segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

"Da democracia e da mera «demomorfia instrumental»---algumas reflexões pessoais a partir de um escrito de V. Moreira no «Público»"

Um artigo de Vital Moreira no "Público" [numa edição, a de 21.08.09, saída directamente do meu 'bem-nutrido' arquivo pessoal de recortes e 'lugares selectos' da imprensa nacional] intitulado "Equações eleitoriais" fornece-me o ensejo imediato para regressar aqui à velha [e nunca resolvida!] 'questão' da qualidade da democracia entre nós.

Diz Moreira, a dada altura entre diversas outras coisas que são, basicamente, constatações de evidências várias, que no caso português [e começo a citar] "embora seja possível a formação inicial de governos minoritários, a sua sustentabilidade é escassa, desde logo porque podem ser derrotados nas suas propostas legislativas e orçamentais por coligações negativas dos partridos da oposição".

E acrescenta: "Mesmo que possam chegar ao fim da legislatura---e isso só sucedeu uma vez (primeiro governo de Guterres, 1995-1999)--, [sic] trata-se de governos enfraquecidos, sempre na iminência de serem obrigados a executar políticas aprovadas pelas oposição contra si".

Ora, vale a pena, penso eu, a todos quantos aos problemas da vida da Cidade atribuem a mesma crucial importância que lhes atribui o autor destas linhas, reflectir um pouco sobre um conjunto de aspectos e questões levantados pelo texto ou susceptíveis o serem a partir dele.

Para começar: um dos maiores problemas da democracia portuguesa actual é, do ponto de vista do signatário, sem dúvida, o modo como ela concebe [e como expressa institucionalmente] a ligação entre poder representativo e respectivos representados ao longo de cada ciclo eleitoral.

Já por mais de uma vez, aliás, aqui tiva ensejo de repeti-lo: o que, fundamentalmente, define a essência da democracia é a circunstância de aquilo que é negociado e contratado entre a base e o topo da arquitectura democrática ser o exercício institucional e funcional do poder---em caso algum o próprio poder.

O poder negoceia-se---e cede-se: é materialmente cedido pelas massas aos agentes políticos efectivos---nas autocracias plebiscitárias, nunca nas verdadeiras democracias [seja lá o que for que isso, concreta muito e muito circunstanciadamente signifique---mas essa é outra questão que não vem agora aqui especificamente ao caso].

Ou seja: as democracias são tanto melhores i.e. estão tanto mais próximas de uma possível idealidade democrática teórica e prática quanto mais organicamente ligadas se conservarem ao longo de todo o processo de exercício do poder representativo ligadas entre si, de facto como de direito, a base e o topo da cadeia funcional democrática.

Ou seja, dito de outro modo, ainda: sendo, por razões óbvias, impossível de realizar, no modelo representativo, o tipo de mecânica decisional mais ou menos instantânea próprios da democracia directa---a democracia em tempo real---é, no entanto, desejável [e objectivamente possível!] que a temporicidade, no contexto do funcionamento da democracia representativa, se mantenha tão coesa e orgânica quanto possível, devendo, para tanto, os diversos institutos jurídico-políticos de natureza institucional do sistema estar concebidos de modo a evitar, sempre, que aquela temporicidade, na prática, se desdobre ou se des-integre num paradigma indesejavelmente dual e disfuncionado constituído por um "tempo decisional" [centrado nas mãos do 'poder' e] operando objectivamente como algo de completamente independente em relação um segundo tempo, simples e inertemente "crítico" ou mesmo até apenas "opinativo" e "moral", reservado este ou estes às 'massas' populares, isto é, à cidadania.

Ora, este "tempo crítico", numa democracia genuína, nunca pode permanecer inerte: na verdade, é ele que permite medir, aí sim, em tempo real, a "temperatura democrática" do sistema e atestar assim da respectiva "saúde funcional" sendo que é precisamente por isso que o conjunto de informações que ele fornece deve idealmente ser, de forma contínua e organizada, identificado por mecanismos internos do sistema e por este tão imediatamente quanto possível reinvestido no curso posterior da vida democtrática.

Não sendo possível, repito, a figura do 'tempo único', indissociado ou "tempo real" na democracia representativa é, porém, essencial para a saúde epistermológica desta que essse reinvestimento orgânico do tempo crítico" na vida democrática se faça a fim de evitar a 'deriva esquizofrénica' que as maiorias absolutas configuram e que transforma a democracia numa mera "demomorfia instrumental" sem conteúdo, cívico e político, próprio.

O que isto quer dizer por outras palavras é que, nos bons sistemas democráticos, o poder funcional está obrigado, por definição e consequentemente por imperativo institucional, a responder a todo o momento perante a cidadania---i.e. os respectivos representado---e nunca apenas e/ou realmente perante si próprio.

Como acontece, igualmente por definição, volto a dizer, nas maiorias absolutas: as tais que Vital Moreira define a contrario por regimes "fortalecidos", talvez ["enfraquecido" vs. "fortalecido"] ou outra coisa qualquer do mesmo género.

Ao contrário do que deixa dito no seu artigo V. Moreira, o grande problema da democracia não reside no facto de as propostas do poder serem, na sua própria expressão, "derrotadas" pelas oposições.

Estas estão lá, de algum modo, também para isso---i.e. para contraporem propostas às do próprio poder---e não representa democraticamente dano ou disfunção alguma [precisamente, ao contrário!] que as do poder sejam eventualmente "derrotadas", como ele diz.

O grande problema é [i] se o são em resultado de mero jogo de interesses tácticos dos partidos e/ou [ii] se o são por outras piores.

Ora, precisamente isto evita-se se, na arquitectura institucional democrática séria, genuína, efectiva, estiverem contempladas as formas de reinvestir no exercício da democracia o "tempo crítico" que [digamos assim:] "vem da cidadania e representa a voz desta, em tempo real.

Sucede que isso falta objectiva, sistemática e, sobretudo, sistemicamente entre nós.

Falta a expressão institucional da voz das maiorias em tempo real por falta de interlocutores orgânicos do próprio poder expressamente consagrados nos institutos da do sistema.

Aqueles podiam, como tantas vezes tenho dito, estar nas "comissões" que o 25 de Abril trouxe para a vida política nacional de forma embrionária e o 25 de Novembro voltou objectivamente a retirar desta e que poderiam e a meu ver, deveriam fazer-se eco, constituir-se em porta-voz da cidadania, operando então como os tais interlocutores orgânicos ou sistémicos do poder de que o sistema político em Portugal, em meu entender, manifestamente carece.

Em qualquer caso, é sintomático [e eu queria sublinhá-lo aqui, por isso, de modo muito especial] o modo como Moreira concebe o exercício do confronto orgânico de ideias no seio do poder democrático: como um combate com "vencedores e "derrotados"---que ele, de resto, até pode ser---só que para o autor do artigo [e isso mostra o modo como implicitamente de dentro do poder se pensa toda a mecânica representativa como tal] tanto vencedores como "derrotados" estão confinados ao estrito e estreito âmbito das forças parlamentares partidárias, como tal.

Como se todo o exercício do poder se esgotasse ali e se medisse pela informação dali proveniente sem ter de passar pelo crivo determinante da vox populi fornecendo idealmente o 'feedback' ressituador, revitalizador---e, sobretudo, definidor ou redefinidor de cursos precisos dentro da mecânica democrática.

É precisamente este fechamento, esta falta sistémica de 'arejamento cívico e político'; esta persistente [e consistente!] 'claustrofobia institucional' que muito hábil e muito subtilmente se mascara de funcionamento 'normal' da democracia aquilo que, em meu entender, faz disfuncionar na base] todo o sistema e o descaracteriza por completo mesmo não parecendo, exteriormente, fazê-lo.

Digamo-lo muito claramente: o poder não pertence a quem o desempenha funcionalmente por representação: a "derrota" circunstancial de uma ou várias propostas vindas da área do poder significa, de facto e de direito, apenas e só isso mesmo: uma derrota da capacidade das pessoas que estão no poder e que o pensam para dar resposta àquilo que a comunidade entende serem as suas aspirações e legítimos desejos.

Não representam, a não ser para o próprio poder e para quem o representa, necessariamente uma derrota.

Só quem concebe implicitamente o poder como "coisa sua" pode pensar o contrário.

Aliás [e é precisamente isso que não entendem ou fingem não entender] quantos preconizam constantemente a formação das tais maiorias 'absolutas' a democracia é-o precisamente quando e porque no núcleo mesmo dos seus mecanismos básicos de decisionalidsde política se encontra a necessidade inalienável de vencer pela bondade dos argumentos como essencialidade decisional nuclear e não pelo mero peso do número.

Volto a dizer: se os argumentos forem bons, as propostas só podem, em tese passar.

Agora o que é fundamental é que toda a cidadanias disponha de meios para conhecer o conteúdo das propostas assim como de instrumentos concretos que lhe permitam aferir realmente e em tempo real da sua qualidade e expressar as suas posições ao poder que, ao tomar as suas deliberações, já sabe exactamente como pensa a maioria sobre a qual vão necessariamente incidir os efeitos delas.

Ou seja: é vital para a democracia que as deliberações envolvendo os interesses de todos não resultem de mecanismos decisionais impostos pelo número e/ou aferidos exclusivamente no estrito círculo do poder, deixando à cidadania a única prerrogativa da "crítica" ou da "opinião" disfuncionalmente utilizada como sucedâneo completamente inerte do poder e após o poderr se ter exercido.

É, de resto, precisamente esse "após" sistemicamente "encravado" ["planted"] no próprio seio do exercício democrático como tal [deixando ao eleitorado, exactamente em consequência da des-integração dos tempos da democracia, o mero poder; o não-poder meramente "moral" de... des-votar ou des-eleger a posteriori governos e pessoas em vez de começar naturalmente por votar nus e noutras e elegê-los a todos]; é, de resto, dizia, esse modo de conceber o exercício da democracia como a escolha não do futuro mas, sem qualquer ironia, do passado 'ideal' que aproxima o que, em teoria, é ainda uma democracia da tal 'demomorfia instrumental plebiscitária' ou mesmo de um "autoritarismo formalmente consentido" de que atrás falo.

O texto de V. Moreira ajuda a perceber como o tipo de ideário que subjaz a este argumenta e, desse modo, se identifica a si mesmo---e, em última análise, auto-define.


[Na imagem: gravura satírica da época da Revolução Francesa, extraída com vénia de ocontodassombras.com]

Sem comentários: