domingo, 31 de outubro de 2010

"A Pilinha é o Limite..."


Diz uma tal Júlia Pinheiro que me garantem ser a "apresentadora" de uma coisa absolutamente inominável e indigente chamada "Casa dos Segredos" que diariamente "nos" chega aos televisores "courtesy of" uma 'borradura intelectual' não menos inominável que dá pelo nome de TVI; diz-nos a tal Júlia, pois, ia eu próprio dizendo aqui [e repete-o sem grandes comentários o "Correio da Manhã" de 19.10.10] que na coisa-em-causa [houve quem me jurasse a pés juntos tratar-se de um programa de televisão mas é questionável, não pude confirmar!...] não haverá "imagens de nudez frontal"...

Devo dizer que sempre achei que a menoridade intelectual nas suas múltiplas formas [e a TVI é, indiscutivelmente, não só das mais comuns, das mais divulgadas como também das monetariamente mais bem sucedidas nessa 'nobre' tarefa a que, desde a sua fundação, devotadamente se vem entregando de multiplicar o seu persistente primarismo e a sua distintiva falta de gosto, espalhando-os generosamente pelos quatro cantos do País...]; devo, pois, dizer que sempre considerei que a menoridade de espírito vai invariavelmente de braço dado com a hipocrisia e o preconceito que, entre indigentes culturais substitui, como se sabe, com evidentes vantagens em termos de quietação crítica e "repouso cultural", o esclarecimento e a lucidez, que é como quem diz: a inteligência, mesmo em doses mínimas.

Ora, o anúncio da Sra. Pinheiro vem, em meu entender, demonstrar como é selectiva a moralidade dos medíocres: pode-se, em televisão, fazer praticamente tudo em matéria do populismo mais primário, da inutilidade mais escandalosa e até ofensiva, do voyeurismo mais saloio, mais soez, mais farisaico e globalmente mais indigno---tudo isso passa, tudo isso é "entertainment" legítimo, tudo isso é "televisão pop", tudo isso é horário nobre, tudo isso é bom e respeitável negócio de milhões...

Pode-se, especificamente, penetrar na intimidade de um lumpen mental e cívico muitas vezes no limite da marginalidade pura e simples [e isto, a avaliar pelo que vem continuamente a público sobre a gente que frequenta o programa, é já ser optimista e generoso, ham?...]; um lumpen que vive dessa singularíssima profissão muito caracteristicamente... "pós-moderna" que consiste em abrir a braguilha em público [as diversas braguilhas de que é composta a privacidade de qualquer pessoa minima e realmente respeitável]; pode-se aceitar receber diariamente em nossa casa gente que faz do indecoroso desbraguilhamento individual e colectivo uma próspera indústria e até uma verdadeira 'cultura' de... massas]; pode-se, dizia eu fazer tudo isso [e ganhar dinheiro com isso!] mas...

...mas a pilinha e o pipi são o limite: não o céu, como no cliché---a pilinha e o pipi!

Sucede que eu sempre defendi que existe [e está muito divulgada entre nós, aliás e desde há muito!] uma anti-natural e genericamente repulsiva "pornografia obsessional da pudicícia" que o é também da auto-repressão e do farisaismo potencialmente psicopatológico, impendentemente patogénico, gerador tendencial de quadros neurotiformes [senão mesmo abertamente neuróticos] cuja evidência enquanto fenómeno social [e especificamente criminal] se tornou ultimamente, aliás, por razões que não vale a pena aqui voltar a especificar, absolutamente inescondível.

Esta cultura da elisão, do "raffoulement" ou do "empochement" completamente arbitrários---da "fetichização negativa" "por... sinédoque" de partes do corpo---confundindo estas com o respectivo uso tem, em meu entender, tudo a ver com o modo como a visão judaico-cristã do mundo, em geral, opera, no plano da formulação de representações tópicas da moral que acabaram por permear para ["that eventually oozed into"] a tradição moral formal ou teoricamente laica ocidental, especificamente católica.

Trata-se de um quadro moral estruturalmente autoritário onde se verifica muito claramente uma dissociação nuclear particularmente disfuncional entre a experiência concreta e os mecanismos básicos de construção de cultura, individual e colectiva.

Ou seja: esta visão essencialmente contra-reformista da realidade moral integra extremamente mal a ideia de autonomia dos indivíduos no que diz respeito à construção e à organização abstracta [mas também concreta!] da propria realidade---pelo que começa logo por cercear-lhe à partida, "roubando-lhe" o corpo, a possibilidade de eles, indivíduos, fazerem verdadeiras opções independentes e, por isso, efectivamente morais nesse domínio.

É uma visão que, em meu entender, não se pode dissociar, como digo, do modo como a tradição judaico-cristã vê topicamente 'o Livro', 'a Palavra', por oposição ao modo como vê ambos a tradição luterana ou calvinista divergente, ao menos como forma ou como «arquitectura genérica do olhar cognitivo e representacional», digamos assim.

Para a tradição autoritária contra-reformista, com efeito, o corpo e o pecado não podem, em última análise, dissociar-se um do outro porque se, teorética e epistemologicamente, puderem ser apresentados como entidades [ao menos tética e dialecticamente] autónomas, existe de imediato, ipso facto, a possibilidade instantaneamente percebida e representada como "disfuncional" de o indivíduo, por um lado, se reapropriar do seu próprio corpo na forma de uma ideia própria deste mas, sobretudo, por outro, de ele se apropriar autonomamente dos usos desse mesmo corpo, questionando, assim, frontalmente a Autoridade na forma de um pensar [e, a partir dele, com base nele] de um agir independentes.

A tradição contra-reformista convive, com efeito, mal ["to say the least"...] com a liberdade em geral; com a liberdade como categoria condicional básica do conhecer, preferindo sempre usar a História e tudo dentro dela como uma ilustração e mesmo como uma demonstração passiva da eternidade, situada esta sempre para além do ["jenseits", numa semântica... nietzschiana] alcance im/possivelmente transformador e até conceptuador [ou re-conceptuador] autónomo da consciência individual.

É verdade que o cristianismo introduziu na História da Cultura Ocidental relativamente às formas anteriores de conceptuação e representação do funcionamento moral da realidade [gregas e romanas] a ideia de "pecado" enquanto representação do comportamento [mais] marcadamente individual enquanto agente no processo de representação teórica do funcionamento global da realidade, retirando-o à arbitrariedade da acção pura ou quase pura do Fado.

Mas não soube---e isso é particularmente evidente, volto a dizer, no caso das sociedades onde a Contra-reforma triunfou sobre a Reforma; não soube libertar verdadeiramente o pecado, tornando-o uma verdadeira e uma genuina "propriedade moral" dos indivíduos.

Essa possibilidade é, de imediato, reinviabilizada pela proibição severa dos usos quer do corpo, quer, noutro plano, da própria História, forçando o indivíduo a cumprir esta última, num sentido amplo, global, em lugar de protagonizá-la e mais ainda: obriga-o a cumpri-la como uma forma de obediência-valor moral que rapidamente se torna também uma realidade política, como amplamente provou o facismo.

Esta "cultura" [e esta obsessão!] da castração cultu[r]al e mental; da ablação teórica do corpo [e especificamente dos órgãos genitais] fica muito clara na ideia inteleccionalmente monstruosa [e objectivamente obscurantista!] de que a questão da Educação Sexual nas escolas [outro problema importantíssimo do nosso tempo e especificamente da sociedade em que vivemos] é antes [e acima] de mais qualquer outra coisa, uma "questão" moral que obviamente não é.

É uma questão científica que não pode evidentemente ser tipificada a partir do seu próprio objecto, que o mesmo é dizer: enquanto área ou domínio do Conhecimento e da Cognição ou da cognicionalidade com expressão académica, designadamente institucional e ainda mais especificamente curricular, nada deve legitimamente "distinguir" a Educação Sexual da Educação Física, Literária ou Linguística ou de outra qualquer das múltiplas Educações que constituem o Conhecimento científico moderno: verdadeiramente científico e verdadeiramente moderno.

Nada deve, dito de outro modo, "significar" [verbo transitivo] "moralmente" à partida a respectiva natureza especificamente epistemológica como o respectivo estudo.

Não é o facto de incidir sobre o corpo [sobre esta ou aquela parte do corpo] que deve estabelecer a base ou o eixo, o vértice tipológico e tipificador dos conhecimentos, do que chamo cada uma das "ciencialidades" que o compõem enquanto objecto íntegro global----do mesmo modo que não é, no caso do tal "programa" de televisão que comecei por referir, a exibição da nudez frontal ou não que estabelece com um mínimo de substância e, sobretudo, de fundamento epistemológico a fronteira moral.

É esta incapacidade nuclear in/essencialmente contrária à possibilidade objectiva de formulação um pensamento verdadeiramente científico; esta incapacidade de discernir entre o corpo e os seus usos [a moral deve naturalmente incidir sobre os usos, não sobre o corpo em si que, como é óbvio, é algo moralmente neutral, algo intrinsecamente objectual] que explica que se continuem a considerar pornografia o conjunto da maioria dos actos que têm o sexo e a sexualidade por objecto.

Que se considere pornografia o que os tem porque os tem.

[Existe, como é sabido e consta, aliás, da própria lei uma "distinção"---tão desprovida, de resto, de fundamento credível como aquela de que atrás falámos---entre sexo com e sem penetração: o primeiro---que curiosamente envolve ou pode envolver, representações sublimadas ou sublimacionais de auto-repressão...---é legalmente "erotismo"; o segundo é, nos termos da lei, "pornografia"...]

Não deixa de ser curioso [e nada gratuito, nada mesmo!...] que o sexo "bom" [ou "menos mau" porque, no fundo, "não há" sexo "bom"...] seja o que assenta, afinal, no escamoteio e na auto/repressão implícita, pressupostamente revalorada da própria natureza: há, de facto, uma ecologia da sexualidade que é ali a priori violada---nesta se reflectindo, aliás, o próprio fundamento, a essência mesma, do que chamo a "pornografia da pudicícia" ou "por pudicícia".

Mas voltando um pouco atrás, insisto: é aquela incapacidade des/estruturalmente acientífica e mesmo anti-científica para distinguir entre fenómenos ou [seja-me permitido que recorra aqui ao uso de uma semântica completamente pessoal:] "sequências causantes ou causacionais", fenomenológicas puras e meros epifenómenos---entre corpo e respectivos usos---que bloqueia qualquer projecto de moral fundamentada e acreditavelmente substanciada por parte de quem a integra nas respectivas formulações teóricas; é aquela incapacidade, dizia, que explica que a verdadeira pornografia [que é aquela que pode ser essencialmente definida como todo e qualquer comportamento que envolva [e, sobretudo, que valorize utilizando-a para atrair] a "colonização" de uma sexualidade por outra e de ambas por terceiros---como acontece, aliás, topicamente nos chamados "reality shows"] do que não passa de actos ou funções ["acticidades" e "funcionalidades"] absolutamente normais e naturais do corpo.

São ainda aqui e sempre os usos do corpo que permitem estabelecer de forma substanciada a fronteira moral: os usos [e os abusos] de uma sexualidade por outra; os usos [e os abusos] por parte das várias sexualidades espectadoras de ambas as anteriores, designadamente para compensar falhas e taras existentes ao nível da "cultura" individual e colectiva, no âmbito da referida 'ecologia da sexualidade'.

A ideia de que, se eu vir um corpo nu me... "corrompo" ipso facto, é absurda.

De facto, é essa ideia, ese princípio, em si mesmo monstruosamente anti-natural: começando desde logo por ser pouco lisongeiro para o corpo, ele coarcta de imediato, de forma claríssima, a minha liberdade, inclusive a de fazer por escolha pessoal independente aquilo que o código moral referencial, ortodoxo, acha o "Bem" na [moral e intelectualmente absurda] medida em que obriga---me condena---em todos os casos, a fazê-lo...

Claro que não se pede à TVI que contribua para o que quer que seja em matéria intrinsecamente cultural: o papel do entertainment privado encontra-se infelizmente reduzido, em última análise, ao de alimentar continuamente fantasmas cultu[r]ais de todo o tipo, colocando-se num lugar perversamente privilegiado para redifundi-los entre a comunidade onde se originaram.

Esse papel de formar públicos devia, como tantas vezes tenho dito, estar entregue a um televisão pública, seguramente a um canal dela.

Mas devia sobretudo está-lo a um Ministério da Educação que soubesse realmente o que anda a fazer e que infelizmente nunca teremos tido entre nós em momento algum desde os tempos de um ministério Sottomayor Cardia de má [de péssima!] memória.

Concluo deixando por responde [para que cada um o faça por si, livremente] uma questão que é: terá alguma relação com essa inexistência o facto de, se ela não se verificasse, a "grande indústria do obscurantismo, do atraso e da ignorância" que hoje faz fortunas [também] no entertainment televisivo ficar, a prazo, fatal e, também irremediavelmente, comprometida?...


[Na imagem o David de Miguel Ângelo extraído com a devida vénia de revistaestilo-dot-abril-dot-com-dot-br]

sábado, 30 de outubro de 2010

"Um Magistrado-Poeta ou Onde é Qu'isto Vai Parar?!"..."


É corrente falar-se no estado verdadeiramente lastimável a que chegou a Justiça [e o exercício da Justiça] num "Portugal... funcional" de hoje, caracterizado, desde logo, por uma gritante [e já quase... orgânica] incapacidade histórica para "se pagar a si mesmo"---o que tem, de resto, levado os sucessivos governos a acalentarem o projecto comum de "vender o Estado à iniciativa privada", com a subtilíssima [e meramente formal] "diferença" de uns pretenderem sempre parecer não fazê-lo, convertendo, todavia, outros, assumidamente, o negócio em causa num "projecto" [suposta ou instrumentalmente] político em si mesmo.

De um modo ou de outro, todos os dias nos chegam novas [e algumas delas bem eloquentes, bem esclarecedoras!] provas do estado verdadeiramente calamitoso a que chegou, com efeito, a [porém, central, essencialíssima!] componente jurídica do que chamo o «Estado consciência» moderno.
Dou um [absolutamente espantoso e em mais de um aspecto, inimaginável exemplo desse mesmo estado calamitoso a que a conduziram à-vez-à-vez "pê-ésses" e "pê-ésse-dês" extraído do "Correio da Manhã" de 20.10.10 [Cf. "Poemas com seios dão queixa de juíza" de Paulo Pinto Mascarenhas].

É o caso de um magistrado do Ministério Público, o Procurador-Adjunto do Tribunal de Trabalho José Vaz Correia ter, no dia 07 de Outubro, acordado tarde por... falha mecânica [do respectivo despertador não do magistrado, como é óbvio]---um "lapso evidente", diz ele, acrescentando, ainda, que foi, também, filho "único", uma vez que parece que, apesar do comprometedor lapso que atrasou uma sessão do Tribunal onde ia decorrer o julgamento em que o Procurador-Adjunto participava, a coisa é, em geral, fiável.

Bom, mas os vinte minutos de atraso para o "caso" que aqui vos trago hoje, até foram o menos: o mais foram as... poéticas explicações do magistrado que, como todos iremos poder ver, nos transportam, de facto, para o reino do surreal e do fantástico puro.

A páginas tantas, no decurso destas, terá efectivamente o atrasado Dr. Correia, declarado [e cito] que "escreveu várias quadras dentro do Metro, como aliás o faz frequentemente".

Mais: para que não ficassem dúvidas da verdade do que afirmava [não se percebe muito bem e o jornal também não explica a relação entre o... metropolitano e subterrâneo estro do Dr. Correia e o respectivo atraso à sessão propriamente dito...] terá mesmo, segundo o jornal, acrescentado ter já "solicitado há instantes ao seu funcionário que lhe trouxesse o casaco do gabinete pelo que passou a tirar do bolso e a ler algumas das quadras que havia escrito".

E, se até aqui, pode depreender-se que a coisa não ultrapassou o nível do caricato e do mero patusco, a partir daqui foi... a loucura-loucura, como diria um conhecido apresentador de televisão.

Ou seja: se até aqui foi "apenas" [adivinha-se sem dificuldade! Aliás, a juiza terá mesmo alegado "sentir-se indisposta" e interrompido a sessão por alguns instantes] constrangedora, causadora de incomodidade [sendo, isso sim, sempre reveladora!] daqui em diante a coisa tornou-se francamente inquietante.

E basta ler o resultado dos... subtérreos esforços literários do magistrado-poeta republicados pelo jornal para se ter uma ideia, então aí, inequívoca [e compreensivelmente muito preocupante, como digo] do estado a que chegou a Justiça entre nós e do nível verdadeiramente escandaloso de cultura e, em geral, de postura agora, sobretudo, intelectual de algumas das pessoas a quem cabe a respectiva administração, que é como quem diz, da sorte de quem por lá, por esta ou por aquela razão, com culpa ou sem culpa, tem de passar, sobretudo, se o fizer na qualidade de arguido ou réu cuja liberdade pode depender [também] do grau de esclarecimento e do grau de cultura e discernimento de quem lá está a administrar aquela Justiça.

Basta ler, disse eu.

Pois aqui estão, então, os poemas e que cada um faça sobre eles [e sobre tudo o que quiser em volta deles e directa ou mesmo indirectamente relacionado com eles...] o julgamento que lhe parecer apropriado---e justo.

Os comboios já vão cheios
muitos se levantam cedo, [comboiozinhos madrugadores, heim?...]
nas mulheres aprecio os seios,
mas têm outro enredo

Entram uns, saem outros
é o frenesim de manhã,
levam-se encontrões
levo eu e mulher minha [?]

Adoro levantar cedo [não parece!]
e ter a obrigação cumprida
dos falsos tenho medo
são o pior que há na vida

O ser humano é excepção
em qualidade dos animais,
quanto mais desumanos são
mais se parecem com esses tais

E, por fim, o triunfal coroamento da magistratal inspiração que é esta quadra absolutamente extraordinária, seja qual for o ponto de vista por que se aborde---e se aprecie:

São sete e pouco da manhã
viajo de Metro para o trabalho,
fi-lo ontem, farei-o [sic] amanhã
só sou aquilo que valho

Ora relativamente àquilo que este senhor magistrado vale, como diria um inglês, a partir daqui, "your guess is as good as mine".

Não tenho elementos que me permitam [em tese, pelo menos] pôr substantiva e categoricamente em dúvida que, do ponto de vista especificamente técnico, se trate de um excelente, de um competentíssimo profissional do foro que, uma vez na vida chegou tarde ao trabalho e, por uma razão qualquer "se passou de todo" na altura de justificar perante a juíza o atraso em questão.

Vamos mesmo dar de barato que o é!

É, pronto---embora a juiza pareça ter um ponto de vista, pelo menos, um nadinha distinto uma vez que apresentou queixa formal do procurador "para efeitos disciplinares" [não se fica a saber exactamente por quê, se por causa do atraso, se por aquela de ele "apreciar seios"---o que, dito em tribunal, ganha efectivamente um peso singular, muito próprio, convenhamos...; se por causa do "enredo" que o lábil e fecundo criador poético atribui às mulheres, inclusive, seguramente, a "mulher sua"...]---pronto! Competente o homem é mas... não seria bom que melhorasse um bocadinho, ao menos, o português?

"Faria-lhe" um ror de bem, atrevo-me eu a dizer---sobretudo se persistir naquela de acumular a jurisprudência com o [inspiradísimo, como se vê!] estro literário...

... além de que, como jurista que tem de arguir e que usa a língua como ferramente básica de trabalho, "daria-lhe", com certeza, não só um jeitão como à imagem de homem de leis culto e douto, "ficaria-lhe" seguramente muito bem...

"«Metropolis», de Fritz Lang"


Um pensar fabular civilizacional "liricamente eutópico" ...

"Ciência e Ciencialidades Funcionais: uma Precisão Teórica de Natureza Taxonómica"


Ainda sobre aquela importantíssima questão por mim, aqui, por mais de uma vez levantada do carácter possivelmente "científico" da Economia no contexto de um quadro tipológico que permita "arrumar" pela sua natureza própria enquanto modo estável, hipoteticamente fiável, de abordar mas, sobretudo, de usar, de uma forma tão exacta e tão adequada quanto possível, a realidade, acrescento hoje algumas especificações que me parecem particularmente relevantes.

Eu sempre defendi que, no actual momento civilizacional que vivemos, marcado pelo triunfo histórico do capitalismo genérica [e funcionalmente!] "social", todas as modalidades da nossa existência colectiva, histórica e política, surgem na realidade, no real, na História em concreto, de facto, completamente "ao contrário", i.e. pela ordem errada, deformando fatalmente todo o funcionamento daquela mesma História, no plano individual, como no colectivo das sociedades que constituimos.

Surgem-no sempre inevitavelmente, é muito importante que o percebamos.

Isto é, surgem nesse estado dispolar como efeito necessário do próprio modo como as componentes ou módulos da vida social se dispõem---se organizam e se estruturam mas também como se disponibilizam sistemicamente---no real para funcionar, com a economia, o paradigma económico, a fixar a História a si mesma e o conjunto das ciências usadas para utilizar a realidade a aceitarem inscrever no respectivo código genético, digamos assim, a informação de que devem, em todos os casos, "en fin de partie"... colaborar.

Colaborar explicando entre si e explicando à comunidade humana no seu todo as exactas razões, supostamente "universais" [lá está: "científicas"...] pelas quais a História "com tudo dentro dela", com tudo quanto ela contém, não deve, em caso algum, mudar de conteúdo, podendo exclusivamente alterar a respectiva forma.


De facto, o que define todo o paradigma a manter; o que permite identificar e descrever o funcionamento normal e regular de todo o modelo que as diversas ciências ou saberes estão obrigadas a manter e a argumentar e justificar é a sua natureza disfuncionalmente inversional, i.e. o facto de, neste modelo... ptolomaico de des/estruturar a História e a sociedade ou sociedades, a economia se situar sempre estavelmente no centro de todas as dinâmicas [de facto: de todas as dinâmicas e adinâmicas!] históricas e sociais, servindo, como digo, a "política" de expressão justificativa da suposta necessidade de tudo, assim, exactamente conservar.

Ora, sucede que de facto, esse "revestimento politiforme funcional" não é a única coisa que é artificialmente utilizada para fixar o real à História: as ciência, volto a dizer, acham-se politicamente obrigadas a colaborar.

O papel especificamente da Economia, neste quadro, é o de operar, mas somente de algum modo in/essencialmente descritivo e limitadamente interpretativo, como a Filosofia operou nos anteriores modelos que não estavam ainda obrigados... "por lei" [por 'leis' próprias, em todo o caso...] a justificar sempre a posteriori os quadros epistemeoformes ligados ao funcionamento do real que iam sendo formados e transformados em "cultura",

É por isso que eu entendo que uma nova tipologia dos saberes; qualquer nova tipologia, devidamente actualizada, dos saberes, ao lado da tipificação tradicional envolvendo "ciências excatas" e "humanas", deve constar uma espécie de aviso prévio explicando que, de facto, todos estes saberes constituem simplesmente "cienciações" funcionais [e funcionalizantes] de um modelo político in/essencialmente político que as significa à partida.

Isso é muito claro no caso da Economia que opera hoje como um tipo de "significador descritivo" nuclear de todas as ciências.

Basta olhar para o modo como os países concebem a sua Educação---ainda quando a não praticam, como é o caso do nosso...

Neste âmbito, todas as ciências "que importam" são funcionais.

Porque obedecem à economia, respondem perante ela: "despacham", como se diz em linguagem burocrática, com ela.

Mas não se trata de uma Economia qualquer: é apenas este modelo económico inversional de que atrás volto a falar que está em causa sempre que se trate de "significar" o quadro das ciências, a sua "ciencialidade funcional".

Melhor: que não está em causa.

É aqui que surge a minha ideia de que estamos, quando falamos de "Economia" [e até especificadamente de "economia"] hoje, perante um verdadeiro "saber funcional", de facto, repito, um "significador autónomo de ciencialidade" e/ou/porque, sobretudo, de um simples "manual de instruções" ou "mode d' emploi" da História [e, de um modo mais lato, da realidade teórica, abstracta, no seu todo] assim des/concebidas e assim previamente de/formadas.

Obrigar a "Economia" a justificar a posteriori a História; obrigá-la a tornar uma certa História possível, comprometendo-a com os seus modos próprios de operar não permitindo que ela se liberte e produza espontaneamente as suas próprias imagens e representações naturais, ecológicas ou ecomórficas, do real é o novo papel das ciências qual seja, como comecei por sugerir, o de fornecer uma explicação teorética para o projecto, de um modo ou de outro, civilizacional de "prender a História a si mesma", obrigando-a justificar por que... "científicos", supostamente exactos, pressupostos e motivos não muda.

De facto, o que Fukuyama fez foi apenas "falar demais": exprimir ["to voice"] aquilo que todo o sistema faz a um nível muito profundo e determinante, sem todavia querer que se saiba "cá fora": que a História, para ele... "acabou" e que devemos como modelo civilizacional continuar a eleger sociedades "para a economia" e não, como seria natural e ecologicamente são a definir, de forma autónoma, modelos variáveis de economicidade para se adaptarem às necessidades circunstanciais das sociedades.

É por isso, para concluir, que eu defendo que devíamos hoje consagrar nas nossas reflexões e quadros teóricos envolvendo o mundo em que vivemos [em que temos de viver] os conceitos de "economocracia", de "inversionalidade disfuncionante assistémica", de "saberes funcionais" assim como, falando especificamente de economia de "economia descritiva ou defensiva" para distingui-la da Economia tout court.


[Na imagem: "Angelus", colagem sobre papel impresso de Carlos Machado Acabado]

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

CANTARES - Juan Manuel Serrat

Todo pasa y todo queda: quizás en acceptarlo intima y definitivamente esté el segredo de la felicidad posible...

"«Disillusioned» by Kyle Coffman"


ARTIST'S STATEMENT
"Narrative and drama are two of the most important elements of my work. I try to convey a story, sometimes being told in one piece and sometimes over the span of a few pieces. The works are fragments of my life. Experiences I have had, what I have felt, and things that I simply have thought were beautiful are what my work represents. I use organic patterns and shapes along with lush colors and the flowing movement of brush strokes to accentuate the beautiful, yet sometimes eerie subjects of my work".
Kyle Coffman

Idade Mídia I: The Satisfied Consummer"


Colagem sobre papel impresso de Carlos Machado Acabado [inédito]

"Idade Mídia II: We Are Our Own Ghosts!..."


Colagem sobre papel impresso de Carlos Machado Acabado [inédito]

"Idade Mídia III:O Charme Discreto das Coisas Inanimadas"


Colagem sobre papel de Carlos Machado Acabado [inédito]

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Mireille Mathieu - Paris en Colère

"Paris en colère"

Mireille Mathieu


Que l'on touche à la liberté
Et Paris se met en colère
Et Paris commence à gronder
Et le lendemain, c'est la guerre.
Paris se réveille
Et il ouvre ses prisons
Paris a la fièvre:
Il la soigne à sa façon.
Il faut voir les pavés sauter
Quand Paris se met en colère
Faut les voir, ces fusils rouillés
Qui clignent de l'œil aux fenêtrs
Sur les barricades
Qui jaillissent dans les rues
Chacun sa grenade
Son couteau ou ses mains nues.
La vie, la mort ne comptent plus
On a gagné on a perdu
Mais on pourra se présenter là-haut
Une fleur au chapeau.
On veut être libres
A n'importe quel prix
On veut vivre, vivre, vivre
Vivre libre à Paris.
Attention, ça va toujours loin
Quand Paris se met en colère
Quand Paris sonne le tocsin
Ça s'entend au bout de la terre
Et le monde tremble
Quand Paris est en danger
Et le monde chante
Quand Paris s'est libéré.
C'est la fête à la liberté
Et Paris n'est plus en colère
Et Paris peut aller danser
Il a retrouvé la lumière.
Après la tempête
Après la peur et le froid
Paris est en fête
Et Paris pleure de joie!

"Pour que l' on n' en oublie pas!..."


Paris en colère


"Que l'on touche à la liberté
Et Paris se met en colère
Et Paris commence à gronder
Et le lendemain, c'est la guerre."


[Na imagem: manifestação de agricultores em Paris, foto ]

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

"A Maior e Mais Bela Nação do Mundo às Vezes é a Indig... nação!"

Há Países onde não se brinca à indignação---quando é justa!
Viva a França: deu-nos Molière, Victor Hugo, os Renoir, o cinema de Tati, Truffaut, Godard e o cinema de Godard, Prévert, Éluard, Sartre e dá-nos hoje, às vezes, Le Pens e Sarkozys, é verdade, mas também, quando é preciso, lições de convicção cívica, de consistência e sensibilidade social e de determinação política!
Viva a França, pois!

"Auto... Retrato Melancólico [no Espírito dos Tempos...]"

sábado, 23 de outubro de 2010

"«Sergeant Rutledge» de John Ford"


A RTP Memória voltou a passá-lo hoje 23.10.10 e poderia fazê-lotodos os dias que o deslumbramento que o filme causa a qualquer verdadeiro cinéfilo nunca se perderia por inteiro

Trata-se, com efeito, de um dos grandes Fords do 'período americano', uma obra de maturidade onde o realizador de “The Searchers” faz, diria eu, a sua “Rope” mas com demonstrável [infinitamente!] maior sucesso do que aquele que Hitchcock alcançou na sua famosa “stravaganza” e tour-de-force narrativo.

Fá-lo, digo eu, no sentido em que parece ter-se proposto dirigir uma espécie de “western”... sinfónico onde cola com uma mestria, de facto, soberba dois “andamentos” perfeitamente distintos: um, muito fordiano, largo, majestoso, onde prevalece sempre o, também ele, muito fordiano deserto do Arizona com a sua característica sugestão subliminar de esterilidade lunar e sempre impendente sugestão cumulativa ainda mais abstracta de vazio---um vazio onde os heróis têm invariavelmente de encontrar um caminho, fazendo sempre opções pessoais invariavelmente difíceis e, de um modo ou de outro, solitárias---um andamento largo, de expansão, “maestoso”, característico do ‘ciclo de cavalaria’; e um segundo "andamento" quase provocatoriamente teatral,num certo sentido, experimental mesmo, onde o “set” é concebido assumidamente como um palco e um palco 'expressionista', eu diria: “regado” com uma ousada iluminação 'de palco', onde uma angustiada [e angustiante!] implacável "reflexão" sobre o outro---uma exploração, uma desmontagem e uma impiedosa, exaustiva, "posta-em-questão" do anterior---é encenada com a interioridade e um espírito impiedosamente 'insurrecto' e até profanador que faz já antever o pós-género, a viragem metalinguística que, para alguns, está patente em “A Desaparecida” com o seu [anti] ‘herói’ profundamente torturado e a respectiva descida aos infernos da obsessão e da paranóia puras substituindo os caracteristicamente 'positivos'---verdadeiros---heróis de 'outros tempos'.

O que impressiona sobretudo em “Sergeant Rutledge” é, além da imensa seriedade com que o filme põe as questões [este é, de facto, um filme “sério”, de uma amargura e até de um mal-disfarçado cepticismo global que perturba e inquieta] exactamente essa natureza dialéctica que, a partir da forma, põe todo o género [e, sobretudo, os valores e a visão, em geral, aproblematicamente afirmativa que o definia enquanto 'poesia épica'] em questão e que faz com a forma, no fundo, à sua maneira---volto a dizer, num certo sentido, quasi-experimental---o que um Godard ou um Straub fizeram no seu próprio Cinema: utilizá-lo deliberada [mas, em caso algum, gratuita e muito menos irresponsavelmente] para interrogar a realidade e tornar a “revolução” do olhar cinematográfico [e não só desse, repito: não esqueçamos que dobrámos já a fronteira dos, sob muitos aspectos, questionadores e mesmo 'subversores' anos '60!...] uma coisa 'de episteme' uma coisa intestina e, a seu modo, visceral, íntima, profunda, algo que surge não como , no fundo, um mero... “adereço intelectivo ou cosmovisional” inorganicamente ‘político’ ou artificialmente exógeno, digamos assim, isto é, exterior ao objecto idealmente íntegro que é a obra mas, exactamente ao contrário, como uma componente ínsita do 'objecto orgânico e total', que é o filme.

É verdade que Hawks [em “Rio Bravo”, sob diversos aspectos, para mim, ainda a sua obra-prima], Zinnemann [no clássico “High Noon”] ou até um muito competente e nada despiciendo Delmer Daves em “3.10 to Yuma” [já nem falo no importantíssimo "Buffalo Bill" de William Wellman que era uma obra quase... militante, uma obra com causa e de "de causa", tudo menos a epopeia típica] fizeram “westerns” que, de algum modo, questionavam o género e os seus limites, na ambiência [opressivamente interior em "Rio Bravo" ou no filme de Daves com o qual a obra de Hawks tem evidentes analogias] como no “espírito” [profundamente amargo e desencantado] no caso do desencantadíssimo filme de Zinnemann.

Mas com a profundidade e o grau de seriedade pura de “Sergeant Rutledge” não penso que o tivessem feito, com a excepção indiscutível de “High Noon”, uma obra feita para denunciar a cobaedia e a intolerância como "política" e como [perversíssima!] "cultura" colectiva.

Sergeant Rutledge” é um filme sobre a necessidade de ir além das aparências, de questionar os juízos [e, obviamente, os pré-juizos] humanos de todo o tipo.

É um filme sobre “o real instável”, que lança a inquietação como uma arma da consciência---um filme formalmente sempre estimulante e com coisas absolutamente espantosas em termos de arquitectura narrativa e visual como aquela surreal sequência de abertura envolvendo a chegada à estação que é um momento quase kafkiano, soberbamente encenado para sugerir subconscientemente as ideias de pesadelo, por um lado [aquilo, aquela estação deserta, aquela iluminação fantasmagórica, aquele súbito aparecimento de Rutledge, como uma emanação da própria noite, real e física---tudo aquilo, repito, é uma coisa obviamente onírica] e de descida aos infernos do escuridão e do insondável, por outro: da noite do espírito que o é também da humanidade e do humanismo, da tolerância, uma autêntica viagem aos “abismos da alma humana” que continua, filme fora, até à revelação ou "denoument" final, passando, em contraponto, pela luta do protagonista, o injustiçado sargento, vítima de uma leitura errada de diversas conponentes "avulsas" e exteriores, do real para afirmar, com uma dignidade absolutamente exemplar, admirável, a sua condição intrinsecamente Humana.

O elenco é magnífico, de uma solidez e de uma competência a toda a prova e vai de uma Constance Towers eficacíssima a um Jeffrey Hunter positivamente brilhante, fulgurante mesmo, por vezes, passando por um Woodie Strode que, apesar de Kubrick e de "Spartacus", nunca mais teve, que eu me lembre, uma oportunidade como aquela que Ford lhe ofereceu para ser realmente actor [Sylvester Stallone "cita-o", talvez inconscientemente, em "Rambo" de Ted Kotcheff, na patética sequência do "desabamento" da figura violenta que durante a maior parte do filme é John Rambo].

Por trás deste trio, brilha todo um elenco de tipos muito fordianos de que destaco os nomes de Willys Bouchet ['col. Otis Fosgate'] uma espécie de irmão gémeo do capitão dos rangers/reverendo de “The Searchers” onde era Ward Bond quem defendia [e de que maneira! Com que panache e brio!] o “boneco” e Judson Pratt [o 'ten. Mulqueen'] uma figura que, também ela, [com pequenos pormenores circunstancialmente reconfigurados e o rosto de Victor MacLaglen, por exemplo] viaja muitas vezes de filme de Ford para filme de Ford e ajuda tal como Hank Worden/'Laredo' [que aqui tem apenas um "cameo" simbólico] a compor não apenas uma panóplia extraordinariamente impressiva de caracteres mas o próprio tom profundamente matizado e sabiamente humanizado que caracteriza todo o verdadeiramente genial Cinema de John Ford

"A Realidade É Impossível, Eu Sei Mas... E a «Europa»?" [incompl./por rever]


A propósito de duas notícias do “Público” de ontem, 22.10. gostaria de produzir algumas reflexões que ajudarão, suponho, a entender melhor o mundo em que vivemos assim como, mais relevante ainda por razões evidentes, aquele em que a curto ou médio prazo, previsivelmente, teremos de viver.

As notícias a que me refiro [começo por uma delas a subscrita pelo sempre lúgubre e argumentativa e intelectualmente cabisbaixo Vasco Pulido Valente---que, de resto, não é exactamente uma noticia: é mais uma espécie de obituário do que um autor chamou em tempos um “mito moderno”, como os discos voadores: a tal “Europa” de que todos falam e ninguém alguma vez viu…] [1]

Aí, aborda, como o título do seu escrito revela, Pulido Valente do óbvio esgotamento do que alguns optimistas e contrafactores políticos de carreira chamaram, com efeito, a “Europa”.

Ora é preciso dizer [e a verdadeira Esquerda, dentro e fora do quadro partidário, anda a dizê-lo há décadas: não são meses nem anos---são décadas!] nunca passou de um projecto de grande empresa multinacional disfarçada “Politica” [o inominável Durão Barroso admitiu-o abertamente ainda não há muitos dias] que sonhou criar e instituir o seu própria ideia de democracia [a “democracia funcional” que devia substituir [e subsistiu, aliás, com os resultados quer se conhecem!] a tradição democrática ocidental no que ela tinha de mais utópico e social ou humanitariamente generoso.

Essa “Europa” de que falo nasceu de um projecto em tudo semelhante àquele que, em Portugal, deu origem ao que chamo o “25 de Abril da direita”, ou seja, aquele que Marcelo Caetano e todo o cortejo da sua “oposição orgânica” [as SEDES e quejandos que viria a reagrupar-se basicamente no P.P.D. e no P.S., «o polícia bom e o polícia mau» do “novo regime” ou, se assim preferirmos, noutro registo, com certeza mais mordaz mas nem por isso menos rigoroso, dizer: o seu Bucha e Estica…] para quem o que começou a acontecer no dia 26 de Abril representou um incomodo imprevisto e completamente inintegrável no seu projecto de “evolução revolucionária” e que teve de esperar um ano para ver cumprido o seu próprio projecto de “arejamento politico” “funcional” de um modelo económico que nunca quis seriamente rever [a não ser na “quantidade”] quanto mais estruturalmente modificar.

Quero eu dizer na minha muito claramente que o ímpeto sistémico que levou “pê-pê-dês” e “pê-ésses” a embarcarem [ruidosamente, aliás] no comboio da “democracia” visava apenas [quando o ‘regime’ deposto se descredibilizou a ponto se colocar na situação de lhe ser já completamente incapaz de renovar-se espontaneamente por dentro sem violência o que chegou, de resto, mais de uma vez a tentar] nada tem que ver com revolução assim como, por isso mesmo, nada tem que ver com as aspirações de saneamento histórico e politico efectivo de um modelo económico que, bem diferentemente de render-se, pretendia sim redecorar-se política e, sobretudo, redecorar-se funcionalmente mas com o único propósito de sobreviver ao que era manifestamente a incapacidade do autoritarismo formal herdeiro dos projectos de “capitalismo total” típicos e tópicos, dos anos 20 e 30 do século passado levar por mais tempo o capitalismo ás costas…

Aquilo que as Sedes, o “espírito Sedes” e os partidos políticos que de ambos nasceram [um deles, o tal “pê-ésse” nasceu uns meses antes porque teve obviamente quem lhe segredasse ao ouvido institucional que tinha chegado o momento de nascer e… “cumprir o seu papel e o seu dever… históricos”]; aquilo que as Sedes e esses partidos funcionais pretendem não é, pois, nunca será demais insistir, mudar substantivamente o modelo económico, a base ou o núcleo infraestrutural do ‘regime’: eles querem até, pelo contrário, generalizá-lo, acessibilizá-lo ao capital que o “turnstile corporativo” obriga a permanecer fora dos circuitos activos de re/produção estrutural do mesmo.

Querem… “democratizar” o capitalismo, democratizar e liberalizar um modelo que a contra-ciclo se defendia acerrimamente fechando a sete chaves os meios de re/produção social de capital.

É a “drôle de révolution” à Soares, o grande agente local infiltrado das forças geo-económicas e geo-políticas que hão-de sonhar [que, na realidade, sonham já!] com o grande empreendimento económico-financeiro; a grande “corporação” que é a “Europa” que, do ponto de vista nacional português, deve ser, muito claramente, a extensão natural do modelo de “volução” capitalista que levou essas forças políticas a “mexer-se” e a simularem mesmo, com grande aparato verbal e argumentativo, juntarem-se a uma Revolução que pretendem, é verdade, mas num sentido muito próprio que, segundo eles, deve sair não o fim do paradigma económico-político mas, exactamente ao invés, o seu reforço e a sua operativização renovada e reforçada [vide a “novembrada” de ’75, imposta, como ainda não há muito lembrava Otelo Saraiva de Carvalho, numa entrevista por Ford na Alemanha ao representante português].

“Time was running out for the fiction of peaceful political… shedding”: local agents must absolutely do something.

“The rest is History”…

Bom mas percebido isto, ou seja, a natureza endógena ou… endogâmica, sistémica, do movimento de recolagem histórica, económica e política do novembrismo que veio finalmente soldar a História onde ela se tinha imprevistamente… quebrado, estragando os planos de “abertura” e de “democratização funcional” [e funcionante!] do capitalismo “moderno” [o projecto de “capitalismo total”, de “totaler Kapitalismus” tinha historicamente morrido, fora da península em… 1945, há três décadas, pois, quando finalmente caiu entre nós!] é possível perceber como nasce, por sua vez, historicamente a tal “Europa”.

