Da "Pública" de 17.01.10 consta um texto de Daniel Sampaio intitulado "Fim ao mais do mesmo" integrado na série regular dada à estampa sob o título genérico de "porque sim" sobre o qual valerá a pena---desde logo, a mim, como [modestíssimo, embora!] educador---tecer algumas, ainda que breves e sumárias, considerações.
Com esse propíosito presente, valerá a pena, penso eu, começar por uma prevenção: entre mim e o doutor sampaio existe uma divergência teórica de fundo.
Basicamente, aquela que existia e existe entre uma certa psiquiatria tradicional e as propostas apresentadas por homens como Laing, em meados do século passado para ajudar à sua renovação ou ao seu 'refrescamento' epistemológicos.
De facto, na essência, aquilo que D. Sampaio faz como psicologia é naturalmentre integrável numa concepção global de um tipo a que poderá chamar-se com propriedade 'sistémica' ou 'ortodoxa'.
Aquilo que conceptual e, depois, de forma natural, metodológica e normativamente define este modelo genérico de 'pensar psicológico e psiquiátrico' é, na essência, a admissão da sua parte da imutabilidade primária---na prática, radical e/ou absoluta---das condicionantes causais exteriores, históricas, dos comportamentos psiciológicos do indivíduos, i.e. dos "sujeitos" da acção psicológica e psiquiátrica e, por outro, já no plano normativo, a centração da acção do agente da psicologia/psiquiatria, numa teoria de normas destinadas a referenciar estrategicamente e, por conseguinte, sempre e sobretudo, adequar pontualmente os comportamentos daqueles mesmos "sujeitos" à realidade exterior tal como ela lhes inalcançavelmente pré-existe.
É essencial perceber este quadro; esta visão, em larga medida, "metafísica" e essencialmente conservadora da acção psicológica para se perceber a importância das concepções anti-psiquiátricas de Laing e dos diversos "anti-psiquiatras" do século passado.
Para estes, a psicologia e a psiquiatria---as "ciências" [ou, como prefiro dizer: as "ciencialidades"] da mente configuram, na essência, uma fenomenologia de natureza reconhecível e demonstravelmente política [no sentido mais nobre e dialéctico do termo] sendo que o ónus, o "custo" [o custo identitário e, por conseguinte, também 'terapêutico'] da renovação psicológica não reside essencialmente no sujeito mas no "rapport", num certo sentido nobre e determinanhte: orgânico estabelecido entre esse mesmo "sujeito" e a realidade circundante.
Que o mesmo é dizer: a renovação a fazer é tanto do indivíduo como do seu entorno activo sendo que só assim aquele pode fazer jus à designação de "sujeito".
De facto, para as concepções tradicionais, o indivíduo, ao "entrar" na psicologia e na "psiquiatria" funciona muito mais como o respectivo "objecto" do que como o seu sujeito, na medida em que aquilo que se espera dele é uma resposta comportamental e especificamente terapêuta ao meio nunca essencialmente uma mudança partilhada, de forma teoricamente necessária, por ambos.
Neste quadro, designemo-lo por "epistemologicamente ortodoxo", o indivíduo opera na realidasde como o "objeito" ou o "subjecto" da intervenção psico-dinâmica---se não quisermos considerar simplesmente que ele aparece nele como o mero "objecto" daquela intervenção.
A estas ideias ou "ideações" envolvendo uma "psico-ciencialidade" ortodoxa e outra contrária a essa ortodoxia costumo eu agregar as minhas próprias ideações envolvendo o que chamo "trickle-down societations" e "shedding societations".
Que entendo eu por estas [sempre discutíveis, admito] designações?
Muito simplesmente o seguinte:entendo eu que, na natureza, os mecanismos de emergência e, em alguns casos como nos das espécies conscienciais ou conscienciadas operam segundo uma espécie de linha determinante contínua---uma "ciência" ou um saber genetizados, genética e, noutros casos, molecular, atomicamente fixados---que mantém a realidade tessitariamente unida a si mesmas, numa espécie de movimento descencional contínuo onde ela nunca essencialmente sofre interrupções funcionais e, por conseguinte, emn tese, também globalmente formais.
Neste modelo a realidade "escorre" ["trickles down"] dos paradigmas "genetizados" ou "molecular/atomicamente fixados" para os "indivíduos [ou "individuações significadas"] respectivas, de forma natural---e seguindo, aliás, a meu ver, um padrão genérico de "volução" tópica contínua, expansional e estruturalmente desintegrativa da realidade que, em tese, se iniciou com o "big bang".
Na espécie humana [Freud é indispensável para se perceber a essência de alguma desta fenomenologia!]; na espécie humana, dizia, o processo descentra-se funcionalmente relativamente aos modelos tradicionais anteriores de "des/multiplicação significada da realidade" [modelos esses em cujo contexto o 'indivíduo' é, de facto, muito mais a tal 'individuicidade funcional' a que atrás aludo do que propriamente um 'indivíduo' em si] e recentra-se, em seguida, nos indivíduos sem perder, porém, a forma global construcional "descendente" ou "descencional" do modelo para o indivíduo---processo em que as 'ideações' envolvendo o "Édipo" e a "Electra" freudianos [por muito que eles possam ter sido circunstancial e ocasionalmente hipervalorizados pelo Mestre] desempenham um papel referencial verdadeiramente nuclear e capital.
Ou seja: ao definir-se, a consciência tradicional "copia significadamente" o real e conserva-se, desse modo, criacionalmente como parte dele.
A formação desta consciência tradicional configura na base um acto essencialmente ecológico e natural que as formas imediatas de societação valorizando nuclearmente a velhice, a "senioridade" básica e, sobretudo, naturalmente funcional [que também pode ser---e é---institucional nos modelos tradicionais do que chamo "societação"] integram e recriam na cultura dos indivíduos e das sociedades.
Os pais [e as mães!] são o modelo natural dos filhos, havendo, nos modelos tradicionais de societação, uma espécie de percepção funcional abstracta da "democracia", de "democracia natural", com eco na existência concreta dos indivíduos e das sociedades poer eles formadas.
Ou seja: quem detém o saber [seja ele, um "saber genético" ou "adquirido", empírico] detém, de igual modo, naturalmente a autoridade---essencial à sobrevivência da espécie.
À medida que "copiam", genética mas também---estamos a falar de espécieas conscienadas onde "já há" auto/demonstravelmente "indivíduos"---experiencialmente "os velhos", os indivíduos jovens vão ganhando, de forma natural, o direito [e o Direito!] à igualdade fundamentada com eles---i.e. um estatuto lógico [de facto, eco-lógico] preciso, mas sobretudo natural, na comunidade.
É disto, desta mecânica específica de aquisição de estatuto social que falo quando falo de "democraticidade ecológica" ou "natural.
A prazo, todo deste modelo de percepção e de "habitação cultu(r)al da realidade" vai-se desmoronar [o modo como a sociedade industrial toma, no século XIX, a liderança da condução da História e da definição dos respectivos padrões particulares, específicos e determinantes, de "desenvolvimento"---para além do facto determinante envolvendo o modo como ela vai redistribuir social e politicamente a propriedade particular do conhecimento---vai ser decisivo para essa "revolução" operada também no plano dos padrões cultu(r)ais de relacionamento global da espécie com a realidade] e entra-se no que chamo o paradigma "shedding" de societação nas diversas sociedades sobretudo europeias e norte-americana.
De acordo com este, os padrões globais de "volução" do real perdem, a dado passo, por completo o seu "centro determinacional"; perdem aquela lógica descensional contínua que mantinha o real ininterruptamente ligado a si próprio tecnologia e vai surgir um modelo conceptual inteiramente novo---e inteiramente pós-ecológico---segundo o qual a realidade se vai ver forçada a reiniciar-se sucessivamente não a partir de modelos naturais situados atrás dos indivíduos e antes deles [onde já não está o saber determinante que foi, entretanto privatizado e entregue a uma classe sacerdotal económica e, depois, económico-política] mas da experiência pura desses mesmos indivíduos, operando-se a aquisição social de saberes [sempre de natureza secundária e de mera manutenção] in/essencialmente por descarte, isto é, através de experiências ou de experienciações, de um modo ou de outro, inteiramente autónomas e/ou 'puras' do real as quais vão sendo, sucessivamente, descartadas ["shed"] e substituídas por outras igualmente novas quando se descobre que as anteriores 'falharam' i.e. quando se estas revelaram circunstancial e circunstanciadamente a-funcionais ou até, não-raro---o processo favorece-o claramente!---completamente dis-funcionais.
A "democracia" perde o seu fundamento orgânico e necessário que era a propriedade tribal do saber e aqueles que o detinham e reprojectavam sobre a comunidade o seu valor referencial orgânico.
Ora, voltando ao início destas notas, aquilo que faz a psicologia 'ortodoxa' de que comecei por falar é, na sua in/essência, tentar encontrar as soluções técnicas e teóricas para refuncionalizar onde e como possível a própria disfuncionação sofrida pela realidade com a ruptura dos pardigmas ecológicos de habitação cultu(r)al e social da realidade.
Lido com a atenção crítica que justifica, o texto do Dr. Sampaio revela-se excepcionalmente eloquente no modo como envolve uma óbvia [e, a meu ver, absurda, bizantina] teorização em torno da claríssima desvalorização do papel, anteriormente determinante, nuclear, dos modelos parentais; limita a emergência dos fenómenos psicológicos, de forma completamente a-histórica e a-política, ao domínio social e politicamente descontextual, etéreo, de uma "ciência psicológica pura", actuante de forma [quase?] exclusiva e, de facto, a-dialecticamente "metafísica" fora até do Tempo, sempre simulando, porém, integrá-lo ["os pais de hoje", "os filhos dos nossos dias"]nas suas cogitações de episteme, ignora, numa palavra, completamente a "forma causal" mesma, última [ou, como prefritro dizer, copiando eu próprio do inglês "ultimate": "ultimativa"] do real.
Um exemplo deste carácter "metafísico" da "psicologia "pura" proposta e exaustivamente argumentada no texto?
Fala, por exemplo, o autor da perda individual de auto-estima como causa de disfuncionalidade relacional familiar.
E como o faz ele?
Equacionando-a como um fenómeno estr[e]itamente "técnico", resultante de quadros causais puros fechados [equacionando-a como um fenómeno "técnico" e mais ou menos "psicologicamente puro"] para o aqual não contam factores objectivos, hoje-por-hoje, incontornáveis e determinantes---factores sistémicos---como a pobreza, o desemprego, a desestruturação socuial nas suas várias formas de onde uma grande parte da perda moderna---e pós-moderna---de auto-estima é, obviamente, 'importada' para o interior das famílias.
Equacionando-o como um fenómeno---e uma "fenomenicidade" absolutas---onde a ruptura dos modelos orgânicos ecológicos de relacionalidade intrafamiliar de sinal organizadamente descencional não só não estão contemplados como são activamente ignorados, com recurso a uma linguagem irrelevantemente poética [volto a questionar: quase?] completamente vazia ["o papel dos adultos junto das crianças deve ser o de compreender e dar apoio", etc. etc.]---meros truísmos eufónicos de sucesso popular garantido que nada significam, porém, e que, a meu ver, como educador, não possuem um mínimo de relevância operativa substancial ou pior ainda substantiva, quer no plano especificamente educativo quer até, atrevo-me a dizer invocando precedentes [realmente inovadores e epistemologicamente estimulantes, do pontro de vista da fundamentação credível das práticas pedagógicas a que estou profissional e vocacionalmente ligado, como o de Laing] psicológica.
[Imagem ilustrativa representando R.D. Laing, extraída com a devida vénia de Lainginstitut.ch]
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