sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

"Sobre o chamado «Acordo Ortográfico»" [Text in the Making]


Ainda, em larga medida, com o espírito [e o coração] noutro lugar, abordo, hoje, aqui, alguns aspectos específicos do famigerado "Acordo Ortográfico", divulgando inquietações, perplexidades e dúvidas que ele me levantas e que serão, em tese, as de outros portugueses, amigos e visitas habituais do "Quisto".

Não se entende, de todo, por exemplo---não o entendo eu, seguramente!] o "argumento" invocado por Malaca Casteleiro para tentar contrariar a ideia de uma mais do que previsível perturbação que os, por sua vez, mais do que discutíveis "ajustes" casuísticos introduzidos ao nível morfológico na língua portuguesa pelo "Acordo" vêm, por sua vez, transmitir ao plano fonológico [e, a prazo, por natural contaminação em toda a mecânica] da língua---argumento esse que é o de que a oralidade precede a escrita e, por conseguinte, quando se começa a registar o idioma já se sabe articulá-lo adequadamente.

Bom mas, então, onde é que essa visão "bifásica" [e, no fundo, 'inorgânica'] da aprendizagem de uma língua deixa a respectiva pedagogia e a correspondente didáctica?

"Aprender" uma língua na escola é, pois, no [in?] essencial, apenas [ou sobretudo] registá-la?

Há, a meu ver, uma tácita e dificilmente explicável desvalorização objectiva do ensino formal e do papel orgânico da Escola; um estranhíssimo "entendimento" [?] do papel dinâmico, estrutrural e verdadeiramente estruturante, da pedagogia e da didáctica das línguas e, por via dela, da própria formação da consciência dos sujeitos do estudo destas implícita no "argumento" apresentado por um dos principais responsáveis pelo "Acordo" precisamente para justificar a sua existência nos moldes em que esta surgiu.
Moldes esses que eu não hesitaria, de resto, em classificar de, no mínimo, altamente discutíveis, porque, sob diversos aspectos, em larga medida gratuítos e tecnicamente insustentáveis---e isto, a vários níveis, aliás: propriamente linguístico, académico, pedagógico e didáctico, etc.

Se tivesse havido o que, demonstravelmente, pudesse ser designado por uma rigorosa fixação de paradigmas ao menos sectoriais de linguagem escrita ainda haveria a possibilidade de se invocar o mérito de uma certa "arrumação morfológica" que facilitasse a sua aprendizagem e, por conseguinte, o objectivo final de melhorar o respectivo uso específico.

A verdade é que não é isso que acontece: as mudanças morfológicas introduzidas não só vêm originar algumas confusões bem dispensáveis como não possuem aquele carácter exaustivo que poderia, de algum modo, "fazer lei" de acordo com o princípio da "universalidade tética" que preside naturalmente à formulação destas em qualquer saber ou ciência.

Mas, ainda assim, fixar uma ortografia só faz sentido se o propósito for fixá-la bem.

Como distinguir, por exemplo, "recessão" e "recepção/receção"?

Claro que existe o factor particular da contextuação mas para quê criar uma confusão de princípio por não se ter percebido [e isto surpreende e perturba, de facto, tratando-se de académicos com este tipo de encargo e de responsabilidade!] que há, na língua portuguesa [que é uma língua que, na sua versão estritamente ibérica, 'lusitana' não "abre" ou não "projecta completamente para o exterior", em toda a sua extensão, de forma natural, determinadas circunstâncas vocálicas em que o "a", o "e" e o próprio "o" tendem a permanecer "escuros"; por quê, dizia, criar estas situações de possível confusão adicional por não se ter percebido que o idioma gerou secundariamente aquilo que costimo classificar de "consoantes funcionais" [o "p", desde logo] cuja função estrutural na língyua não é necessariamente o serem lidas mas o de abrirem ou "aclararem" vogais que, sem esse suporte, tendem a permanecer "escuras" e, por conseguinte, a contaminar a fonética e por conmseguinte a disfuncionar o uso específico da língua.