Ela surge na História como a expressão institucional de um projecto global de revisão dos instrumentos “politicamente possibilitadores” que o fim de Hitler e de Mussolini tinha demonstrado não serem os que inicialmente o capitalismo supôs serem os adequados para se tornar natural e directamente História, i.e. de criação de um “capitalismo politico” ou “capitalismo total”, copiado, ponto-por-ponto da i/lógica primária, fortemente verticalizada, da organização industrial e especificamente fabril original.

É por isso que alguns “europeístas” de carreira como Cavaco Silva [por temperamento e por vocação política, uma espécie de “missing link” entre as formas pessoais de “capitalismo político musculado” dos anos ‘20 e ’30 e a modernidade funcional] não se cansam de utilizar [e têm toda a propriedade para tal, de resto] uma linguagem económica e mesmo economocrata para se referirem ao que hoje muitos [eles, incluídos] chamam “politica”.

A imagética da “moeda boa e da moeda má”, por ele usada para se referir a uma das mais improváveis personalidades da “nossa” cena politica, um tal Santana Lopes que, vá-se lá porquê e como, conseguiu chegar a primeiro ministro de um país da Europa, no século XX!] é particularmente expressiva e eloquente da natureza da “coisa europeia”, cujo fim Pulido Valente acaba, pelos vistos, para sua imensa---e óbvia!---perplexidade, de descobrir.

De facto, nesta “Europa”-empresa multinacional, não há [nunca houve] cidadania ou projecto consistente de cidadania mas um vago e implícito projecto de criação histórica de um grande “proletariado cívico” transfronteiriço de onde deveria derivar um conceito, não menos tácito, de “cidadania funcional” que se encaixava às mil maravilhas nessa outra ideia ou conceituação de “estado broker”, de “estado almocreve” que, na nova e não-expressa semântica, devia substituir o de Estado-nação, sistémica [economicamente!] disfuncional e perturbador.

É aqui que entra o segundo texto do “Público” que comecei por referir.

Escreveu-o o director de mestrado em Economia Social da Universidade Católica Portuguesa, Américo Carvalho Mendes, intitula-se “Será que o Estado Social Falhou?” e vem dizer por outras palavras e com um “recato argumentativo” muito maior porém, exactamente aquilo que eu mesmo tenho vindo aqui a repetir há meses.

A saber: que é bom que, por razões sistémicas, percebamos todos como ‘regime’ que, no preciso momento em que começarmos a interrogar-nos sobre se “o estado social falhou”, começámos já, sem darmos por isso, a perguntar se o “capitalismo socialmente mediado e organicamente possibilitado”, o “democapitalismo” pós-industrial moderno falhou.

Mais exactamente ainda: se o capitalismo tout court falhou.

O estado dito social, como não me canso de dizer, foi a almofada de segurança do capitalismo moderno.

Foi ele quem, como reconhece expressamente Américo Mendes no seu texto, colocado no vértice do modelo, operou como “carro vassoura” sempre disponível na corrida de obstáculos que é o capitalismo [“é da própria natureza da economia de mercado, gerar em permanência (…) exclusão social”, diz o autor] recolhendo as “baixas” que o sistema inevitavelmente faz [que ele está sistemicamente condenado a fazer], desincentivando ou… desarmadilhando desesperos e tentações demasiado violentas de subversão do próprio modelo que o sistema se vê incapaz de recuperar mas, sobretudo, recapitalizando continuamente, como também se vê forçado a admitir o autor do artigo que passei a citar, um mercado que a i/lógica brutal do funcionamento normal do sistema raresce ou rarefaz contínua mas sobretudo necessária porque também sistemicamente na consecução daquele funcionamento normal.

De facto, há um sistema que des-integra e des-organiza para viver [que planta ou investe, como acho que devo dizer: doses estratégicas de “carencialidade e mesmo agnosia funcionantes” a fim de gerar “valor sistémico” que usa essa matéria-prima essencial no processo de produção de capital e um Estado que vai colando os cacos e é uma espécie de cruzamento entre “hospital de campanha sistémico” e departamento de relações públicas politiforme para o qual a democracia, por exemplo, deve manter-se rigorosamente “presa à História e à Economia” e tem como missão histórica primária “argumentar e justificar” não apenas ambas [em especial obviamente esta última] mas explicar por que exactas razões “intelectuais” e até “morais”, nenhuma delas pode, na sua in/essência, em última análise, mudar.

Sem o departamento de relações públicas o sistema corre o risco de impopularizar-se a ponto de tornar-se demasiado arriscado mas pior ainda sem o hospital corre o risco de bloquear definitivamente---algo que a pós-modernidade começa vaga mas progressivamente a intuir.

A conversão que o sistema de capitalismo tecnológico teve inevitavelmente de operar do capital variável por capital fixo [conhecimento privatizado e continuamente reinvestido no modelo como factor de produção no quadro da “gnoseotopia funcional” que é o sistema no seu todo] conduziu a um paradoxo dificilmente insuperável [motivo pelo qual eu fazia há pouco a tal pergunta sobre se o que está a “falhar” é apenas a componente estado social se é toda a maquinaria, toda a máquina, do sistema que se torna paulatina mas também sistémica e irregressivelmente impossível]: aquele que diz que cada vez é preciso mais Estado [porque cada vez são em maior número as “baixas” entre o capital variável nas suas diversas formas e níveis dentro do sistema] mas cada vez, por isso mesmo, é mais difícil pagar o Estado em causa porque se des-integrou e alienou a unidade ôntica cidadão desdobrando-o desintegradamente num produtor [que o sistema não precisa e a quem pagou até---um anti-salário ou um des-salário mais ou menos ordinário e regular] para permanecer fora do circuito producional e um mercado [que ele, sem o Estado que se pretende “pôr entre parênteses” ou “empocher” nas formas… “moderníssimas de “Política, não pode pura e simplesmente ser].

É isso, esse nó górdio a que os ingleses e americanos do Norte dão o nome de “conundrum”, que me leva, insisto, a perguntar o que é que realmente “falhou” no estádio de capitalismo “socialmente sustentado” que ainda vivemos: se as “ferramentas”, as “alfaias possibilitantes”, se, como digo e penso, o próprio modelo, como tal.

Porque [é altura de retomar a pitoresca e caracteristicamente pouco imaginativa expressão de Cavaco Silva envolvendo as “tais” moedas, boa e má,] numa empresa multinacional como a “Europa” que é suposto que seja o “dernier cri” das formas de organização estrutural, técnica e politica, do supercapitalismo “de última geração” pretende de facto [e, cá para mim, cada vez mais de direito, também, aliás!] ser, a “moeda má” somos nós, a mão-de-obra de que ela não precisa, os velhos, os reformados, os marginais ou os excluídos, como lhe chama Américo Mendes da máquina re/produtora de capital!] e por isso estamos hoje, numa “Europa” que implode até aqui paulatinamente a ser, cada dia um pouco mais, “expulsos”…


[Imagem ilustrativa extraída com a devida vénia de oscarvalhosdoparaiso-dot-blogspot-dot-com]

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

"Frei Papinha em Guantánamo"


Durante a minha adolescência, trabalhou em casa dos meus pais uma velha empregada doméstica brasileira, testemunha de Jeová, a quem pareciam sempre poucos os ensejos para troçar do seu grande inimigo, o catolicismo romano.

Depois de ter renunciado a converter-me à sua peculiar+issima confissão [o que terá acontecido, para sua grande decepção, para aí da segunda ou terceira vez em que, sem muitas subtilezas ou subterfúgios, aliás, praticamente no mesmo instante, o intentou e fracassou] contentou-se em exercitar a sua óbvia [e tenaz!] embirração com as práticas e, em geral, com os ideais do detestado papismo, recorrendo a um aparentemente ilimitado anedotário anticlerical, disciplina em que era pouco menos do que mestra...

Ora, uma das “estórias” que sempre se comprazia em [re] contar incluía um padre voraz, guloso [“como todos os padres”: tinha, como poderão constatar uma ideia verdadeiramente picaresca e muito… camiliana do clero vaticano] que queria, como explicava, “comer carne na Quaresma", esclarecendo, de imediato: "que os padres não podem”.

Impedido, pois, por imposição do seu rigoroso regimento ritual de fazê-lo, recorre, ainda assim, pávido e expedito, o sôfrego clérigo a um engenhoso expediente… semântico, muito próprio, aliás---comentava em excurso a impiedosa narradora---da sua particular raça, perita em farisaicos sofismas e cultismos...
Trazida para a mesa fumegante e suculenta peça de carne, faz-se ele, ao mesmo tempo, munir de água por si próprio ali mesmo expeditamente santificada, num ápice rebaptiza escrupulosamente o fervente e pecaminoso acém em inocente bacalhau [que, por ser peixe, é alimento piedoso e por isso desafrontadamente permitido] entrando, de imediato, a saborear a substancial vitualha, agora expeditamente miraculada, por obra e graça de capciosa semântica clerical, em aquático e por isso santíssimo cebo, admitido, como disse [e como sublinhava, deliciada com a truculência marota do sarcasmo, a velha Josefa] sem salvaguardas ou reténs, na austera quadra litúrgica.

Ocorreu-me muito viva e nítida a memória deste episódio de juventude ao ler num pela idade já venerável “Público” da minha bem suprida e impenitentemente caótica hemeroteca pessoal, o de 31.07.09, o curto texto noticioso intitulado “Sai em Agosto um dos detidos mais jovens de Guantánamo”.

Sucede que, informa o jornal, o preso em causa teria nada mais, nada menos do que 12 anos [!!] na altura em que foi detido e encarcerado na sinistra prisão norte-americana de Guantánamo.

Os advogados do jovem, de nome Mohammed Jawad, comprometem a sua palavra declarando formalmente serem os 12 anos a idade do preso .

O Pentágono, todavia, recorrendo ao que o jornal refere como “análises à sua estrutura óssea” jura a pés juntos que o rapaz tinha, não 12 mas 18 anos na altura da detenção.

Suponho eu, que não sou jurista, que entre gente séria e civilizada, na dúvida, se aplica um clássico princípio jurídico que diz “in dubio pro reo”, ou seja, na incerteza, dá-se o benefício da dúvida ao réu.

Dão-no os tribunais normais, pelos vistos.

