Não aprecio---rejeito, aliás, instintivamente; rejeito... por confessa vocação"---o 'registo Clara Ferreira Alves', sempre caracteristicamente "auto-biográfico", sempre ensimesmado e irresistivelmente auto-admirativo, muito estilo "intelectual-português-de-suplemento-literário-anos-sessenta", assim tipo: "Joyce e Proust são grandes escritores e Borges extraordinariamente lúcido, não sou?..."
Há relativamente pouco tempo cruzei-me fugazmente---de raspão...---com o 'milieu' teatral por iniciativa do meu amigo Armando N. Rosa, dramaturgo e ex-colega de escola e lá, àparte meia-dúzia de fulanos interessantes e com indiscutíveis mas pouco auto-publicitados méritos [e até confessos "bichos-de-mato", como eu próprio e como o João Mota] reencontrei, inteirinho, o mesmo 'boneco' intelectualmente narcísico e auto-embasbacado de que não gosto rigorosamente nada [agora a interrogar-se, ao que parece mais estarrecido do que nunca: "mas por que é que não me admiram e não ouvem, no mais respeitoso e venerador, boquiaberto, dos silêncios as minhas tiradas geniais sobre praticamente tudo o que mexe e que Deus criou precisamente para que eu tenha um pretexto para atirar tiradas, exactamente do mesmo modo como, na canção do Zeca, "os sheiks das fitas dão porrada a quem passa" e logo calhou serem as minhas que são precisamente as mais geniais de todas?!"...] e, confesso, voltei a não gostar.
Seja como for, mau grado tudo quanto digo, lendo há escassos dias uma entrevista que Clara Ferreira Alves fez recentemente... "a si mesma a propósito de Eduardo Lourenço", li-lhe uma ideia de que [finalmente gostei!] e que adopto, de resto, desde já, como minha: interrompendo o questionário que estava a fazer a si própria a pretexto de entrevistar Lourenço, dirige-se a dado passo, Ferreira Alves a este afirmando: "Existem escritores menores sobre os quais já o ouvi falar que não têm nos livros aquilo que você põe lá. É como se lhes desse mais talento".
Ora, a mim, como disse, não me repugna nada---pelo contrário!---adoptar sem reservas o que está aqui dito---e que pode mesmo perfeitamente ser uma espécie de 'motto' ou de 'divisa' para a maneira como eu próprio, enquanto leitor ou 'espectador' [uma palavra de que não gosto francamente nada mas enfim!...] me relaciono com o Teatro ou o Cinema---ou, já agora, com a Literatura, a Pintura, a Música: "leiturando-os", muito mais do que vendo-os ou lendo-os simplesmente a todos eles..
Amar uma obra---um filme, um livro, um quadro, uma sinfonia---seja ela qual e de que género ou disciplina artística for, é, com efeito, no fundo, exactamente isso: "reescrevê-la, reescrevê-la sempre", à obra; reinventá-la, perdoá-la e amá-la nos seus defeitos mas, sobretudo, nos nossos próprios defeitos---e desejos.
E desejo.
Eco, que se fartou de "leiturar", queixa-se do que chama, de forma expressamente depreciativa, "sobre-interpretação".
Esquece-se, por exemplo, da que Freud fez do "Hamlet" que sendo em muitos aspectos demonstravelmente errada e inexplicavelmente abusiva---invasiva e "sobre-interpretativa---é, ainda assim [ou por isso mesmo?] admiravelmente cativante porque também poderosamente estimulante.
De facto, nos seus erros e imperfeições, extrapolações e petições de princípio, ela confronta-nos com os nossos próprios desejos, por vezes, não abertamente expressos [e até aí insusceptíveis de serem-no por falta justamente de uma alavanca ou de uma chave circunstancial que os suscitasse na consciência em vez de deixar que permanecessem, para sempre na sub-consciência]; nos seus erros e inexactidões de fundo, ela "abre"---"expõe"---numa palavra, a obra inteira ao futuro---no limite, a todos os futuros; fala-nos do "Hamlet" ou dos "Hamlets" que Shakespeare escreveu mas, também---e num certo sentido: sobretudo---daqueles que ele não escreveu mas podia ter escrito; interpela o próprio "Hamlet", "dialectiza e expande", em tese, infinitamente ["em espiral dialectizante", diria eu] a leitura que deles, dos vários "Hamlets" [im] possíveis podemos fazer; em suma: faz da fruição estética uma autêntica 'psicanálise' [ou 'aventura psicanalítica'] em situação' da qual só podemos, no limite, sair mais ricos porque mais próximos de nós mesmos, num 'circuito dialéctico' onde a obra de Arte e os saberes que ela pode activamente conter e, sobretudo, induzir, suscitar, trazer até nós desempenham um papel verdadeiramente angular---ou verticial, como gosto pessoalmente de dizer.
Eco chama-lhe "sobre-interpretação" e despreza-a de uma perspectiva de rigor e objectividade crítica e cognitiva?
Eu chamo-lhe "leituração" ou "educada desconstrução dialéctica" ["dialectical educated disassembling"]---e pratico-a sempre que posso da mesmíssima perspectiva de rigor crítico e objectividade criativa, digo, cognitiva...
[Na imagem: Kenneth Brannagh in faculty.fairfield.edu]
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