domingo, 10 de janeiro de 2010

"Justiça, sim! Mas da «Popular», só Democrática!"

Leio na "TV Guia" de 10.12.09, um texto de F. Moita Flores sobre um caso recente de polícia, envolvendo um GNR agressor da esposa [de facto, seu assassino, uma vez que a última agressão foi mesmo a derradeira i.e. foi mortal] e dois outros GNRs que o detiveram, esquecendo-se, todavia, de revistá-lo na altura da detenção--além, obviamente, da própria vítima.
Sobre o caso, tece, wentão, Moita Flores, na publicação treferida, a tal "TV Guia", diversos comentários de pertinência muito variada, alguns deles [e é, aliás, exactamente por isso que estou aqui a registar o "caso"] francamente descabidos não somente pelo tom como, de igual modo, pelo conteúdo ["aquilo" não é jornalismo mas, também, bem vistas as coisas, "aquilo" não é uma revista nem o autor é jornalista, portanto, se calhar está, em última análise, tudo certo...] sobre os quais me parece, todavia, necessário tecer algumas considerações particulares.
Não se questiona, obviamente---pelo contrário!---a necessidade absoluta de a Lei intervir no sentido de tentar coarctar, de uma vez por todas e de forma significativa, substantiva, aquele que é, como se sabe, um autêntico flagelo nas sociedades do Sul da Europa: a chamada violência "de género", herança trágica de uma cultura "machocêntrica" ancestral que, ainda não há muito tinha, aliás, expressão material, objectiva mas também subjectiva, no ordenamento jurídico do fascismo.
Fascismo que, é preciso dizer, era, de resto, de algum modo, já por si, uma espécie de sublimação cultu(r)al máxima precisamente de um conjunto de concepções, por um lado, naturalmente coercivas e violentas e, por outro, de índole assumidamente 'androcrata' e [também!] sexualmente supremacista com expressão em diversas áreas do social, do cultu[r]al, do político, etc.
Estaremos, com efeito, todos ainda recordados dos paradigmas de relacionalidade intersexual consagrados na lei do antigo regime e genericamente aceites pelo conjunto da sociedade de então---assim como de "figuras" jurídicas de natureza, suponho que in-formal ou não-expressa, mas que complementavam naturalmente---e objectivamente potenciavam!---aquela "cultura de menorização sistémica"---e de dependência formal---da mulher relativamente ao homem, como aquela de os actos envolvendo, por parte destes, o que se considerava ser a "lavagem" da própria "honra" nos casos do crime vulgarmente chamado passional gozarem do estatuto de atenuante no caso de morte da mulher em resultado de violência infligida pelo marido ou companheiro.
Não está, pois [obviamente!] em causa o imperativo de lutar, de todas as formas e a todos os níveis ao alcance de cada cidadão, contra os 'resíduos objectuais', chamemos-lhes: "inertes", desta [in] cultura fortemente enraizada ainda, entre nós, de violência e de indignidade sexista que, desgraçadamente, continuam a existir, na prática quotidiana de alguns extractos da sociedade portuguesa.
O problema levantado pelo artigo de M. Flores não é, pois, esse.
O problema é que na sua coluna, genericamente intitulada "Piquete", Moita Flores incorre, por sua vez, em vários equívocos, alguns deles potencialmente geradores de outras formas, igualmente graves e, também elas, de resto, mais ou menos "[anti] culturais" de violência, próprias, diria eu, de sociedades tradicionalmente pouco habituadas a lidar de forma civilizada com o crime mas, sobretudo, a um outro nível mais mais amplo e, também, mais tópico, pouco habituadas a lidar de forma civilizada com as instituições da Democracia [mesmo apenas formal] enquanto tal.
Num país, com efeito, em que a consciência cívica é o aque é; num país onde a iliteracia possui a relevância quantitativa mas, de igual modo, qualitativa que possui; num país em que a Justiça é, ela mesma, aquilo que é; num país que se habituou a comportar-se sempre de forma passiva, dócil e invariavelmente conformada perante o poder e que, por conseguinte, se acomodou à ideia de não intervir ou de intervir raramente e de forma, muitas vezes, inábil, desajustada e desajeitada, na gestão da 'urbe' nas múltiplas formas que aquela pode [e deve!] democraticamente assumir; num país com estas característicaa cultu[r]ais, dizia, é fácil triunfarem formas completamente disfuncionais [eu diria mesmo: primitivas, avulsas [e até tribais] de "justiça" [dita muitas vezes "popular"] organizada precisamente à margem de um conjunto de aparelhos institucionais jurídico-políticos específicos da democracia que muita gente, pura e simplesmente, como disse, não entende e/ou não aprendeu, de facto, a usar.
É preciso, aliás, dizer que a violência "de género" é, ela própria, em si mesma, já um caso verdadeiramente emblemático e paradigmático disso mesmo: desse não entendimento e dessa ausência substantiva de conhecimento.
Mas não contribui, em nada, para [re?] colocar a sociedade portuguesa [um certo "Portugal profundo" alienado e muito cívica e politicamente primário] na via certa para a conquista da dignidade democrática integral [objectiva ou formal mas, sobretudo, interior, mental e subjectiva] o confundir, por um lado e como tantas vezes acontece, uma polícia [como dizer?] mais "despachada" e mais "expedita" a tratar o crime com uma outra---realmente civilizada e democrática, essa!---que sabe exactamente até onde pode ir em matéria dos actos que pratica no exercício da sua actividade específica até porque, em redor da sua acção concreta, situada perto do termo da cadeia legal, existam dispositivos rerguladores perfeitamente reconhecíveis e operantes que a enquadrem, contextualizem, funcionalizem e democratizem ou conservem, em todo o percurso, democratizada.