Os outros, os políticos, os que escapam confessadamente, por imposição de normas de natureza inequivocamente politica, espúrias e dificilmente explicáveis numa sociedade onde vigoram---em teoria, pelo menos---o democrático Direito e a democrática [e civilizada!] separação de poderes; os que foram criados a outrance com o fundamento expresso e, na realidade, único de se integrarem dócil e conformadamente numa inflexível “luta antiterrorista” global---esses, ao que aqui se comprova, fazem como o padre da "minha" estória: rebaptizam, de forma... desembaraçada [tão desembaraçada, pelo menos, como o voraz padralhão do conto fez ao cobiçado e irresistido acém!] um menor de… maior; de maior no limite mesmo da imputabilidade [oh! Supremo e providencial Deus das coincidências!...”] passando por cima do “baptismo” uma demão de… ciência aplicada [que dá, como se calcula, um jeitão nestes “casos”…] e pronto, como o padre glutão, está servida a ceia [neste caso, jurídica e civilizacional] e, meus senhores, agora é… só comer!...


[Imagem ilustrativa extraída, com a devida vénia, de blogs-dot-myspace-dot-com]

"Não Ao Estrangulamento da Classe Média! Contra A «Crise» o 'Remédio' É Outro!..."


NÃO ENGULAS A "PASTILHA"!

VAMOS TOMAR É A BASTILHA!

[Imagem ilustrativa "gentilmente cedida" por murronaboca-dot-blogspot-dot-com]

"Por Uma Verdadeira Sociedade do Conhecimento"


Defensor assumido [e acérrimo] do conceito que designo, em geral, pelo termo “Estado consciência” [que me parece, devo dizer, por um conjunto de razões que não vêm, de momento, aliás, ao caso, francamente distinto e, num certo sentido subjectivo e cultu[r]al profundo, mais relevante ou mais considerável e operante até do que o de Estado-nação] há muito que a questão do serviço público para mim indissociável do conceito em causa constitui um aspecto verdadeiramente angular, crucial, do modo como vejo o problema da organização fundamentada e sustentável das sociedades humanas no complexo mundo de hoje.

No caso português, defendo sem a mínima hesitação ou reserva, que da carteira específica de serviços do “Estado consciência” deve, em qualquer caso, ao lado dos que integram as áreas da Saúde, da Justiça, da Educação ou da Segurança Social, haver um serviço de Transporte e Mobilidade e um canal público de televisão; defendo que ele deve possuir uma natureza perfeitamente identificável e permanentemente demonstrável exactamente de serviço [o que significa que não deve estar refém de qualquer propósito competitivo primário, antes deve estar animado de uma lógica de formação de públicos e de audiências que deve, por seu turno, operar como parte de um projecto cultural global e integrado envolvendo a Educação e a Cultura e contemplando ‘planos quinquenais’ por objectivos no quadro daquele labor formativo]; que ele deve estar aberto à sociedade civil e designadamente aos partidos e organizações cívicas com um projecto específico de “Tempos de Antena” claramente identificados mas estruturados em moldes francamente diferentes dos grotescos e inúteis “tempos de antena” já existentes; e, entre outras coisas ainda, que muitos dos conteúdos específicos que hoje integram a rede privada por cabo devem obrigatoriamente fazer parte do serviço público, como a Música Clássica, o Bailado, o Teatro, os debates sérios entre outros.

É, aliás, por isso que eu entendo que os tempos de antena constituem um aspecto absolutamente vital da minha ideia de “serviço”, ou seja, eu acho que o Estado, no quadro do referido projecto global de fomento da Cultura deve estar atento às [algumas delas, aliás, óbvias e gritantes mesmo!] limitações mais ou menos naturais do negócio privado da comunicação e tem por dever supri-las, desse modo se justificando, ao contrário do que defende o mero negocismo liberal e neo-liberal [que, em contraponto ao Estado consciência apresenta o que chamo a sua proposta natural de Estado broker ou Estado… almocreve].

Em meu entender, com efeito, onde o negócio privado da comunicação tender a fazer do espectáculo televisivo um mero modo de fixar e difundir por mais gente ainda o que de pior existe no entretenimento pop [as carradas diárias de intragáveis “telenovelas”, os concursos copiados ao pormenor de versões estrangeiras que já eram idiotas e estupidificantes na origem etc. etc.] cabe às organizações civis e [por que não?] aos partidos apresentarem propostas alternativas, como digo, devidamente identificadas mas que em vez das doses maciças de mera árida propaganda apresentassem a júris de serviço público eleitos pela sociedade civil projectos alternativos por si realizados ou a realizar para preenchimento de xis horas de programação regular de um Canal Dois com espectáculos de Teatro, Ópera, Bailado, ou programas de informação e debate etc. etc.

Trata-se, na realidade, de envolver de forma directa, as mais diversas áreas da sociedade civil no projecto de colaborarem de forma activa na construção de uma Cultura diversificada que expresse realmente as diversas tendências e sensibilidades existentes dentro da comunidade e de, por um lado, evitar amarrar essa mesma sociedade civil a uma programação sem qualidade e sem profundidade enquanto que de, por outro, não permitir que ela seja sempre e só submetida, no quadro do que hoje se designa por “serviço público” mas que obviamente o não é, à ideia oficial de Cultura do poder.

Não concebo, com efeito, que possa haver hoje, em pleno século XXI, cidadãos europeus [sem aspas, sempre sem aspas!...] que nasçam, vivam e morram sem ter visto uma única peça de teatro, ouvido um único concerto ou assistido a um único espectáculo de bailado fora das inúteis pachochadas de “Ídolos” e quejandos, no caso do “canto”, das inomináveis idiotices dos sucessivos “Dança Comigo”, no da “dança” e por aí fora…

Tal como não consigo conceber que fazer serviço público seja, nos raríssimos casos em que a mediania quer dos temas abordados, quer da abordagem que é feita aos temas, as “coisas” sejam atiradas às pessoas, sem uma introdução [como fazia o maestro José Atalaya em relação à Música] ou sem que venham enquadradas de uma forma minimamente analítica e crítica como faz o inestimável canal franco-alemão ARTE nos seus absolutamente inimitáveis “dossiers temáticos”.

Lembrei-me de tudo isto ao ler recentemente na imprensa escrita [cf. “Público” de 31.07.10, artigo “Canal esventrou mulher grávida e roubou o bebé que sobreviveu”, onde a barbárie descrita, referente a um sangrento episódio ocorrido em Plymouth, no estado de New Hampshire, E.U.A. é, com algum pormenor, reportado.

Perguntar-se-á que relação tem este episódio verdadeiramente horrendo com tudo quanto até ao momento deixo aduzido.

A razão é, porém, bem simples e prende-se directamente [ou eu não teria aqui trazido o caso à colação] com o modo como a realidade é muitas vezes [com demasiada frequência!] des/feita e apresentada na televisão.

Quem quiser, com efeito, por exemplo, ficar com uma ideia minimamente exacta e rigorosa do Brasil, não pode obviamente fazê-lo recorrendo às famigeradas “novelas” com origem na grande nação brasileira.

Conheço pessoas que “adoravam visitar o Brasil” [o Brasil dos “resorts”, dos apartamentos de Copacabana ou das praias] e que regressaram de S. Paulo ou do Rio com uma ideia bem diferente daquela com que tinham originalmente partido para o país de Vinicius e de Jorge Amado.

Tive em tempos um aluno que, numa composição, declarava que gostava de ir, um dia, aos E.U.A. para se convencer in loco de que o que imaginava ser na sua própria expressão um “verdadeiro sonho” existia realmente.

Ora, o que eu digo é que, quem quiser conhecer minimamente a realidade social de uma nação onde ainda não há cinco décadas uma parte significativa da população vivia compartimentada em ghettos e, em certos estados, podia mesmo ser ‘normalmente’ linchada pelo facto de um dos seus membros do sexo masculino ter a “ousadia” de olhar para uma mulher branca não pode obviamente fazê-lo sem travar conhecimento com um lado persistentemente “negro” desse longo e hoje, sobretudo, surdo genocídio existencial e cultural que foi o segregacionismo [hoje na forma torpe, perversíssima e hipócrita de “racismo… integrado”] cuja realidade salta à vista mas apenas em canais pagos do serviço por cabo como o “Reality Zone” [trave-se numa série como “Cops”, por exemplo, contacto directo, real, com todo o horror de uma sociedade que “integrou” já e até… “civilizou” mesmo o racismo, não o impondo por lei e nem sequer aliás o reconhecendo expressamente mas deixando que seja a “economia” e as dinâmicas económicas e sociais por ela determinadas a definir as formas da sua existência objectiva ou objectual na sociedade] ou mesmo o “Fox Crime” onde a dita realidade volta-não-volta reemerge em reportagens que arrepiam pelo retrato desolador que dão do crime como questão de classe mas especificamente, também, “de raça” exactamente porque os E.U.A. são, como tantas vezes tenho dito, um “falso país” composto de muitos países, negando regularmente o consabido mito do “melting pot”---que de “melting”, na realidade, muito pouco ou nada teve e ainda hoje, apesar de tudo, tem…

É, aliás, o visionamento mais ou menos regular de canais como o “reality” [o “Fox” é um canal assumidamente ligado à direita republicana o que faz pensar ser possível admitir que o cruzamento de crime e raça, quando ocorre, pode não ser inocente…] que permite enquadrar e contextualizar com alguma desejável precisão notícias como a que cito do “Público”.

Ora, para concluir, sintetizando tudo quando sobre serviço público aqui deixei brevemente registado, a minha ideia é que, se isso é válido para os casos de crimes horrendos [como aquele que o jornal reporta e que não tenho dúvidas, são, apesar de tudo excepcionais mesmo numa sociedade demonstravelmente violenta como a norte-americana] não o é menos para qualquer outro domínio, francamente mais nobre, do conhecimento e da realidade, sendo mesmo desse modo, em última instância, que se formam com a exactidão e o rigor desejáveis os quadros críticos e cognitivos dos indivíduos, podendo a televisão contribuir determinantemente para tal no contexto da tal ideia global de projecto cultural que não dissocio do conceito de Estado e que deve constituir uma componente essencial de uma minimamente sustentável gnoseotopia ou sociedade [e era histórica!] gnoseotópicas.


[Imagem ilustrativa extraída, com a devida vénia, de cafisicaifrl-dot-blogspot-dot-com]

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

"A França na Rua: Sigamos-lhe o Exemplo e Partamos Ao Assalto Das Nossas Próprias Bastilhas!"


Manifestações em França, imagem yahoo

"Estes Não Brincam: Estão Habituados a Tomar Bastilhas!..."


