quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

"Paul Newman" [Texto em construção]


Paul Newman: de "Marlon Brando dos pobres" [hoje diríamos: "genérico do Marlon Brando"] ao reconhecimento como actor [e que actor!] 'com vida própria'.

Como Brando [e Montgomery Clift, Eli Wallach, Ben Gazzara, Al Pacino ou Earl Holliman para citar apenas alguns] discípulo de Lee Strasberg e seguidor do "Método", foi um intérprete brilhantíssimo, desde logo, dos à época incontornáveis e absolutamente referenciais "jeux de massacre" dramáticos, caracteristicamente seminais e, de um modo ou de outro, sempre escatológicos de Tenesseee Williams ["Sweet Bird Of Youth" com uma sublime Geraldine Page e muito especialmente "Cat On A Hot Tin Roof" com Elisabeth Taylor e Burl Ives] .

Era um actor extremamente versátil e com ideias próprias [o "Método" potenciava, como se sabe, a iniciativa do actor valorizando nuclearmente o seu contributo pessoal para a composição da personagem, à boa maneira stanislavskiana] o que teve como consequência, durante a rodagem de "Torn Curtain", um choque, de resto, já aqui referido, com Hitchcock que, enquanto cineasta, foi, como se sabe, um homem reconhecidamente pouco dado a partilhar a concepção e a gestão dos projectos fílmicos envolvendo o seu nome, um homem assumidamente directivo e até manipulador, centrando em si toda a concepção e realização, concreta, material, dos filmes que começou a poder fazer a partir de dado momento da sua brilhantíssima carreira.

A propósito da participação de Newman no filme recorda um conhecido biógrafo de Hitchcock, Donald Spoto, a admissão do próprio Hitch de que lhe faltaria à época [e cito] "o interesse, o engenho e o estímulo das suas obras recentes" [Cf. Donald Spoto, "A Arte de Alfred Hitchcock", ed. port. RBA Coleccionables, S.A. Barcelona 2004, pág. 289].

Ora, daqui terá, segundo Spoto, nascido a comparativa [e ao mesmo tempo paradoxal tratando-se, como também nota Spoto de um filme onde o fogo e as chamas estão sempre presentes como leit motiv da própria narrativa] "frieza" final do objecto estético e narrativo em que resultou o filme.

A ele se refere Spoto dizendo tratar-se de "um filme com um certo conteúdo intelectual, muita elegância e dignidade, mas com pouca força emocional, exceptuando uma ou outra sequência mais apelativas [ibid. loc. cit.].

Ora, do meu ponto de vista pessoal dessa possível natureza "gélida" final do filme não poderão dissociar-se, ao menos em termos objectivos, objectuais---e, neste sentido, o filme funciona especialmente bem, em meu entender] por um lado, a proposta feita por Hitch de discorrer cinematograficamente sobre um não-lugar ou um deserto cultu[r]al abstracto, ontológico, kafkiano ou para-kafkiano [algo, aliás, muito característico de um realizador cujo definitivo "North By Northwest", por exemplo, é 'puro Kafka'---"Das Urteil"---revisto por "alguém que gostava muito de Lubitsch" ou que tinha, pelo menos, com este, factuais analogias de visão do mundo e do cinema...]

O projecto de discorrer sobre isso e sobre [mais uma vez] um homem---que é Newman/'Michael' e que, somos, no fundo, todos nós---perdido nele, errando nele, como num pesadelo, incapaz de comunicar o sentido da sua errância e da sua procura [da sua "quest", da sua "quest for sense", como diria um falante anglo-saxónico] algo de que o "segredo" que guarda de Julie Andrews/'Sarah' opera como um conteúdo imediato, em termos freudianos do conteúdo latente que é aquele que referi.

Por outro lado, da suposta "frieza" do filme não pode, de igual modo, dissociar-se [na prática, interpotenciam-se conferindo ao filme um sentido ulterior reencontrado para a "frieza" em causa] a alegada falta de inspiração de Hitch e a própria visão stanislavskiana, fortemente intelectualizada e consistentemente racionalizada, premeditada, centrada na técnica e na dramática e na reconstrução metódica do filme pelo intérprete, trazida por Newman para o filme.

Nesta perspectiva, mau grado a opinião de Hitch, o contributo de Newman para o sucesso final de "Torn Curtain" revela-se, em meu entender, em última instância, verdadeiramente crucial.

Já não concordo, diga-se de passagem, com Spoto quando estabelece um quadro analógico particular do filme com o nmito de Orfeu e Eurídice: na verdade, se analogia existe, ela está na esmagadora maioria do cinemas de Hitch, associado àquele registo mais ou menos disfarçada ou mais ou menos obliquamente kafkiano que sempre, de um modo ou de outro, o marcou e o torna, afinal, tão moderno e tão 'sério', como muito perspicazmente perceberam Chabrol, Truffaut e os "Cahiers" que o reabilitaram e primeiro trouxeram para o 'Cinema com maiúscula'.

Onde, todavia, volto a convergir para a visão de Spoto é quando este valoriza o elemento fogo na concepção e no desenvolvimento pontual da narrativa.

Esse é, aliás, um dos motivos pelos quais a escolha do "leading couple" [onde o impositivo e energético Newman é o "Fogo"---de que, por todo o filme proliferam, como já se disse, os 'sinais' e Andrews o seu contrário, i.e. o obstáculo material à assunção e afirmação do fogo mas também a pedra de toque e, em última instância a "constante dialectizadora" por conseguinte "dialecticamente possibilitadora"] resulta tão bem.

Num certo sentido, "Torn Curtain" com a sua aparência "matemática", "geométrica" se assim se quiser dizer, é um filme sobre os elementos: o Fogo mas também a terra [lugar obsessivo de errância existencial e figuradamente metafísica---recordem-se, para citar apenas duas, as sequências do campo a perder de vista em "Torn Curtain" e, sobretudo, em "North By Northwest" onde Hitchcock, como tantas vezeas tenho dito, fez "O" filme pelo qual será, em última instância, "julgado" como artista] e sobre o Ar que, vazio e hostil nas mesmas, prolongha naturalmente o espaço do "void" terrestre.

A Água, símbolo de vida, não cabe facilmente nerste quadro e, por isso, anda geralmente ausente...

Ora, em "Torn Curtain" a "inteligência dramática" intensíssima de Newman revela-se, como disse, vital para dar corpo e rosto a esta luta de elementos, em particular do Fogo [neste quadro, metaforizado, digamos assim, na sua intensa e activa lucidez, na sua obsessiva solidão---sempre a sugestão da incomunicabilidade obsidente dos pesadelos, algo tão tópico no cinema de Hitch---mas, de igual modo, determinação] lutando com as sombras de uma angústia que ganha formas concretas para melhor afirmar, em última análise---"en fin de partie", diria Beckett...---o seu carácter universal e abstracto no sentido de funcionar como algo comum a toda a condução humana.

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