domingo, 24 de janeiro de 2010

"Para uma ecologia das práticas educacionais---a propósito de uma concepção particular de «educatividade» constante de um texto de Daniel Sampaio"


Da "Pública" de 17.01.10 consta um texto de Daniel Sampaio intitulado "Fim ao mais do mesmo" integrado na série regular dada à estampa sob o título genérico de "porque sim" sobre o qual valerá a pena---desde logo, a mim, como [modestíssimo, embora!] educador---tecer algumas, ainda que breves e sumárias, considerações.

Com esse propíosito presente, valerá a pena, penso eu, começar por uma prevenção: entre mim e o doutor sampaio existe uma divergência teórica de fundo.

Basicamente, aquela que existia e existe entre uma certa psiquiatria tradicional e as propostas apresentadas por homens como Laing, em meados do século passado para ajudar à sua renovação ou ao seu 'refrescamento' epistemológicos.

De facto, na essência, aquilo que D. Sampaio faz como psicologia é naturalmentre integrável numa concepção global de um tipo a que poderá chamar-se com propriedade 'sistémica' ou 'ortodoxa'.

Aquilo que conceptual e, depois, de forma natural, metodológica e normativamente define este modelo genérico de 'pensar psicológico e psiquiátrico' é, na essência, a admissão da sua parte da imutabilidade primária---na prática, radical e/ou absoluta---das condicionantes causais exteriores, históricas, dos comportamentos psiciológicos do indivíduos, i.e. dos "sujeitos" da acção psicológica e psiquiátrica e, por outro, já no plano normativo, a centração da acção do agente da psicologia/psiquiatria, numa teoria de normas destinadas a referenciar estrategicamente e, por conseguinte, sempre e sobretudo, adequar pontualmente os comportamentos daqueles mesmos "sujeitos" à realidade exterior tal como ela lhes inalcançavelmente pré-existe.

É essencial perceber este quadro; esta visão, em larga medida, "metafísica" e essencialmente conservadora da acção psicológica para se perceber a importância das concepções anti-psiquiátricas de Laing e dos diversos "anti-psiquiatras" do século passado.

Para estes, a psicologia e a psiquiatria---as "ciências" [ou, como prefiro dizer: as "ciencialidades"] da mente configuram, na essência, uma fenomenologia de natureza reconhecível e demonstravelmente política [no sentido mais nobre e dialéctico do termo] sendo que o ónus, o "custo" [o custo identitário e, por conseguinte, também 'terapêutico'] da renovação psicológica não reside essencialmente no sujeito mas no "rapport", num certo sentido nobre e determinanhte: orgânico estabelecido entre esse mesmo "sujeito" e a realidade circundante.

Que o mesmo é dizer: a renovação a fazer é tanto do indivíduo como do seu entorno activo sendo que só assim aquele pode fazer jus à designação de "sujeito".

De facto, para as concepções tradicionais, o indivíduo, ao "entrar" na psicologia e na "psiquiatria" funciona muito mais como o respectivo "objecto" do que como o seu sujeito, na medida em que aquilo que se espera dele é uma resposta comportamental e especificamente terapêuta ao meio nunca essencialmente uma mudança partilhada, de forma teoricamente necessária, por ambos.

Neste quadro, designemo-lo por "epistemologicamente ortodoxo", o indivíduo opera na realidasde como o "objeito" ou o "subjecto" da intervenção psico-dinâmica---se não quisermos considerar simplesmente que ele aparece nele como o mero "objecto" daquela intervenção.

A estas ideias ou "ideações" envolvendo uma "psico-ciencialidade" ortodoxa e outra contrária a essa ortodoxia costumo eu agregar as minhas próprias ideações envolvendo o que chamo "trickle-down societations" e "shedding societations".

Que entendo eu por estas [sempre discutíveis, admito] designações?