...E, por isso, com estes, têm "eles" grandes dificuldades para "brincarem"!...

"Sacrée France: t' es parfois douce mais tu sais aussi ouvrir tes prisons et détruire tes nombreuses Bastilles, quand il le faut!

Voilà pourquoi je t' aime et pourquoi aujourd'hui je suis particulierement fier de toi et si j' ose le dire, un peu français aussi!
Et vive la France, heim?!"


[Imagem yahoo]

"Enxerguemo-nos de uma Vez por Todas!"


Uma saudosa amiga minha já falecida tinha uma expressão que costumava usar em jeito de leit motiv [imposto, aliás, pelas próprias circunstâncias, como adiante se verá] nas várias conversas que volta-e-meia mantínhamos, eu e ela, a propósito desses colóquios “de sala de professores” [quem, por lá passou, conhece o género de conversa mas também---e sobretudo, para o que aqui importa—o sítio/instituição que é a sala-de-professores de uma escola secundária portuguesa…].

A expressão em causa era “Eles não se enxergam, Carlos Acabado! Eles não se enxergam!...”

Referia-se, desse modo, à verdadeira “cultura” de vaidosa mediania e, por via de regra, atrevida [in!] suficiência mental e cultu [r] al---intelectual---que, por via de regra, reina nesse antro de sombras e invariavelmente pequenas fatuidades [de facto, de vaidades invariavelmente “pequeninas”…] que é uma sala de professores de escola de província onde ambos, por mero imperativo burocrático, íamos regularmente parar…

Parece-me que ainda estou hoje a vê-la e a ouvi-la, à boa G. quando a provinciana presunção local transformada em “jeeps”, telemóveis e outros tão bizantinos quanto, tantas vezes, escandalosamente supérfluos [quando não, como no caso dos faraónicos jeeps, por exemplo, irresponsavelmente nocivos por contaminarem levianamente o ambiente e, de um modo mais geral, desencadearem ou, pelo menos, potenciarem insensatamente a louca espiral de consumismo a que inexplicavelmente tendemos a chamar “qualidade” de vida] luxos locais completamente desajustados das necessidades reais das pessoas e dos sítios---pessoas que aliás frequentemente só àqueles chegavam com sacrifício de coisas verdadeiramente essenciais essas; quando, dizia, essa absurda fatuidade e essa provinciana afectação transformadas em objectos [ou... totems"?] irrompia de todos os lados do nosso ponto de encontro de burocrática circunstância, lá me sussurrava a saudosa ex-colega e amiga, naquela melodiosa e quase melancólica modulação que dava a cada frase das que proferia---ela que conhecia como poucos as fraquezas e os podres que a rústica imodéstia tão ostensivamente gritada, desde logo, ao longo dos passeios da cidade em causa [muito pouco e muito mal!] camuflava: “Eles não se enxergam, Carlos Acabado! Eles não se enxergam!...”

Com o tempo e a observação, a reflexão, a frase da minha amiga G, transformou-se numa espécie de “lema” ou de “motto” pessoal que dou comigo, volta-e-meia, a repetir, para mim próprio ou para os poucos a quem hoje-por-hoje ainda me atrevo a confiar as solitárias lucubrações de eremita urbano e misantropo por opção... "de carreira" que me obstino, por escrúpulo intelectual e imperativo ético, em ser [muitas vezes, para as minhas cadelas que essas sabem guardar um segredo, respeitar uma confidência além de possuírem uma aparentemente inesgotável sabedoria natural de fazer inveja a muita gente…]; isso, sempre que um ou uma dos “tais” que parecem directamente saídos da “minha” velha sala-de-professores comigo, nas minhas solitárias errâncias pela cidade, acontece que se cruzam e eu não tenha tempo de mudar de passeio…

Sucede que, hoje, me ocorreu, num contexto razoavelmente diferente na forma, por nada menos do que duas vezes, a expressão de que acabei fazendo natural divisa: uma, a primeira, ao, percorrendo o meu nutrido arquivo de recortes de jornais e revistas, deparar no “Público” de 09.09.10 com um texto ["Todos diferentes e todos desiguais?"] de Esther Mucznik sobre [in] tolerância em que parte da abordagem do escandaloso “affaire” da expulsão recente dos ciganos de França para tecer algumas aparentemente pias reflexões sobre o importante tema.

Ora, o que eu digo [e por iso, a expressão me saltou instintivamente ao espírito no contexto] é que definitivamente não “se enxerga” uma pessoa que vendo o pauzinho no olho do vizinho, não consegue ver a viga ou a trave no seu próprio que, neste caso, é obviamente o surdo mas brutal genocídio do povo palestiniano pelo criminoso estado de coisas político e administrativo que é o Estado de Israel cuja desumana e indigna, civilizadamente indefensável, “causa”, volta-não-volta Mucznik vem a terreiro arguir, demonstrando, aliás, uma inquietante insensibilidade perante o sofrimento humano e dando, de uma forma mais geral, cabais provas de um imperdoável desprezo pelos valores do humanismo e da civilização.

Tão pouco se enxerga uma igreja católica [é o segundo caso que queria hoje aqui trazer-vos] que gasta milhões a “decorar-se” ou a aperaltar-se em Fátima [só há bem pouco foram anunciados mais dez milhões para um túnel de acesso à tal faraónica basílica que custou uma quantia que é um autêntico escândalo em tempo de crise e de sacrifício para tanta gente, católica ou não]; uma igreja completamente bloqueada e desacreditada pelos sucessivos casos que vêm, um após outro, demonstrar, de forma absolutamente inequívoca, o fracasso clamoroso da sua “politica sexual” e que, como se não fosse nada com ela, quer, agora, segundo o “Diário de Notícias” também este de 09.09.10 denotando uma “ingenuidade” que me deixa absolutamente perplexo e incrédulo, saber por que razão ou razões perdeu 500.000 [meio milhão!] fiéis em pouco mais de duas décadas…

Ora, eu não creio que gente como Esther Mucznik ou a astuta e lucrativa empresa multinacional em que se converteu já, sob inúmeros aspectos, o Vaticano e os seus franchisings locais “as deitem em saco roto” ou pequem, por outro lado, por candura ou ingenuidade.

Acho mesmo [e por isso escrevi este texto e por isso acho que devo divulgá-lo e propô-lo com toda a veemência ao debate] que, quando é já gente desta que, de repente, desata a, tão estranha quanto ostensivamente, não "se enxergar", é porque chegou seguramente o tempo de ser para nós demasiado perigoso que o não façamos nós próprios, por eles e por nós ao mesmo tempo: "todos nós como mundo", todos nós como "sociedade ética e moral"...


[Nas imagens: Crianças judias num lager nazi e crianças palestinianas num campo de refugiados, imagens extraídas, com a devida vénia, respectivamente de nazisexecutetheweak-dot-blogspot-dot-com e flickr]

"Che Ti Dice La Patria o Un Paese Mortalmente Felice..."


..."E comunque siete fortunati, voi, italiani! Perché queste questione potete [sapete!] ancora almeno due o tre pensarne! Noi, portoghesi, siamo già "al di là del pensiero", della possibile considerazione delle nostre debolezze mentale, culturale, soziale, politiche... Siamo un popolo insomma... «mortalmente felice»"...

[Republicado do "Facebook" de um comentário pessoal ao texto aí inserido por Filippo Cusumano sobre a Itália de hoje; imagem ilustrativa extraída com a devida vénia de artesetima-dot-blogspot-dot-com]

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

"O Benfica, Esse Gigantesco, Esse Eterno [E, No Fundo... «Identitário»] Flop..."


Não virá a propósito, até reconheço, mas não resisto a deixar aqui registada esta [no fundo, já completamente conformada] conclusão: este Benfica era mesmo uma frágil e, em larga medida, acidental coincidência de Jesus mais Ramires e Di Maria mais debilidades alheias, entretanto corrigidas: um fortuito 'arranjo dos factos' que não resistiu à inclemente prova final da realidade...

O resto para além da 'fórmula' em causa, o miolo, a suposta [e demasiado apressadamente dada por adquirida] "substância" resumia-se, afinal, a ilusão de óptica, folclore passageiro ---e [se alguma coisa...] pouco mais.

Há, no entanto, em tudo isto; no gigantesco fracasso que é cada vez mais comprovadamente o Benfica de hoje, uma espécie de lado perversamente positivo que não se deve deixar de, ao menos com sarcasmo e por sarcasmo, considerar: até na mediocridade e na insuficiência, o Benfica permanece o clube mais emblemático e representativo de Portugal.

Num país de Barrosos, Sócrates, Soares, Cavacos, Santos Silvas, Lellos e, agora, também, de Ângelos Correias e Passos Coelhos, com efeito; num país sem horizontes, um país acocorado, "eurovegetativo", sem verdadeiras perspectivas, já meio afundado ou mesmo completamente encalhado em si mesmo por efeito de desonestidades e inépcias de todo o tipo; infindavelmente cateléptico, irregressivelmente lobotomizado e, no fundo, sempre irremediavelmente adiado---e falhado!---como país, de facto, que melhor imagem "competitiva" para o Portugal dos últimos trinta/trinta e tal anos---o que hipotecou criminosamente as esperanças que lhe foram generosamente postas todas ao alcance da mão em Abril de '74---do que um Benfica que só parece realmente destacar-se a falhar objectivos, a frustrar expectativas e, de um modo geral, a trair as ilusões que, uma após outra, vai semeando e invariavelmente, logo em seguida, gorando?...

"Uma Falsa Ideia de Progresso"


Muitas vezes penso que aquilo que verdadeiramente nos distingue dos animais é a percepção moral: os animais possuem-na naturalmente…

O carácter epistemologicamente credível, efectivamente fundamentado, de um sistema moral operando como autêntica teoria da realidade e saber genuíno é algo que, de um modo geral, não faz, com efeito, parte do arsenal representacional tópico dos humanos, em geral.

Quero eu dizer: alguns homens de excepção ao longo da História foram possuindo imagens próprias [em larga medida, ulteriormente trabalhadas e educadas, por cada um deles, à sua maneira pessoal de modo a configurarem no seu conjunto um verdadeiro conhecimento, uma filosofia] dessa espécie de percepção ecoforme da realidade que faz da experiência sensível e intelectual da mesma um acto [ou, em termos genéricos, uma acticidade] verdadeiramente necessários porque em autêntica consonância com as leis que regem o funcionamento [em tese, pelo menos] natural da realidade e permitem que a ela nos conservemos ligados por traços de, nesse caso, pois, genuína necessidade---no mínimo dos mínimos, crítica.