Como é que se ensina; como é que, em casos como o do binómio "recessão"/"recepção", se fundamenta de forma minimamente racional o ensino---no sentido de evitar que o único suporte [i] lógico de aprendizagem voltem a ser, em última instância, como em tempos passados, a "palavra do mestre" e, na sequência desta, a memorização pura e simples, dos conteúdos de aprendizagem?
De facto, a meu ver, a ideia que preside ao "Acordo" em termos teóricos latos é, em última instância, muito discutível: é, de facto, a prazo, ou completamente impossível [e não me restam dúvidas de que o é!] "teleguiar" os paradigmas de evolucionalidade linguística simultaneamente nas diversas áreas do globo onde se fala português ou, em alternativa, configura tal desiderato um acto de absurdo... "absolutismo epistemológico" que nada justifica, explica---e/ou fundamenta.

As línguas são organismos vivos que respondem perante as necessidades concretas sentidas pelas culturas para exprimirem fundamentalmente ideias---não para respeitarem "leis" de índole primariamente formal que as limitem e indesejavelmente aprisionem.

Basta recordar o modo como o franquismo esterilizou "legalmente" a língua basca impondo o uso oficial do castelhano o que viria a ter efeitos dramáticos a nível da aptidão do basco para acompanhar no plano da produção linguística a própria evolução material da História [das ciências, da técnica, etc.] algo que veio a ter de fazer forçosa e, de algum modo, também forçadamente após a queda do regime ditatorial.

De resto, é preciso ter aquele princípio básico da estrita mas não não estreita funcionalicidade das línguas quando se projectam reformas e acordos da natureza do actual.

A filologia impositiva e in/essencialmente "formal" do fascismo sempre teve na sua base a ideia de uma "pureza técnica" chamemos-lhe "arquetipal" pura completamente autónoma e, por conseguinte nuclearmente desligada da componente expressional dinâmica assente numa perspectiva "educasdamente conteudizante" da própria língua.

O fascismo foi, por definição, um regime [obviamente político mas também mental e até cognicional] fortemente cventtralizado, directivo e autoritárioque não goistava de iniciativas individuais---no plano político como no da formulação autónoma de consciência e/ou pensamento.

Daí o ter usado essa perspectiva quase... "neo-platonizante" da pedagogia e da didáctica das línguas; um paradigma de educatividade específica sempre categorialmente orientado para um 'passado ideal' comum, generalizador e cuidadamente uniformizador---que o era no plano linguístico mas que o era, também, decorrentemente, no próprio domínio essencial da criação original de pensamento.

Havia, aliás, o seu quê de "pureza" nos paradigmas cultu(r)ais envolvendo o uso social da língua que permitiam, sem grande dificuldade, aliás, fazer uma espécie de ponte com outras "purezas" bem mais graves que tiveram, noutros domínios mais abertamente políticos e noutros sociedades onde o fascismo foi levado às últimas---e bem trágicas!---consequências, os resultados que se conhecem...

Note-se quer aquilo que está aqui a ser preconizado como perspectiva de episteme em matéria de normalização linguística, designadamente, não é [longe disso!] qualquer des-sistematização arbitrária ou "espontaneamente" pragmatizante da língua: é, sim, muito claramente a sua "educada funcionalização", ou seja, a de aferir sempre a adequação da "evolução" linguística pela sua capacidade de dar resposta a necessidades orgânicas do pensamento e, em caso algum, por imperativos de mera correcção formal e/ou mecânica.

Ou, já agora, exogenamente "política".

Que é, todavia, para onde aponta o sentido global das "reformas" que agora se pretendem ver introduzidas---circunstância que explica, aliás, a meu ver, em última [mas real!] análise, muitas das disfuncionalidades de que o "Acordo" vem, em meu entender, demonstravelmente, desde o início, [des] estruturalmente inquinado.


[Imagem extraída com a devida vénia de ?]

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