Muito simplesmente o seguinte:entendo eu que, na natureza, os mecanismos de emergência e, em alguns casos como nos das espécies conscienciais ou conscienciadas operam segundo uma espécie de linha determinante contínua---uma "ciência" ou um saber genetizados, genética e, noutros casos, molecular, atomicamente fixados---que mantém a realidade tessitariamente unida a si mesmas, numa espécie de movimento descencional contínuo onde ela nunca essencialmente sofre interrupções funcionais e, por conseguinte, emn tese, também globalmente formais.

Neste modelo a realidade "escorre" ["trickles down"] dos paradigmas "genetizados" ou "molecular/atomicamente fixados" para os "indivíduos [ou "individuações significadas"] respectivas, de forma natural---e seguindo, aliás, a meu ver, um padrão genérico de "volução" tópica contínua, expansional e estruturalmente desintegrativa da realidade que, em tese, se iniciou com o "big bang".

Na espécie humana [Freud é indispensável para se perceber a essência de alguma desta fenomenologia!]; na espécie humana, dizia, o processo descentra-se funcionalmente relativamente aos modelos tradicionais anteriores de "des/multiplicação significada da realidade" [modelos esses em cujo contexto o 'indivíduo' é, de facto, muito mais a tal 'individuicidade funcional' a que atrás aludo do que propriamente um 'indivíduo' em si] e recentra-se, em seguida, nos indivíduos sem perder, porém, a forma global construcional "descendente" ou "descencional" do modelo para o indivíduo---processo em que as 'ideações' envolvendo o "Édipo" e a "Electra" freudianos [por muito que eles possam ter sido circunstancial e ocasionalmente hipervalorizados pelo Mestre] desempenham um papel referencial verdadeiramente nuclear e capital.

Ou seja: ao definir-se, a consciência tradicional "copia significadamente" o real e conserva-se, desse modo, criacionalmente como parte dele.

A formação desta consciência tradicional configura na base um acto essencialmente ecológico e natural que as formas imediatas de societação valorizando nuclearmente a velhice, a "senioridade" básica e, sobretudo, naturalmente funcional [que também pode ser---e é---institucional nos modelos tradicionais do que chamo "societação"] integram e recriam na cultura dos indivíduos e das sociedades.

Os pais [e as mães!] são o modelo natural dos filhos, havendo, nos modelos tradicionais de societação, uma espécie de percepção funcional abstracta da "democracia", de "democracia natural", com eco na existência concreta dos indivíduos e das sociedades poer eles formadas.

Ou seja: quem detém o saber [seja ele, um "saber genético" ou "adquirido", empírico] detém, de igual modo, naturalmente a autoridade---essencial à sobrevivência da espécie.

À medida que "copiam", genética mas também---estamos a falar de espécieas conscienadas onde "já há" auto/demonstravelmente "indivíduos"---experiencialmente "os velhos", os indivíduos jovens vão ganhando, de forma natural, o direito [e o Direito!] à igualdade fundamentada com eles---i.e. um estatuto lógico [de facto, eco-lógico] preciso, mas sobretudo natural, na comunidade.

É disto, desta mecânica específica de aquisição de estatuto social que falo quando falo de "democraticidade ecológica" ou "natural.

A prazo, todo deste modelo de percepção e de "habitação cultu(r)al da realidade" vai-se desmoronar [o modo como a sociedade industrial toma, no século XIX, a liderança da condução da História e da definição dos respectivos padrões particulares, específicos e determinantes, de "desenvolvimento"---para além do facto determinante envolvendo o modo como ela vai redistribuir social e politicamente a propriedade particular do conhecimento---vai ser decisivo para essa "revolução" operada também no plano dos padrões cultu(r)ais de relacionamento global da espécie com a realidade] e entra-se no que chamo o paradigma "shedding" de societação nas diversas sociedades sobretudo europeias e norte-americana.