As religiões, por outro lado, como desmodelações puramente arbitrárias de um conjunto de conhecimentos originais que o que entendo constituir o fundo de expansão/dissipação material subjacente aos mecanismos básicos de geração de realidade deformou até tornar completamente irreconhecível e, sobretudo, completamente inútil como meio de representar o real; as religiões, por outro lado, dizia, deixaram já há muito de valer de forma efectiva como conhecimento possível, antes se interpondo, isso sim, frequentemente, de modo completamente disfuncional e disfuncionante entre o homem, a consciência humana e o seu apetite natural pela geração de imagens estáveis, tópicas e epistemologicamente acreditáveis do real.

As religiões e o cristianismo em particular introduziram entre os nossos modos característicos de conceber ou de inteligir abstractamente o real deformações persistentes [tão persistentes que passaram, a operar como uma componente implícita significadora do próprio olhar e mesmo, no limite, como o próprio olhar enquanto tal] que contaminaram não apenas a visão que num plano mais comum, mais laico, dele fazemos mas inclusive aquela ou aquelas que as ciências, em geral, são capazes de produzir.

A ideia de que o real possui um horizonte exterior a si e, por conseguinte, em geral pressupostamente um sentido e um significado finais, por exemplo, ainda quando não explicitamente expressa [ou mesmo quando à outrance negada] por exemplo, é um dos casos tópicos dessa contaminação que nos faz, por exemplo, partir implicitamente muitas vezes [demasiadas vezes!] do princípio de que o “progresso puro” e não-crítico [e/ou não-moral num sentido intelectualmente independente e nobre]; o progresso como um objecto natural situado não apenas fora do próprio real---numa espécie de futuro providencial imanente senão mesmo, para muitos efeitos e sob diversos aspectos, transcendente---mas situado, também, fora do alcance da consciência crítica e dispensando-a, em última instância, em resultado da sua suposta inevitabilidade objectual.

Tenho para mim que grande parte da des-ordem em que se situam as formas contemporâneas de “progresso”, técnico mas não só, provem daí desse “finalismo pressuposto” que infectou muitas das nossas formulações científicas e faz com que, fiados numa suposta natureza providencial do “progresso” que herdámos ou “transcrevemos” mais ou menos instintivamente do domínio formal do “sagrado”, utilizemos, muitas vezes, os objectos ou produtos do progresso como se este não tivesse de ser construído e, depois, escrutinado, passo a passo, como qualquer criação humana inevitavelmente falível e possuidora de efeitos secundários eventual ou potencialmente prejudiciais e aqueles produtos estivessem ao invés providencialmente isentos de riscos construcionais de todo o tipo oferecidos ao presente que os viu nascer por um qualquer futuro pré-significado que viesse, por seu turno, santificá-los, significá-los e, desse modo, e isentar o respectivo uso de qualquer mácula ou risco.

Temos hoje, como recordo noutro ponto, formas extremamente perigosas de agnosia e iliteracia que se prendem nuclearmente com esse modo à sua maneira pré-significado e arbitrariamente transcendentalizado de conceber o mundo que vê cada presente não como uma construção completamente original de si mesmo mas como uma mensagem imanente vinda de um futuro preexistente que muito mais do que ser construído com todos os riscos inerentes a uma construção tem, na realidade, de ser apenas descoberto, atribuindo-se desse modo à consciência o estatuto de uma grande memória de coisas que na realidade enquanto projecto de imanência ou mesmo, insisto, de transcendência não apenas já aconteceram como tinham necessária e, de algum modo, inevitavelmente de acontecer.


[Na imagem: Joan Mirò, "Hand Catching a Bird"]

"A Rigidez Mental na Ideia de Rigidez Mental: Breves Reflexões Pessoais Sobre a Ecologia do Modelo Produtivo"


Uma das razões pelas quais, muito mais do que perante um “fim” [que, aliás, o respectivo “descobridor” e proponente, ele mesmo, já renegou] nos achamos, como modelo civilizacional, perante uma “esquina” ou “um vértice” da História, prende-se com aquilo sobre que discorre, por exemplo [é um dos exemplos talvez mais recentes extraído do meu arquivo de recortes pessoal] um articulista chamado Pedro Pontes Falcão, que, na edição de do jornal “Público” fez inscrever um texto com o título “A rigidez mental na rigidez do mercado de trabalho” onde aborda a magna questão da “flexibilização” do mercado de trabalho.

Ora, eu, a quem a dita ideia de “flexibilizar” um mercado de trabalho hoje-por-hoje já indecorosamente frágil, desumanamente quebradiço e disfuncionalmente de todo efemerizado repugna de uma forma extrema e mesmo incondicional, tenho honestamente de reconhecer não ser possível deixar de dar razão a quem assim pensa na condição de me colocar na [para mim, disfuncional e civilizacionalmente retrógrada e aí é que reside a grande diferença!] idêntica perspectiva que consiste, em termos práticos, em conceber a História das sociedades humanas como um mero mecanismo de funcionamento autónomo [autónomo relativamente a considerações de ordem humanista] mas cuja dinâmica in/essencial básica obedeça, pelo contrário, a meros móbeis ou ditames [e a simples estímulos] de ordem desumanizadamente técnica e---chamemos-lhes assim, à falta de melhor designação: primariamente composicional].

Ou seja: se nos for filosófica, ética e, em geral, intelectualmente possível sem escândalo conceber um paradigma civilizacional em que uma monstruosa ideia de “felicidade composicional ou técnica” do modelo económico possa ser concebida como algo de não apenas alienadamente independente da felicidade humana individual e colectiva dos indivíduos que compõem a sociedade onde esse modelo vigore mas, mais ainda até que isso, operando na História e na Política como um verdadeiro pressuposto e uma condição sine qua non desta última, é, tenho de reconhecer, admissível que venhamos hoje, dois ou três séculos após a eclosão da chamada Revolução Industrial e das profundíssimas disfunções que socialmente ela começou por implicar, reclamar mais “flexibilidade” para um, repito, já mais do infixo e débil, inquietantemente “enfermiço”, mercado de trabalho.

Só, todavia, uma visão profundamente distópica e filosoficamente neutral [neutralizada] da História pode admitir nas sua considerações sobre o mundo e sobre a Politica em particular essa figura teórica inexplicavelmente aberrante, dificilmente compreensível no contexto daquela que se pretende uma “sociedade do conhecimento” ou “gnoseotópica” [a “gnoseotopia” perfeita] que consiste em impor às leis da natureza leis que são de índole exclusiva e, neste caso, absurdamente humana.

‘Humana’ no pior sentido da palavra, porém.

Ninguém negará, com efeito, a [em meu entender, apenas?] evidência que consiste em considerar que alimentar-se regularmente ou abrigar-se do frio e proteger-se do calor são imperativos indissociáveis da própria condição biológica dos indivíduos que não podem, em última instância, “negociar-se” [sem profundo retrocesso civilizacional, em todo o caso e mesmo assim, apenas dentro de níveis material e objectivamente toleráveis].

São, dito de outro modo, funções biológicas essenciais que não podem suspender-se arbitrariamente por projecto ou estratégia politica porque se reportam a leis naturais perfeitamente reconhecíveis e inegáveis [e, por isso, objectualmente inegociáveis no contexto de modelos de civilizacionalidade minimamente modernos e humanistas] e a eles se juntam, num outro plano a que deveríamos chamar “civilizacional”, o valorizar-se intelectualmente adquirindo conhecimentos ou integrando entre os “bens” essenciais todo um conjunto de práticas de ordem metabiológica e cultural que consagram o reconhecimento e manutenção dos indivíduos acima do limiar do estrito e estreito primarismo biológico ‘puro’ que consiste em comer, beber, dormir, cobrir-se do frio, proteger-se do calor e/ou reproduzir-se.

Ora, aquilo que fazem os propugnadores do modelo de civilizacionalidade que consiste em fazer decorrer a admissível felicidade dos indivíduos e das sociedades humanas em geral de uma felicidade técnica da infra-estrutura económica ou económico-financeira dessas mesmas sociedades [a base conceptual ou conceptuante da “economocracia” liberal contemporânea] é, num plano teorético informante do modelo ou modelos políticos concretos em geral propostos subsumir o funcionamento pontual dos organismos biológicos ao das máquinas propondo, de forma obviamente disfuncional à ecologia do próprio sistema ou modo de produção que se conforme com “leis” que são da sua exclusiva lavra e que permitem, afinal, pôr em evidência, em toda a sua verdadeira extensão, a natureza estruturalmente disfuncional e absurdamente inversional [uma economia com um “revestimento politiforme”, infixo e meramente instrumental a… “tiracolo”…] do modelo economocrático proposto [imposto].

Ou seja: quando se diz [como faz o articulista que comecei por referir] que só a “rigidez mental” dos indivíduos impede que o mercado de trabalho” idealmente” se… “flexibilize” aquilo que, em termos práticos e reais, se está a dizer é que só por “rigidez mental” os indivíduos comem, só por “rigidez mental” persistem em se vestir e só por “rigidez mental” alguns deles, pelo menos, se obstinam em permanecer acima do nível dos primatas que os antecedem na escala evolutiva…

É claro que, para quem está do lado do absurdo paradigma de “desenvolvimento” que consiste em conceber este como uma categoria a priori da economia ou um “imperativo categórico de “historicidade” este absurdo teórico e epistemológico não apenas faz sentido como representa o sentido mesmo da História.

Mas só para esses, de facto.

E é exactamente por isso que eu penso nos encontramos, como comecei por dizer, perante uma “esquina”, “ângulo” ou “vértice” e não realmente um fim da História: porque obstinando-se alguns em fantasiar o futuro desta como uma simples e cega intensificação do próprio paradigma inversional e politicocêntrico ‘puro’ já hoje em vigor que consiste em pôr uns quantos iluminados “de carreira”a ditar arbitrariamente ordens à própria ordem natural da realidade, parece evidente e previsível que daí só pode resultar uma de duas coisas, sendo que a opção é [ainda] nossa, de todos nós que habitamos [de uma forma preocupantemente conformada e passiva, é preciso dizer!] os sistemas políticos e os modelos civilizacionais que eles suportam e substanciam: ou o afastamento político dos agentes sistémicos que, de dentro do sistema, se obstinam em propor o que, de mais de uma maneira configura a “extinção artificial da realidade” ou esta se revolta, previsivelmente se indigna toma ela própria a incitativa de se extinguir mais ou menos… naturalmente.


[Imagem extraída com a devida vénia de unicam-dot-br]