["em espiral dialectizante", diria eu] a leitura que deles, dos vários "Hamlets" [im] possíveis podemos fazer; em suma: faz da fruição estética uma autêntica 'psicanálise' [ou 'aventura psicanalítica'] em situação' da qual só podemos, no limite, sair mais ricos porque mais próximos de nós mesmos, num 'circuito dialéctico' onde a obra de Arte e os saberes que ela pode activamente conter e, sobretudo, induzir, suscitar, trazer até nós desempenham um papel verdadeiramente angular---ou verticial, como gosto pessoalmente de dizer.

Eco chama-lhe "sobre-interpretação" e despreza-a de uma perspectiva de rigor e objectividade crítica e cognitiva?

Eu chamo-lhe "leituração" ou "educada desconstrução dialéctica" ["dialectical educated disassembling"]---e pratico-a sempre que posso da mesmíssima perspectiva de rigor crítico e objectividade criativa, digo, cognitiva...


[Na imagem: Kenneth Brannagh in faculty.fairfield.edu]

domingo, 24 de janeiro de 2010

"Bogey..."

Porque já aqui se falou tanto dele, não resisto a mais esta evocação especialmente dedicada à querida Amiga 'Ezul' que dele fala com evidente admiração num 'post' anterior recente do "Quisto"---uma dupla evocação fotográfica onde Bogart é retratado em dois momentos da sua preenchidíssima---e notabilíssima---carreira: primeiro, ainda muito jovem galã e, depois, retratado por Karsh, numa imagem icónica que lhe destaca os traços duros, já visivelmente marcados pela idade e, provavelmente pela doença, configurando uma máscara poderosamente impressiva, amarga, fatigada, 'nocturna' e mesmo possivelmente algo desencantada que alguns realizadores como Billy Wilder e Joseph L. Mankiewicz, exploraram magnificamente---Wilder, no clássico "Sabrina" com William Holden e a diáfana, inesquecível, Audrey Hepburn, Mankiewicz no esplendoroso e crepuscular "The Barefoot Contessa", um filme sobre a Morte, contado significativamente em "flashback" a partir de um funeral e onde a personagem do solitário Bogart mergulha no próprio Tempo regressando interiormente ao passado em busca da memória de uma mulher incompreendida e traída levada já pela morte e que essa mesma morte tornou tragicamente inacessível---um filme de 1954, com Ava Gardner na personagem da condessa Maria Vargas, a "condessa descalça", e "Bogey" na de 'Harry Dawes' o apaixonado impossível---um filme que pode ser, de algum modo, visto como uma remota e subtil, inteligentemente intelectualizada, "recriação" do tema do 'amor trágico e auto-sacrificado' ou, mais precisamente: 'auto-sacrificial, consagrado pelo mesmíssimo Wilder, no fabuloso e cinematograficamente definitivo "Sunset Boulevard", com o enorme [e injustiçadíssimo!] Erich von Stroheim, William Holden e Gloria Swanson.

Elemento comum a ambas as imagens acima republicadas, o tabaco---que haveria de desempenhar um papel funestamente determinante no trágico desaparecimento físico de Bogart como no de tantos outros actores e actrizes [Gary Cooper, Lana Turner, etc. etc.].

"Para uma ecologia das práticas educacionais---a propósito de uma concepção particular de «educatividade» constante de um texto de Daniel Sampaio"


Da "Pública" de 17.01.10 consta um texto de Daniel Sampaio intitulado "Fim ao mais do mesmo" integrado na série regular dada à estampa sob o título genérico de "porque sim" sobre o qual valerá a pena---desde logo, a mim, como [modestíssimo, embora!] educador---tecer algumas, ainda que breves e sumárias, considerações.

Com esse propíosito presente, valerá a pena, penso eu, começar por uma prevenção: entre mim e o doutor sampaio existe uma divergência teórica de fundo.

Basicamente, aquela que existia e existe entre uma certa psiquiatria tradicional e as propostas apresentadas por homens como Laing, em meados do século passado para ajudar à sua renovação ou ao seu 'refrescamento' epistemológicos.

De facto, na essência, aquilo que D. Sampaio faz como psicologia é naturalmentre integrável numa concepção global de um tipo a que poderá chamar-se com propriedade 'sistémica' ou 'ortodoxa'.

Aquilo que conceptual e, depois, de forma natural, metodológica e normativamente define este modelo genérico de 'pensar psicológico e psiquiátrico' é, na essência, a admissão da sua parte da imutabilidade primária---na prática, radical e/ou absoluta---das condicionantes causais exteriores, históricas, dos comportamentos psiciológicos do indivíduos, i.e. dos "sujeitos" da acção psicológica e psiquiátrica e, por outro, já no plano normativo, a centração da acção do agente da psicologia/psiquiatria, numa teoria de normas destinadas a referenciar estrategicamente e, por conseguinte, sempre e sobretudo, adequar pontualmente os comportamentos daqueles mesmos "sujeitos" à realidade exterior tal como ela lhes inalcançavelmente pré-existe.

