Domingo: o insubstituível canal ARTE trouxe mais um dos seus inestimáveis "dossiers", desta vez sobre a droga.
Incluído nele, passou um injustissimamente esquecido filme de Henri Decoin baseado numa obra de Auguste Le Breton, o criador dos célebres "Riffifi" de um dos quais, aliás, vá-se recordando, o mais interessante, "Du Rifffi Chez Les Hommes", Jules Dassin extrairia uma obra absolutamente exemplar homónima [que, já agora, recorde-se também, serviria de ponto de partida para uma das mais brilhantes comédias do mestre italiano Mario Moniccelli, "I Solitti Ignoti" que curiosa---mas não muito felizmente, também...---correria aqui ao lado em Espanha com o verdadeiramente improvável título de "Rufufu"...].
A obra a que me refiro intitula-se "Razzia Sur La Chnouf" e foi, pois, como disse, adaptada ao cinema por um inspiradíssimo Decoin que com ela montou um "polar" rectilínio, directo, seco, sombrio, nocturno mesmo, claustrofóbico, documental, geralmente sóbrio e bem fotografado, com ocasionais [mas mesmo apenas ocasionais...] escapadas na direcção do "tablóide"---um documento notável de uma França talvez aqui e ali paradoxalmente um pouco hollywoodesca mas inquestionavelmente cinematográfica com um Gabin que aqui mais uma vez faz o que John Wayne fazia em Hollywood e com um rosto até fisicamente muito semelhante---e fá-lo bem ao lado de um Lino Ventura eficientíssimo como sempre e de uma Magali Noel, também ela, muito particularmente convincente.
Se alguma coisa falta ao filme é, diria eu, aquilo que "Rififi" de Dassin ou "The Killing" de Kubrick, filmes com algumas semelhanças [quanto mais não seja na ambiência, nessa sugestão de descida aos infernos urbanos---aos bastidores ] têm: um ponto de vista, uma perspectiva meta-textual, digamos assim.
Em ambos os filmes citados, o de Dassin e o de Kubrick, essa perspectiva é, em última instância, política e envolve a crítica implícita da democracia que, para além de gerar naturalmente um lado negro e subterrâneo que se esquiva à normalidade e à ordem por ela estatuída, possui ainda a pouco louvável caracteristica adicional de ser objectivamente selectiva e discricionária no modo como distribui o sucesso que, todavia, de um modo ou de outro, apregoa como grande qualidade sua, gerando sempre, ao lado do triunfo social e económico, fatalmente também e em simultâneo, avesso dessas suas promessas nobres, digamos asssim.
O falhanço dos ladrões de "Rififi" [de onde, como disse, Moniccelli extraíu uma fabulosa lição de ordem social e até---quase?---expressamente política] é uma metáfora clara disso mesmo: dessa aptidão natural da democracia para gerar marginais e excluídos que ela devora e imola ao seu próprio triunfo hisdtórico e político como sistema.
Ora, acontece que a "Razzia Sur La Chnouf" falta precisamente essa componente crítica, opinativa, que permitiria transformar um globalmente muito consistente e muito competente 'documento' num filme verdadeiramente grande e realmente importante.
Mas, situado deste modo, isto é, adequadamente enquadrado na 'categoria' a que, por direito, pertence---a dos filmes respeitáveis e cinematograficamente dignos sem lograrem atingir o estatuto de referências absolutas---é precioso dizer que esta "Razzia..." permanece, ainda assim, como disse, um consistentíssimo momento de cinema.
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