sábado, 16 de janeiro de 2010

"Sobre alguns aspectos da génese do conceito 'teórico' de 'humanidade em situação'---algumas reflexões pessoais" [texto em construção]


Em conversa muito recente ainda com as Amigas "Ezul" e "Ava", voltou a ser abordada aqui aquela que é, por razões óbvias, a grande questão de momento; aquela a que, a mim pessoalmente e, com certeza, a inúmeras outras pessoas por esse mundo fora, tem [no meu caso, quase obsessivamente!...] ocupado o espírito nestes últimos dias: o terramoto no Haiti.

De um modo ou de outro, todos deplorávamos o modo como está organizada a solidariedade para com as vítimas que, agora são haitinanos como ainda não há muito eram timores e antes outra coisa qualquer, igualmente pobre, cronicamente sofredora e, inevitavelmente---de forma, regular e, num certo sentido, até 'natural'---abandonada por todos.

Tive, então, ocasião de qualificar---senão mesmo, de algum modo, de [pré] definir já---muito sumariamente, embora, esse modo [que é típico e que é, sobretudo, de um modo mais amplo e mais estável: tópico]; esse modo descontínuo, casuístico, circunstancial e in/essencialmente inorgânico; esse modo generoso, não se duvida mas também pontual, circunscrito no tempo e sempre excessivamente direcccionado e datado de partilhar da dor dos outros ou de manifestar por eles solidariedade; tive, então, dizia, ocasião de qualificá-lo como "uma coisa cultural".

Generosa, repito mas frágil e, no fundo, sempre fugaz, sempre efémera---e sempre, por isso, também intrinsecamente insubstantiva.

Cultural, disse.

É verdade---e cultual, também.

De algum modo, até sobretudo cultual.

Estou mesmo firmemente persuadido de que, mais uma vez neste 'caso', o cultual precede---e determina!---a forma abstracta particular e específica do cultural.

É, com efeito, a meu ver, impossível dissociar o nosso modo, insisto: cultu(r)al, em meu entender, caracteristicamente inorgânico de ver o exercício concreto da humanidade de uma concepção ou conjunto de concepções afins, muito próprias, do mundo que possuem todas elas a característica comum de colocarem o humanismo sempre na dependência de uma abordagem anterior determinante de sinal topicamente teocêntrico da realidade---abordagem essa que, sem grande dificuldade, deriva, de forma reconhecivelmente cíclica, pendular, historicamente demonstrável, para a subalternização persistente da acção---da importância da intervenção---humana, individual e colectiva, no processo amplo de transformação histórica da realidade e, de um modo muito particular, mais lato ainda, dessa mesma acção humana como geradora directa de sempre mais realidade, digamos assim.

Da acção humana como definidora [dentro dos limites do objectiva ou do objectualmente possível, como é evidente] da própria forma ou formas ulteriores estáveis da realidade.

Da própria forma ou formas a tomar por esta.

Como determinante nuclear do próprio curso particular da História, se assim preferirmos, de um modo mais concreto e mais específico---mais próximo e mais político, num certo sentido profundo e também nobre---dizer.

A minha ideia ou a minha... "tese" pessoais envolvendo uma "tanatopia" ou "pensar tanatópico" nacional como grande "motivo fundador" de uma certa identicidade colectiva nacional, radica, aliás, especificamente aqui, na existência estável, persistente, em determinados níveis da [sub?] consciência nacional, de uma pulsão latencial, com frequência, de um modo ou de outro, obsidentemente teocêntrica [e, depois, naturalmente teocrática] sempre latente "em potência", como diria S. Tomás de Aquino, naquele acervo de 'concepções fundadoras' de que atrás falo---pulsão essa que, volto a dizer [mesmo correndo o riscio de me repetir] tende ciclicamente a vir '[re] contaminar', de forma mais ou menos cíclica, os nossos paradigmas cultu(r)ais estáveis, concretos, de relacionamento com o conjunto do real e, de um modo muito particular e específico, com os outros seres humanos.

Com a "outridade" ou "alteridade", como tal.

Com "o Outro".