É essencial perceber este quadro; esta visão, em larga medida, "metafísica" e essencialmente conservadora da acção psicológica para se perceber a importância das concepções anti-psiquiátricas de Laing e dos diversos "anti-psiquiatras" do século passado.

Para estes, a psicologia e a psiquiatria---as "ciências" [ou, como prefiro dizer: as "ciencialidades"] da mente configuram, na essência, uma fenomenologia de natureza reconhecível e demonstravelmente política [no sentido mais nobre e dialéctico do termo] sendo que o ónus, o "custo" [o custo identitário e, por conseguinte, também 'terapêutico'] da renovação psicológica não reside essencialmente no sujeito mas no "rapport", num certo sentido nobre e determinanhte: orgânico estabelecido entre esse mesmo "sujeito" e a realidade circundante.

Que o mesmo é dizer: a renovação a fazer é tanto do indivíduo como do seu entorno activo sendo que só assim aquele pode fazer jus à designação de "sujeito".

De facto, para as concepções tradicionais, o indivíduo, ao "entrar" na psicologia e na "psiquiatria" funciona muito mais como o respectivo "objecto" do que como o seu sujeito, na medida em que aquilo que se espera dele é uma resposta comportamental e especificamente terapêuta ao meio nunca essencialmente uma mudança partilhada, de forma teoricamente necessária, por ambos.

Neste quadro, designemo-lo por "epistemologicamente ortodoxo", o indivíduo opera na realidasde como o "objeito" ou o "subjecto" da intervenção psico-dinâmica---se não quisermos considerar simplesmente que ele aparece nele como o mero "objecto" daquela intervenção.

A estas ideias ou "ideações" envolvendo uma "psico-ciencialidade" ortodoxa e outra contrária a essa ortodoxia costumo eu agregar as minhas próprias ideações envolvendo o que chamo "trickle-down societations" e "shedding societations".

Que entendo eu por estas [sempre discutíveis, admito] designações?

Muito simplesmente o seguinte:entendo eu que, na natureza, os mecanismos de emergência e, em alguns casos como nos das espécies conscienciais ou conscienciadas operam segundo uma espécie de linha determinante contínua---uma "ciência" ou um saber genetizados, genética e, noutros casos, molecular, atomicamente fixados---que mantém a realidade tessitariamente unida a si mesmas, numa espécie de movimento descencional contínuo onde ela nunca essencialmente sofre interrupções funcionais e, por conseguinte, emn tese, também globalmente formais.

Neste modelo a realidade "escorre" ["trickles down"] dos paradigmas "genetizados" ou "molecular/atomicamente fixados" para os "indivíduos [ou "individuações significadas"] respectivas, de forma natural---e seguindo, aliás, a meu ver, um padrão genérico de "volução" tópica contínua, expansional e estruturalmente desintegrativa da realidade que, em tese, se iniciou com o "big bang".

Na espécie humana [Freud é indispensável para se perceber a essência de alguma desta fenomenologia!]; na espécie humana, dizia, o processo descentra-se funcionalmente relativamente aos modelos tradicionais anteriores de "des/multiplicação significada da realidade" [modelos esses em cujo contexto o 'indivíduo' é, de facto, muito mais a tal 'individuicidade funcional' a que atrás aludo do que propriamente um 'indivíduo' em si] e recentra-se, em seguida, nos indivíduos sem perder, porém, a forma global construcional "descendente" ou "descencional" do modelo para o indivíduo---processo em que as 'ideações' envolvendo o "Édipo" e a "Electra" freudianos [por muito que eles possam ter sido circunstancial e ocasionalmente hipervalorizados pelo Mestre] desempenham um papel referencial verdadeiramente nuclear e capital.

Ou seja: ao definir-se, a consciência tradicional "copia significadamente" o real e conserva-se, desse modo, criacionalmente como parte dele.

A formação desta consciência tradicional configura na base um acto essencialmente ecológico e natural que as formas imediatas de societação valorizando nuclearmente a velhice, a "senioridade" básica e, sobretudo, naturalmente funcional [que também pode ser---e é---institucional nos modelos tradicionais do que chamo "societação"] integram e recriam na cultura dos indivíduos e das sociedades.

Os pais [e as mães!] são o modelo natural dos filhos, havendo, nos modelos tradicionais de societação, uma espécie de percepção funcional abstracta da "democracia", de "democracia natural", com eco na existência concreta dos indivíduos e das sociedades poer eles formadas.

Ou seja: quem detém o saber [seja ele, um "saber genético" ou "adquirido", empírico] detém, de igual modo, naturalmente a autoridade---essencial à sobrevivência da espécie.

À medida que "copiam", genética mas também---estamos a falar de espécieas conscienadas onde "já há" auto/demonstravelmente "indivíduos"---experiencialmente "os velhos", os indivíduos jovens vão ganhando, de forma natural, o direito [e o Direito!] à igualdade fundamentada com eles---i.e. um estatuto lógico [de facto, eco-lógico] preciso, mas sobretudo natural, na comunidade.

É disto, desta mecânica específica de aquisição de estatuto social que falo quando falo de "democraticidade ecológica" ou "natural.

A prazo, todo deste modelo de percepção e de "habitação cultu(r)al da realidade" vai-se desmoronar [o modo como a sociedade industrial toma, no século XIX, a liderança da condução da História e da definição dos respectivos padrões particulares, específicos e determinantes, de "desenvolvimento"---para além do facto determinante envolvendo o modo como ela vai redistribuir social e politicamente a propriedade particular do conhecimento---vai ser decisivo para essa "revolução" operada também no plano dos padrões cultu(r)ais de relacionamento global da espécie com a realidade] e entra-se no que chamo o paradigma "shedding" de societação nas diversas sociedades sobretudo europeias e norte-americana.

De acordo com este, os padrões globais de "volução" do real perdem, a dado passo, por completo o seu "centro determinacional"; perdem aquela lógica descensional contínua que mantinha o real ininterruptamente ligado a si próprio tecnologia e vai surgir um modelo conceptual inteiramente novo---e inteiramente pós-ecológico---segundo o qual a realidade se vai ver forçada a reiniciar-se sucessivamente não a partir de modelos naturais situados atrás dos indivíduos e antes deles [onde já não está o saber determinante que foi, entretanto privatizado e entregue a uma classe sacerdotal económica e, depois, económico-política] mas da experiência pura desses mesmos indivíduos, operando-se a aquisição social de saberes [sempre de natureza secundária e de mera manutenção] in/essencialmente por descarte, isto é, através de experiências ou de experienciações, de um modo ou de outro, inteiramente autónomas e/ou 'puras' do real as quais vão sendo, sucessivamente, descartadas ["shed"] e substituídas por outras igualmente novas quando se descobre que as anteriores 'falharam' i.e. quando se estas revelaram circunstancial e circunstanciadamente a-funcionais ou até, não-raro---o processo favorece-o claramente!---completamente dis-funcionais.

A "democracia" perde o seu fundamento orgânico e necessário que era a propriedade tribal do saber e aqueles que o detinham e reprojectavam sobre a comunidade o seu valor referencial orgânico.

Ora, voltando ao início destas notas, aquilo que faz a psicologia 'ortodoxa' de que comecei por falar é, na sua in/essência, tentar encontrar as soluções técnicas e teóricas para refuncionalizar onde e como possível a própria disfuncionação sofrida pela realidade com a ruptura dos pardigmas ecológicos de habitação cultu(r)al e social da realidade.

Lido com a atenção crítica que justifica, o texto do Dr. Sampaio revela-se excepcionalmente eloquente no modo como envolve uma óbvia [e, a meu ver, absurda, bizantina] teorização em torno da claríssima desvalorização do papel, anteriormente determinante, nuclear, dos modelos parentais; limita a emergência dos fenómenos psicológicos, de forma completamente a-histórica e a-política, ao domínio social e politicamente descontextual, etéreo, de uma "ciência psicológica pura", actuante de forma [quase?] exclusiva e, de facto, a-dialecticamente "metafísica" fora até do Tempo, sempre simulando, porém, integrá-lo ["os pais de hoje", "os filhos dos nossos dias"]nas suas cogitações de episteme, ignora, numa palavra, completamente a "forma causal" mesma, última [ou, como prefritro dizer, copiando eu próprio do inglês "ultimate": "ultimativa"] do real.

Um exemplo deste carácter "metafísico" da "psicologia "pura" proposta e exaustivamente argumentada no texto?

Fala, por exemplo, o autor da perda individual de auto-estima como causa de disfuncionalidade relacional familiar.

E como o faz ele?

Equacionando-a como um fenómeno estr[e]itamente "técnico", resultante de quadros causais puros fechados [equacionando-a como um fenómeno "técnico" e mais ou menos "psicologicamente puro"] para o aqual não contam factores objectivos, hoje-por-hoje, incontornáveis e determinantes---factores sistémicos---como a pobreza, o desemprego, a desestruturação socuial nas suas várias formas de onde uma grande parte da perda moderna---e pós-moderna---de auto-estima é, obviamente, 'importada' para o interior das famílias.

Equacionando-o como um fenómeno---e uma "fenomenicidade" absolutas---onde a ruptura dos modelos orgânicos ecológicos de relacionalidade intrafamiliar de sinal organizadamente descencional não só não estão contemplados como são activamente ignorados, com recurso a uma linguagem irrelevantemente poética [volto a questionar: quase?] completamente vazia ["o papel dos adultos junto das crianças deve ser o de compreender e dar apoio", etc. etc.]---meros truísmos eufónicos de sucesso popular garantido que nada significam, porém, e que, a meu ver, como educador, não possuem um mínimo de relevância operativa substancial ou pior ainda substantiva, quer no plano especificamente educativo quer até, atrevo-me a dizer invocando precedentes [realmente inovadores e epistemologicamente estimulantes, do pontro de vista da fundamentação credível das práticas pedagógicas a que estou profissional e vocacionalmente ligado, como o de Laing] psicológica.


[Imagem ilustrativa representando R.D. Laing, extraída com a devida vénia de Lainginstitut.ch]