Exigir que a Lei, nas suas várias formas e através da acção dos seus múltiplos agentes, se comporte como pessoa de bem, respeitadora dos princípios básicos do Estado de direito não significa 'pôr-se ao lado dos criminosos' ou ser, como escreve M. Flores, "beato dos direitos humanos" nem "adorar inventar actos pidescos".
Não é ser-se um "cretino armado em defensor dos direitos de cidadania".
Isto é, dito de outro modo: estar do lado da vítima não é apenas estar do lado dela.
Estar do lado da vítima ou é estar do lado do Estado de direito ou só pode resultar de um modo, ou de outro, em puro "justicismo" mais ou menos "popular", uma ideia que agrada, com certeza, aos ouvintes dos muitos "Você na TV" e quejandos que por aí campeiam [numa sociedade como a nossa em que o Estado infelizmente não sabe pôr-se, em geral, "no seu lugar", transferindo ou deixando, com preocupante frequência, que o exercício da Justiça seja, na prática, transferido dos tribunais para as televisões-tablóide ou, em alternativa, para as esquadras de polícia...] mas não contribui seguramente para fazer a pedagogia da justiça verdadeiramente democrática que é essencial que seja feita a fim de que a própria democracia como tal possa ser, efectiva e, tão integralmente quanto possível, implementada, por fim, na sociedade portuguesa.
Trata-se de um equívoco grave este de confundir, generalizando disparatadamente, a exigência do escrupuloso respeito pela Lei com cumplicidade irresponsável tácita com quantos se colocam fora dela.
O autor do artigo não tem, sequer, dúvidas em [tendo, aliás, já antes enveredado por um tipo de linguagem que era já, em si mesma, uma forma supreendentemente grosseira de violência: "cretinos" e por aí fora] em ultrapassar claramente as fronteiras da menor seriedade intelectual ao escrever [!] que o que "ditou a morte de um soldado e a luta contra ela em que está um segundo" foi " "o erro que sai do medo de ser enxovalhado por cretinos armados em defensores dos direitos humanos, que adoram inventar actos policiais pidescos".
Não é, com todo o respeito, de facto, no mínimo, sério dizer isto, no caso vertente: o GNR abatido pelo seu colega uxoricida não foi, de facto, uma vítima do tal suposto "medo" da opinião pública: ele tinha uma obrigação para cumprir, não a cumpriu, não revistando o preso, e foi vítima desse trágico lapso, ponto final.
Foi um erro grosseiro por si cometido que lhe custou a ele a vida e ao colega que com ele partilhou a negligência fatal, ferimentos graves que só por acaso não terão sido, também para ele, fatais.
Tudo o mais é especulação [quem disse, de facto, ao articulista que foi efectivamente o medo de ser criticado por excesso de zelo que originou a negligência dos guardas? Como chegou ele a tal conclusão? Com base em que dado ou informação?] e apenas isso.
Não adianta tentar "tapar o sol com uma peneira".
Sejamos sérios: em Portugal não existe uma verdadeira cultura jurídica como não a existe cívica nem policial.
Os agentes de polícia não estão, em geral---é do conhecimento público---munidos dos meios essenciais [até em matéria de treino específico] para agirem adequadamente em aspectos básicos da sua actividade profissional; os tribunais funcionam pessimamente de modo que muitas vezes os próprios cidadãos "fecham naturalmente os olhos" às "sentenças" "decretadas e executadas" nas próprias esquadras da polícia [são as organizações não-governamentais independentes como a Aministia Internacional quem regularmente o revela]; o poder político comete, demasiadas vezes, erros verdadeiramente incríveis em matéria legislativa [como, de resto, o próprio presente prova com todo um trabalho de correcção de erros gritantes cometidos em matéria de legislação penal pelos anteriores responsáveis políticos pela área de Justiça].
Não é desinvestindo cegamente no conjunto do aparelho legal e entregando a respectiva gestão a políticos manifestamente ineptos e quase invariavelmente medíocres que os problemas da Justiça [ou da Educação ou da Saúde] entre nós poderão resolver-se.
Resolver-se-iam, exactamente ao contrário, com políticos capazes e com meios adequados.
Com sentido de Estado e competência que é uma coisa que desgraçadamente há muito vem faltando, ao mais alto nível político, no nosso país.

Mas, se os problemas em causa não se resolvem mantendo o exercício do poder representativo refém de incompetentes e agentes políticos tecnicamente inadequados, não se resolverão tão-pouco, seguramente, com periodistas de ocasião, gárrulos e procupantemente incapazes, por sua vez, de equacionarem séria e criteriosamente os problemas...
Com esses---porque têm acesso directo a uma "opinião" pública, em geral, pouco esclarecida e por isso facilmente influenciável: à massa amorfa e inerte de uma pseudo-cidadania cultu(r)almente débil e intelectualmente vulnerável; com esses é que, seguramente, aqueles problemas não poderão com toda a certeza, começar a ser resolvidos...

[Na imagem: "Defendant" by Sarah Janeszikora]

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