De acordo com este, os padrões globais de "volução" do real perdem, a dado passo, por completo o seu "centro determinacional"; perdem aquela lógica descensional contínua que mantinha o real ininterruptamente ligado a si próprio tecnologia e vai surgir um modelo conceptual inteiramente novo---e inteiramente pós-ecológico---segundo o qual a realidade se vai ver forçada a reiniciar-se sucessivamente não a partir de modelos naturais situados atrás dos indivíduos e antes deles [onde já não está o saber determinante que foi, entretanto privatizado e entregue a uma classe sacerdotal económica e, depois, económico-política] mas da experiência pura desses mesmos indivíduos, operando-se a aquisição social de saberes [sempre de natureza secundária e de mera manutenção] in/essencialmente por descarte, isto é, através de experiências ou de experienciações, de um modo ou de outro, inteiramente autónomas e/ou 'puras' do real as quais vão sendo, sucessivamente, descartadas ["shed"] e substituídas por outras igualmente novas quando se descobre que as anteriores 'falharam' i.e. quando se estas revelaram circunstancial e circunstanciadamente a-funcionais ou até, não-raro---o processo favorece-o claramente!---completamente dis-funcionais.

A "democracia" perde o seu fundamento orgânico e necessário que era a propriedade tribal do saber e aqueles que o detinham e reprojectavam sobre a comunidade o seu valor referencial orgânico.

Ora, voltando ao início destas notas, aquilo que faz a psicologia 'ortodoxa' de que comecei por falar é, na sua in/essência, tentar encontrar as soluções técnicas e teóricas para refuncionalizar onde e como possível a própria disfuncionação sofrida pela realidade com a ruptura dos pardigmas ecológicos de habitação cultu(r)al e social da realidade.

Lido com a atenção crítica que justifica, o texto do Dr. Sampaio revela-se excepcionalmente eloquente no modo como envolve uma óbvia [e, a meu ver, absurda, bizantina] teorização em torno da claríssima desvalorização do papel, anteriormente determinante, nuclear, dos modelos parentais; limita a emergência dos fenómenos psicológicos, de forma completamente a-histórica e a-política, ao domínio social e politicamente descontextual, etéreo, de uma "ciência psicológica pura", actuante de forma [quase?] exclusiva e, de facto, a-dialecticamente "metafísica" fora até do Tempo, sempre simulando, porém, integrá-lo ["os pais de hoje", "os filhos dos nossos dias"]nas suas cogitações de episteme, ignora, numa palavra, completamente a "forma causal" mesma, última [ou, como prefritro dizer, copiando eu próprio do inglês "ultimate": "ultimativa"] do real.

Um exemplo deste carácter "metafísico" da "psicologia "pura" proposta e exaustivamente argumentada no texto?

Fala, por exemplo, o autor da perda individual de auto-estima como causa de disfuncionalidade relacional familiar.

E como o faz ele?

Equacionando-a como um fenómeno estr[e]itamente "técnico", resultante de quadros causais puros fechados [equacionando-a como um fenómeno "técnico" e mais ou menos "psicologicamente puro"] para o aqual não contam factores objectivos, hoje-por-hoje, incontornáveis e determinantes---factores sistémicos---como a pobreza, o desemprego, a desestruturação socuial nas suas várias formas de onde uma grande parte da perda moderna---e pós-moderna---de auto-estima é, obviamente, 'importada' para o interior das famílias.

Equacionando-o como um fenómeno---e uma "fenomenicidade" absolutas---onde a ruptura dos modelos orgânicos ecológicos de relacionalidade intrafamiliar de sinal organizadamente descencional não só não estão contemplados como são activamente ignorados, com recurso a uma linguagem irrelevantemente poética [volto a questionar: quase?] completamente vazia ["o papel dos adultos junto das crianças deve ser o de compreender e dar apoio", etc. etc.]---meros truísmos eufónicos de sucesso popular garantido que nada significam, porém, e que, a meu ver, como educador, não possuem um mínimo de relevância operativa substancial ou pior ainda substantiva, quer no plano especificamente educativo quer até, atrevo-me a dizer invocando precedentes [realmente inovadores e epistemologicamente estimulantes, do pontro de vista da fundamentação credível das práticas pedagógicas a que estou profissional e vocacionalmente ligado, como o de Laing] psicológica.


[Imagem ilustrativa representando R.D. Laing, extraída com a devida vénia de Lainginstitut.ch]

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