A nossa "ideia de História" [usando aqui, num sentido quase 'categorial', chamemos-lhe assim, uma semântica e uma conceituação que Collingwood consagrou num título célebre] passa inevitavelmente por colocar o sentido da própria História fora dela e para além dela---mas não só: passa, de igual modo, central, determinantemente, por reportar sempre a própria História "com tudo quanto ela tem---ou pode ter---dentro" a um sentido final; a um horizonte último, muito platónica ou muito neo-platonicamente situado "a toda a volta dela"; solidamente instalado nos "instantes teóricos" [numa teoria ou sistema pré-definidos desses "instantes"] que a antecederam; um horizonte vocacionado para usar os factos, as circunstâncias concretas do real, como um "espelho ôntico" de onde aquela "imagética arquetipal" é continuamente reprojectada para um [em última análise, por isso, falso, puramente aparencial] "futuro" rigorosamente simétrico ou simetriforme do 'passado ideal' que a "História" está fatalmente condenada a "demonstrar"---ou, em alternativa, a "morrer culpada" por não tê-lo feito...

Em qualquer caso, para esta visão do real, a História verdadeiramente "não existe".

Isto é, não existe realmente.

Configura sempre, pelo contrário, uma mera abstracção---ou, ao invés disso, se assim preferirmos dizer: uma simples concretação des/estruturalmente secundária, ancilar, da sua própria forma ideal---e, nesse sentido básico, primário---a tal inexistência-em-si de que acabei de falar.

Parece, pois, óbvio que, neste quadro, o papel destinado à acção humana; à intervenção humana no "shaping" concreto do real; na sua transformação e condução está, ele próprio, antecipadamente condenado à irrelevância, à insubstancialidade ou insubstantividade objectivas---e naturalmente 'fadado' para todas elas.

A própria acção humana [enquanto "categoria ontológica e/ou teórica" do real, chamemos-lhe assim] é, na sua in/essência, um mero "eco circunstanciante" do tal 'ideal que precede a História' [a História, não existindo, precede-se, de facto, sempre a si própria; o futuro, como disse, não existe: na ir/realidade, "já aconteceu" todo "antes" e está apenas a contemplar-se a si próprio no 'objecto especular' completamente inerte e irrelevante-em si-que é História e/ou que são são os "factos"]---sendo que o 'ideal', a "primeira e pura História" usa, sempre---nunca será de mais insistir neste ponto!---a condição humana para demonstrar-se a si mesmo, "atravessando", por assim dizer, a própria [in] aptidão natural e estrutural desta para projectar a sua própria vontade [e para projectar o seu próprio desejo, também] sobre os segmentos ou sequências da [ir] realidade circundante com os quais lhe cabe especificadamente coexistir, por assim dizer.

Ora, é este modo a que chamei 'tópico' de organizar teórica [ou... teoreticamente] a realidade [sempre de um modo ou de outro, estável e latentemente desumanizador, insisto] que se reflecte---de forma, aliás, em meu entender, demonstrável---no nosso modo igualmente tópico, cultu(r)al, de exercer circunstancialmente a 'humanidade': como algo que, de facto, em última instância, não nos "pertence" enquanto efeito natural do nosso próprio arbítrio e vontade mas, exactamente ao contrário, como algo que nos é ditado pelo próprio ideal manifestando-se, de forma [chamemos-lhe:] 'imanente', nas circunstâncias e chamando-nos, desse modo---sempre de um modo ou de outro, docilmente---àquele modo de "virtualidade volicional" ou "volitiva", no fundo "pura", que imaginamos ser a "acção".

O que eu digo para concluir é que, enquanto não percebermos todos que a História, num certo sentido muito concreto e preciso, ou é feita por nós ou está condenada a fazer-se a si mesma com todas as indesejáveis e disfuncionais [indesejáveis porque disfuncionais] decorrências desse processo de "auto-gestão" em que estamos sempre a deixá-la cair; o que eu digo para concluir, então, é que, nesse caso, a "única História" e a única humanidade [a única "Humanicidade"] que nos restam são aquelas que as coisas e as circunstâncias nos impuserem e que nunca serão, por isso, nem uma nem outra, real e verdadeiramente nossas...


As nossas.


[Na imagem: composição geométrica de Piet Mondrian]

Sem comentários: