terça-feira, 24 de março de 2009

"Uma estátua para todos eles, JÁ: A mesma!"


Dedicada a certos "comentadores" e "romancistas" muito vulgares (muito vulgares, na nossa praça mediática mas também muito "vulgares" 'tout court', entenda-se!...) e especificamente à exemplar isenção com que costumam "decorar" os seus invariavelmente luminosos escritos, aqui deixo uma pessoalíssima proposta de monumento evocativo...
Ah! E já agora, pelo mesmo preço, uma outra proposta: de dístico a inscrever no respectivo plinto todo feito em mármore de Estremoz: "Paz às suas almas!"
[Dos que a têm, claro!]...

"Harold Robbins «com batatas-e-grelos»..."


Eh! Pá! Desta vez, não resisto!
Desculpem lá mas não resisto, pronto!

Dizia hoje n' "A Bola" M. Sousa Tavares qualquer coisa como "há muito que Lucílio Batista é o pior árbitro português"!

Acredito!

Tenho de acreditar! Dito por aquele que é hoje-por-hoje seguramente o pior "romancista" português vivo, como duvidar?...

É que em matéria de técnicos, eu vou sempre pelos melhores e no que diz respeito a mediocridade e prosápia melhor que este não deve haver, seguramente!...


[Imagem extraída com a devida vénia de "blog do Menon"]

"Um dos meus Benficas favoritos..."

...É este.
Foi Campeão Europeu quando era (literalmente!) uma "aventura" um português ir ao estrangeiro quanto mais distinguir-se lá...
Acho uma maravilha quando hoje outros falam de um suposto "hábito" ou mesmo de uma "cultura" (!) de vitória que (muuuuito!) supostamente os distinguiria como traço identitário "natural" dos restantes, incluindo o "meu" Benfica.
Esses são precisamente os mesmos que há meia dúzia de anos ainda vinham às Amoreiras levar doze e voltavam para "casa" a cantar que até podiam ter sido mais...
Como é fugaz a memória, não é?...
Certas memórias, em todo o caso...
Seja como for--porque aquilo que interessa é bem diferente da (in) actividade característica dessas memórias "selectivas" que Freud e, de há um tempo para cá certa "psicologia criminal" explicam na perfeição...--aqui vão os nomes destas inolvidáveis glórias, essas sim, guardiãs de uma cultura de vitória que chegou para empolgar (para o bem e para o mal, reconheçamo-lo) um País inteiro: Ângelo (o grande Ângelo Gaspar Martins que jurava a pés juntos a uma imprensa francesa literalmente boquiaberta, nas vésperas da final de Amesterdão que meteria o Di Stéfano, o Kopa, o Puskas e os "autres" todos, ali mesmo, na "poche" dele!...), Cruz, Cavém (o inesgotável Domiciano, um dos meus "heróis" de infância: cheguei a escapulir-me do pé do meu Pai para junto do relvado para o ver descer ao longo da lateral, mangas semi-arregaçadas, corda até ao fim!
Dele se dizia, aliás, pafraseando um conhecido "mot d'esprit" de Cândido de Oliveira cunhado para descrever o jogo já-não-sei-francamente-de-quem que "era como um chefe-de-estação que desse a partida aos combóios numa para ir esperá-los na outra a seguir"...), Mário João, Germano (o "Divino Calvo" que lia Filosofia e jogava como Descartes pensava) e Costa Pereira (o "Costa dos Frangos", um senhor na baliza) em cima.
Em baixo: José Augusto, Eusébio, Zé Águas, Coluna (o "Monstro Sagrado") e Simões ("Rato Mickey"): a "orquestra vermelha" no seu esplendor e apogeu!
Deixo, aqui, as suas imagens físicas inesquecíveis exactamente como quero absolutamente recordá-las com uma imensa saudade, a "ilustrar" a 'entrada' que deixei hoje no blog do meu Amigo "Sou de um Clube Lutador"...

domingo, 22 de março de 2009

"Mais alguns aspectos do «benfiquismo sociológico»"

O Carlos Gomes "do Sporting"!...
Para mim, um dos exemplos máximos da benéfica irracionalidade do "desporto", tal como concebo: sendo eu um benfiquista "dos sete costados", um dos meus grandes ídolos de sempre foi o "Carlos Gomes do Sporting"...
Não bastou para levar-me a negar o meu acendrado benfiquismo. De facto, sempre me senti um pouco (ou, pelo contrário, um muito...) confuso, perplexo mesmo--e até razoavelmente incomodado...--por esta óbvia "traição" ao meu clubismo.
O modo como concebo o papel integrador e socializador do irracional no Desporto fez, todavia, com que o meu fascínio por este louco excessivo e genial que foi o grande Carlos Gomes convivesse, de forma, apesar de tudo, perfeitamente pacífica, com essa paixão "assulapada" pelo vermelho que me acompanha desde a mais tenra idade...


Já o disse, por mais de uma vez, noutras ocasiões e noutros lugares: a competição impropriamente dita "desportiva" (estamos, na realidade, a falar, pelo menos em teoria, de uma indústria--de um ramo de uma indústria: a do espectáculo originalmente desportivo) deve desempenhar um papel importante na codificação (ou, se assim se preferir dizer: na "resolução codificada" de muitos conflitos e tensões, tanto individuais como, num certo sentido: sobretudo, colectivos.

Vou mesmo mais longe e afirmo: grande parte dos mecanismos modernos de socialização deveria obrigatoriamente incluir a prática dita "desportiva" fomentada e organizada a partir da Escola--que é como quem diz: formalmente incluída, essa prática, entre as restantes matérias curriculares tal como aconteceu durante muito tempo nas "public schools" inglesas.

No "desporto" (como idealmente no Desporto com maiúscula, nas diversas modalidades que, em geral, compõem um e outro) vejo eu toda uma gramática por meio da qual é possível (de facto: é desejável!) sublimar e portanto integrar ou socializar as performações originárias de um vasto domínio sub e mesmo in-consciente e, sobretudo, irracional as quais, quando investidas "em estado bruto" ou "em estado sólido") no social podem provocar na organização derste indesejáveis e perversas deformações de composição e estrutura cujas consequências podem, no limitar, revelar-se literalmente fatais do ponto de vista da sobrevivência daquele na exacta forma em que foi por elas "encontrado", digamos assim.

De facto, um dos grandes problemas das sociedades ditas "democráticas" (sobretudo, pós) modernas reside na gestão de um conjunto de componentes puramente irracionais às quais é preciso arranjar um lugar "higiénico", um lugar de segurança, no conjunto das práticas cultu(r)ais respectivas.

Não se confunda, porém, o papel desejável desempenhado pelo Desporto neste quadro com alienação.

O que eu digo é o seguinte: por exemplo, na minha vida profissional, como professor, encontrei "ene" alunos e alunas com os quais, pelos mais diversos motivos, não me foi objectivamente possível estabelecer laços mínimos de empatia pessoal.

Tal situação, infelizmente, está longe de ser rara nos tempos que correm em que os alunos dispõem da possibilidade de afirmar a respectiva personalidade de um modo que era, todavia, há vinte/trinta anos completamente impossível.

Alunos pouco simpáticos, portadores de personalidades, sob diversos aspectos, menos atractivas num plano estritamente pessoal (mais conflituosas, por exemplo) houve-os obviamente desde sempre: Acontecia, porém, que o conceito vigente de Escola e de Educação incluía, como não se ignorará (como não ignora quem, nessa altura, frequentou um estabelecimento de ensino, sobretudo oficial: um liceu, por exemplo) um modelo de relação «professor/aluno» (ou mesmo «aluno/ Escola» e até de «professor/Escola») em cujo contexto o grau de revelação da personalidade individual dos sujeitos era comparativamente muito formal e, por conseguinte, substancial (e substantivamente!) reduzido.

Quando, todavia, os modelos cultu(r)ais e especificamente políticos de "Educação" passaram a investir substantivamente na «pessoalidade» da relação típica entre todos os sujeitos no interior do processo educativo, a questão da empatia pessoal (ou, ao invés, da falta dela) passou a desempenhar de modo claro e objectivo um papel absolutamente nuclear em todo o processo e a constituir, especificamente, um factor efectivo e decisivo de sucesso em matéria educacional. ducativo.

Muitas vezes, não se pensará nisto como uma decorrência inevitável do próprio modelo cultu(r)al mas a verdade é que, acompanhando a consolidação do novo paradigma de educatividade deu-se, desde logo, uma natural potenciação das tensões ou tensionalidades estritamente pessoais, até aí, de certo modo suspensas e, portanto, pouco intervenientes em todo o processo, como tal. O "gostar de" um professor por parte de um aluno (*) e de um aluno por parte de um (ou vários) professores tornou-se, pois, não só uma componente central de todo o processo como, secundária mas não irrelevantemente, uma fonte de tensões ou tensionalidades cujas repercussões concretas, directas mas, de igual modo, indirectas, sobre esse mesmo processo podem atingir graus ou valores literalmente in-calculáveis.

Ter de "passar" um aluno que nos é, por uma razão ou outra, menos simpático sendo que se tem, ao mesmo tempo de "reprovar" outro com o qual, pelas razões contrárias, simpatizamos pode constituir para um professor causa objectiva de frustração--ficando por determinar o peso que a afeccionalidade, consciente ou inconscientemente investida no processo chega efectivamente a atingir.

Pessoalmente, recordo-me de alunos cuja aprovação senti ter forçosamente de propor exactamente porque, com toda a honestidade e escrúpulo, me foi impossível determinar perante mim próprio e a minha conciência (pesssoal, ética mas também estritamente profissional) o que faria nos respectivos "casos", se a minha relação ou se os meus "sentimentos" pessoais pelo aluno ou aluna em questão fossem, na realidade, outros.

Os opostos desses, especificamente.

Terá, aliás, sido esse escrúpulo e essa preocupação individual com a justiça possível dos actos que, como professor, pratiquei que fizeram com que, ao longo da minha carreira de mais de trinta anos, tivesse tido apenas três recursos às minhas classificações e em nenhum desses casos, tivesse a minha proposta de classificação sido objecto de alteração.

E este é, sublinho, apenas, um exemplo, do modo como as componentes afectivas ou afeccionais actuam (ou podem actuar) no contexto do processo judicativo agregado às práticas educativas específicas.

Imaginemos o que se passa com os médicos ou os advogados--casos em que são as vidas e a liberdade concreta das pessoas que estão em causa!

Ora o que eu defendo é que, em todos estes casos, a prática do Desporto (aprendida e apreendida como um modo de completar harmonicamente uma ideia estável e característica de relação, não menos estável e característica, com o próprio real) pode dar um contributo profundamente relevante para o restabelecimento ideal de uma certa homeostase da própria consciência do sujeito, capaz, por seu turno, de contribuir para o saneamento substancial das atitudes de natureza estritamente técnica a tomar por este.

No Desporto como no "desportismo" é possível "gostar do" clube ou do indivíduo A sem se ter necessariamente de possuir um motivo explicável para ese gostar.

Mais: é possível não gostar do indivíduo ou da instituição B de um modo assumidamente menos racional (ou mesmo abertamente não-racional e não racionalizável) sem que qualquer um desses posicionamentos implique directa ou indirectamente qualquer tipo de impressão de incómodo ou especificamente culpa, desde obviamente que se tenha aprendido e a sublimar as impressões investidas no processo, projectando-as tão pontual quanto 'educadamente' num código de comportamentos ou «comportamentividades» muito precisas que correspondem rigorosamente ao cumprimento consciente das "leis" dessa mesma actrividade desportiva.

É aí, nessa área de pura afeccionalidade que procuramos (e idealmente devemos achar) parte significativa da solução para as nossas pulsões individuais e colectivas, naturais e adquiridas, que não devem, em caso algum, ser como tal investidas nas nossas actividades profissionais e, de outro modo, sociais.

No meu caso pessoal, sou "do" Benfica porque, como recordo noutro lugar deste "Diário" era o simbolica ou simbologicamente (simbo-logicamente...) o clube "do povo"; porque se opunha ao clube dos que, sendo "do povo" pretendiam alienadamente não sê-lo aproximando (ou imaginando aproximar-se) também simbólica ou simbologicamente dos "outros"; sou "do" Benfica porque me diz bastante a ideia de procurar o sucesso, partindo de uma situação original marcada pela privação objectiva desse mesmo sucesso, através de toda uma prática devotada e consistente, sem esquecer respeitosa de valores básicos de ética e de civismo expressos, por exemplo, em atitudes como as de Cosme Damião, fundador e capitão de uma das primeiras equipas do Clube, expulsando o seu próprio jogador Artur José Pereira (o melhor jogador da Equipa, a primeira grande vedeta do futebol português!) na Corunha, porque foi incorrecto para um adversário; a de uma direcção do Clube que protestou um jogo que havia... ganho porque achou que havia logrado esse triunfo de modo objectivamente ilegal, com um golo obtido irregularmente mas validado pelo árbitro ou ainda de Guilherme Espírito Santo, "o Espírito Santo do Benfica", recuando-se a festejar um golo seu ao Sporting obtido na baliza de um Azevedo que actuava de clavícula fracturada e que caindo sobre o braço são ao tenar evitar o golo, ficou prostrado no chão, incapaz de voltar a levantar-se sem o auxílio do nobre adversário.

Sou "do" Benfica também por isso, é verdade, mas sinceramente estou convicto de que já o era antes disso por razões que, também com toda a franqueza, não sou capaz de identificar ou reconstituir sendo que, a meu ver, a "benfiquicidade" que vim encontrar em larga medida por influência de Luís Piçarra, o meu "primo Luís", apenas deu um corpo material reconhecível, materializável, palpável, à minha própria maneira pessoal de entender a realidade, vigente, como disse muito antes do meu encontro com o Clube.

É nos jogos das várias equipas do Benfica que eu invisto conscientemente os meus entusiasmos mais educadamente não-racionais, poupando (como dizer?) toda a racionalidade 'de que sou capaz' para aquelas tarefas e para aqueles domínios da vida em que agir de forma irracional ou mesmo só menos racional envolveria um desrespeito que, de todo, não quero ter pelos direitos das pessoas e da comunidade de uma maneira geral e sã.


NOTA


(*) Uma certa "pedagogia" mais... "pós-moderna", quer na sua versão "profissional" (representada por ministérios e respectivos ministros e alguns--durante décadas: demasiados!--professores) usa, de resto, confundir este "gostar" específico e particular com "motivação".
De facto, o papel (particularmente disfuncional) do "motivacionismo" neo-rousseauino foi (tem sido!) exactamente esse de fornecer a um certo impressionismo pseudo-pedagógico muito falsamente moderno uma espécie de cobertura exteriormente técnica que, durante muito tempo iludiu consistentemente toda a comunidade educativa, chegando mesmo, nas mãos da actual ministra que terá imaginado desse modo conquistar o favor e as simpatias dos pais para a política genericamente obscurantista, provincianamente "modernaça" mas profundamente anti-social, disfuncional e sordidamente economicista do governo a que continua, por uma razão qualquer, ainda hoje a pertencer.

sexta-feira, 20 de março de 2009

"Sobre «questões de encenação»"


Um dos conceitos que, sobre os quais, há muito, venho, em larga medida, de um modo geral, centrando o tipo de abordagem que faço dos livros e dos filmes que vou vendo, é o de "leituração".
Esta ideia de "leiturar" um certo tipo de «objecto do conhecimento» tem muito que ver com o modo (o modo, chamemos-lhe... "significado") como, por exemplo, um Freud "leu" o "Hamlet" de Shakespeare.

Na verdade, Freud (como lembra, por exemplo, Harold Bloom) não leu exactamente o texto shakespereano: eu diria que, antes de tudo o mais o "leiturou".

Isto é: "significou-o" de uma forma muito pessoal e até consideravelmente invasiva, violenta, violando-o, é verdade--mas, dessa (seguramente involuntária) violação do texto original saíu, afinal, algo que, do ponto de vista do conhecimento efectivo que temos hoje, não só de Freud e da psicanálise como, apesar de tudo, do próprio Shakespeare possui um interesse e uma utilidade que não são, com certeza, num certo sentido menores.

É que ao violar o texto, Freud desafiou-o, deu um contributo sem dúvida relevante para testar-lhe (e sondar-lhe materialmente) de algum modo, os limites--ou os limites do próprio significado como texto teatral.

Freud e o modo como "leiturou" muito mais do que "leu" o "Hamlet" deu um contributo importante para re/perspectivá-lo aos olhos de todos nós conmo «objecto dramático» e, de um modo mais amplo, cultu(r)al, mental e, claro, estético.

É neste sentido da "leituração" como dialectização (como "endo-dialectização", com certeza mas também como dialectização num sentido mais amplo que envolve a Cultura e o olhar cultu(r)al no seu todo e numa acepção sin- mas também dia-crónica que eu vejo e equaciono a questão concreta da encenação de uma peça teatral.

De uma encenação formal, digamos assim, i.e. de uma que resulte num objecto específico colocado materialmente num palco e de uma encenação virtual, ou seja, de quantas inevitavelmente faz cada um de nós quando lê (quando começa por ler...) um texto para teatro.

Pessoalmente (e já aqui expressamente o disse) tenho feito diversas destas últimas.

Uma delas foi a do "Frei Luís de Sousa" de Garrett de que falo noutro ponto deste "Diário" e que deu origem a uma experiência pedagógico-didáctica concreta de que falo num artigo que "O Professor" quis ter a gentileza de publicar num dos seus números ainda relativamente recentes.

Recordei-o (e a quanto nesse texto, em matéria de "leituração" dos clássicos diz respeito, ao ler recentemente uma entrevista com o baixo-barínono José van Dam onde este lamentava o desmesurado peso dado à encenação na ópera em detrimento, segundo ele, da componente especificamente musical.

Sucede que não é só van Dam que se quiexa disso: num excelente artigo de John Blachty (publicado na revista espanhola "Primer Acto", nº 25 de Julho/Agosto de 1961, intitulado "como no debe montarse a Shakespeare", assim mesmo, com minúsculas), vem o autor a público insurgir-se contra o que poderia chamar-se a "cinematização" excessiva do teatro, no cumprimento de uma espécie de (des?) processo modernamente comum muito frequente que, segundo o crítico, atraiçoaria, diminuindo-a e secundarizando-a por completo, importância essencial da palavra como veículo electivo de expressão dramática.

Exemplificando, recorda Blachty o modo como, por exemplo, em diversas, sucessivas, encenações de Shakespeare os "metteurs-en-scène" nos foram mostrando "Measure for Measure" "com trajes de Fragonnard; "Péricles" [com] o velho Gower, personagem muito inglesa, [transformado] num formoso negro que canta calipsos" "Macbeth" [com] "um coro de bruxas" [substituindo as três bruxas de Shakespeare] "cantando e dançando"; um "Hamlet" no qual Bucha e Estica são os coveiros e um "Henrique IV" "que termina com a primeira tirada de "Ricardo III"".

Blachty escreve o seu artigo justamene para denunciar e se insurgir veementemente contra o que considera as fantasias dos encenadores.

"O método do poeta que apenas utiliza a sonoridade das palavras parece-me a mim", diz ele "infinitamente preferível".

"Inclusive noutros idiomas--nos quais essas mesmas sonoridades não podem ser naturalmente recriadas de modo fiel em relação ao original, prefiro o texto em si--o texto que, graças às poderosas imagens que o preenchem, expõe e desnuda por completo a alma do rei e cria uma tempestade mais real do que todas essas gravações postas em cena por esses jovens aventureiros onde se ouvem literalmente o trovão e o assobio do vento ou o crepitar da chuva".

E prossegue o crítico: "A bela arquitectura da cena isabelina, nua e limpa, é a única que convém às obras de Shakespeare porque permite o desenvolvimento perfeito da obra que não pode, portanto, ser melhorada nem por iluminações realistas, nem por quaisquer brilhantes ideias saidas da criatividade dos decoradores. Quando Shakespeare quer utilizar a música, di-lo expressamente. Quando se trata de incluir a dança, pede-a não menos expressamente."

E conclui: "O trabalho dos actores assim como a própria linguagem criam o seu próprio mundo maravilhoso, sem necessidad de um corpo de baile nem da música atroz de Mendelsson".

Ora, com o devido respeito pela visão, ascética e estruturalmente intelectualizada, de Blachty a fidelidade material é apenas um dos modos possíveis de ser fiel

Uma cultura deve re/construir-se continuamente--e corre, a meu ver, seriíssimos riscos de estiolar caso, em vez de se re/construir, se limitar a repetir-se. Ecoar-se continuamente, com certeza. Mas ecoar-se não significa repetir-se. O meu próprio gosto pessoal pela "collage" vem justamente, penso eu, sobretudo da possibilidasde de agregar aos objectos da nossa admiração (e até da nossa veneração) o nosso próprio ponto de vista pessoal sobre eles.

Falo, assim, claro, da possibilidade concreta de deixar nestes a nossa própria marca crítica e, de uma maneira geral, interpretativa--a marca do nosso próprio Tempo--criando, desse modo, um lugar para nós e para os novos tempos na cultura que gerou os «objectos» originais, permitindo, desse modo, entre outras coisas, alargar ulteriormente esta última, levando-a mesmo, através desse acto posterior de abordagem a vários títulos "comprometida", a superar sempre as limitações materiais do espaço e do tempo como tais.

O que eu digo é que as culturas crescem como as pessoas através da aceitação, é verdade (através da reprodução ulterior dos modelos triunfantes no contexto de uma certa culturalicidade específica, é certo) mas, de igual modo--e num certo sentido, sobretudo--através da rejeição funcional ou funcionante expressa dos mesmos.

Os rapazes crescem "par rapport" aos pais mas também "par rapport" às Mães, aos sexo (e à sexualidade) "opostos", numa dinâmica dual ("em linha quebrada") onde a negação desempenha, a meu ver, em tese, um papel tão relevante--de facto, tão essencial!--quanto a própria afirmação.

Eu vou mesmo mais longe e digo: a realidade conserva-se a prazo una e contínua (ou continuacionalmente) orgânica como, por exemplo, o átomo (a "gramática estrutural ou estruturacional atómica") conserva a sua própria estrutura característica, isto é, é o movimento que induz e substancia, em última instância, a própria estabilidade, chamemos-lhe, aparente ou final.

Eu sou dos que crêem, por outro lado, que a mecânica da replicação edípica amplamente teorizada por Freud não constitui, na realidade, nm um mero acidente, nem um simples episódio fragmentar e descontínuo no contexto dos mecanismos específicos de replicação objectiva natural.

Sou dos que acreditam, pelo contrário, que a arquitectura e a mecânica quer do Édipo, quer da Electra freudianos constituem o modo--a gramática, a sintaxe--muito precisos todos eles, como a realidade planeou expressamente replicar-se ou reproduzir-se continuamente, sendo que directamente associado (ou melhor: sendo que residuantemente subjacente) a cada um dos mecanismos específicos que regem a reprodução dos indivíduos e, por hipótese, dos animais e até objectos existe ("por trás de" toda a "realidade como objecto" ou como "discurso", pois) uma espécie de "arquétipo abstraccional puro" onde essa "ciência" e esse "saber reproducionais" se acham, diria eu, "armazenados" e prontos a replicarem eles mesmos sobre qualquer projecto potencial de reprodução de entidades no (con) texto da realidade, designadamente futura.

O que chamo os projectos de "educada transgressão" e até mesmo "profanação" na Arte (no Teatro, na Poesia, na Pintura ou na Música) reflecte, a meu ver, pontualmente essa 'disposição' ou essa 'indicação' abstraccional específica da realidade, mantida em suspenso no limbo intra- e meta-objectual, digamos assim, a fim de deixar quando necessário, a sua marca particular sobre os objectos da realidade.

Um texto de Shakespeare ou de Garrett ou de qualquer outro 'clássico' existe na forma que lhe conferiram os seus criadores originais, é evidente.

Esse é um modo de ser que ninguém contesta--ou lhes contesta.

Mas esse modo objectual, digamos assim, não permite em si mesmo re/produzir ulteriormente cultura, numa acepção ou num sentido dinâmicos, criacionais e activos.

Esse modo "objectual", limita-se, diria eu, a "puxar" continuamente a cultura "para trás"--e (pior ainda) para trás de si própria.

Admirar uma tela de Rembrandt ou uma tragédia de Eurípedes não é Arte--e tenho dúvidas que seja, num certo sentido dialéctico e afirmativo, cultura.

Ter um ponto-de-vista sobre uma e outra, porém, podem já começar efectivamente a sê-lo, numa acepção potencial mas seguramente promissora, digamos assim.

Alcançado esse ponto-de-vista, estão criadas as condições--aberta a porta--para que a cultura, então sim, possa entrar, reduzindo dinamicamente, dialecticamente, o espaço e o tempo entre um instante e outro do ser, individual e colectivo.

Não é que as modalidades ortodoxas de encenação de um drama ou de uma ópera clássicas não devam, neste quadro, ser em si mesmas valoradas e que estejam, por conseguinte, a ser aqui, de um modo ou de outro, menorizadas e depreciadas.

Pelo contrário: é importante (é vital!) que as diversas formas da cultura não se convertam (não se dissolvam) por inteiro nos pontos-de-vista que vamos tendo sobre elas.

Aquilo que é essencial é, aliás, precisamente o contrário.

É o modo como profanamos os objectos que define e reforça a sua mas, de igual modo, a nossa própria identidade.

Profaná-los é, no sentido assumidamente dialectizante em que um Ionesco e, sobretudo, um Adamov ou um Beckett "profanam" o teatro "burguês" (e) clássico, um modo crítico nobre de reconhecer a sua existência ("to acknowledege them") e a sua importância em muitos casos, verdadeiramente fulcral para a cultura comum--e, por conseguinte, de respeitá-los.

Talvez uma sociedade apenas composta de "gente culta" pudesse alimentar-se cultu(r)al e identitariamente só da encenação ortodoxa do teatro ou da ópera.

Admito que o modo estruturalmente intelectualizado ("simbólico" puro ou quase puro) que Blachty propõe, em que, por exemplo, os sons são substituidos por representações puramente mentais de si pudesse constituir por si substância bastante de cultura numa sociedade dessas--onde (e se!) as houvesse...

Em sociedades em que, porém, a capacidade de abstractização imediata necessita ainda, em larga medida, de estímulos concretos e exige a presença de ferramentas mais concretas do que o pensamento como tal é, creio eu, a profanação concebida como a tenho até aqui vindo a conceber e a descrever que pode induzir a prazo (educando justamente as audiências para a fidelidade conseguida dialecticamente através do dissídio e da "educada deformação" objectual) a própria 'vocação' final "natural" para pensar...


[Nas imagens: topo, o teatro romano de Verona; fundo: o Teatro Del' Acqua, de Charles Paton]

quinta-feira, 19 de março de 2009

"O Papa!... Ai, o Papa!..."


Se há figura que, por ter sido manifestamente incapaz (ou 'estatutariamente proibida') de evoluir, revela, hoje em dia, um anacronismo verdadeiramente gritante é a do "papado".

Dela se podia, na melhor das hipóteses, esperar que operasse (tendo sabido "reduzir-se"--o termo é aqui usado num sentido argumentativo que está longe de diminui-lo, antes o valoriza substancial e substantivamente--com inteligência e sensibilidade ecuménica, a uma espécie de sábia, esclarecida, "estratégica" neutralidade doutrinal aparente que lhe permitisse manter um alargado campo de influência trans-confessional objectivo); dele, papado, se poderia, ia dizendo, esperar que fosse capaz de criar a si próprio um conjunto de condições objectivas e subjectivas de operar, em última insância, como uma espécie de grande consciência universal, aliás cada vez mais criticamente necessária, num mundo como aquele em que hoje somos todos obrigados a viver.

Infelizmente, um homem como Bento XVI revelou ser a pessoa menos indicada para protagonizar esse importantíssimo "aggiornamento" da figura tradicional do papado de modo a ajustá-lo a um tempo de crueldades inomináveis na "política" das nações mas, sobretudo, no modelo de (des) organização económico-social "global" escolhido pelos "líderes" do mundo para figurar ou dar rosto ao que chamam "desenvolvimento" e (mais grave porque mais disfuncional ainda!) "Progresso".

Espanta-me (de facto, escandaliza-me!) que alguém possa, em consciência, considerar Bento XVI um pensador (!) e um teólogo.

É facto que, comparado com um reaccionaríssimo João Paulo II, muito do que ele diz e, sobretudo, do modo como o diz permite que seja, à primeira vista, fácil confundir a sua perspectiva de abordagem genérica da realidade com "pensamento filosófico" mais ou menos original e "teologia".

Mas apenas nesse caso, é preciso dizer.

São inúmeras as circunstâncias em que a maneira repetitiva e insuportavelmente mecânica como aborda as questões revela à saciedade a pobreza argumentativa do actual Papa assim como a in-significância genérica dos conteúdos que por sistema privilegia.

Numa palavra: trata-se de uma pessoa que realmente muito pouco faz para tornar a igreja actual um parceiro credível e relevante dos povos e das pessoas dentro deles parecendo mesmo, com frequência, que a instituição por ele liderada e referenciada faz questão de se pôr à margem das aspoirações e legítimos interesses das populações do mundo (ou dos "mundos", 'primeiro', 'segundo', 'terceiro'...) dos nossos dias.

Dou dois exemplos da fragilidade teológica de um papa que--é bom não esquecê-lo sempre que se trata de considerar criticamente algumas das suas peculiaríssimas tomadas de posição e mesmo decisões concretas em matéria de excomunhão/não-excomunhão de bispos eufemisticamente ditos "tradicionalistas" ou no âmbito do diálogo (?) interconfessional...) começou por ser, como se sabe, um "jovem nazi", nos seus tempos de adolescente.

Primeiro exemplo: a oposição formal à investigação em determinadas áreas da Genética, designadamente no domínio das células estaminais.

Não se percebe, aliás, muito bem que é que o para como papa tem a ver com isto (é um dos tais casos em que o papado se desactualizou por completo sem se dar devida conta disso mas enfim...)

Bom mas seja como for, a questão põe-se inteligentemente, a meu ver, de um modo radicalmente diferente daquele (teimosamente passadista e ferozmente obscurantista) como o põe o Vaticano.

Ou seja: é, em meu entender, extremamente pouco lisongeiro para a ideia de "Deus" (e por isso, eu ponho frontalmente em causa a competência teológica ou teológico-formal de Bento XVI com o tal) argumentar que a Criação não pode ser alterada e melhora pelo próprio Deus através da sua criação supostamente 'maior' que é o próprio Homem.

A ideia de uma Criação impossível de melhoria através de seres cuja realidasde deriva em tese de um acto de Deus constitui, em si mesma, com efeito, ao menos, por absurdo, um argumento de peso em defesa dos limites (e da limitação ou das limitações objectivamente estruturais) do poder divino como tal.

Isto é: se Deus não pode (se está "proibido... pelo papa"!) de introduzir qualquer melhorarmento--de fazer progredir, de enriquecer--a sua própria Criação através de elementos que, nela, Ele próprio supostamente plantou (recorde-se que o papado rejeita igualmente a teooria da evolução, conservando-se bizarramente fiel à... "tese" criacionista), então, daí se infere que o Seu poder se limita a si mesmo e que no caso do Homem se limitou a criar seres completamente passivos e irrelevantes enquanto componentes da Criação, não se percebendo muito bem, nesse caso, onde está fundamentado um suposto estatuto de seres electivos no contexto desssa mesma Criação...

A ideia de "Homem" que daí deriva é de uma pobreza confrangedora--o que, de resto, não espanta se considerarmos que se trata de uma Criação de um Deus que se limita à partida a si próprio ou que se acha, objectivamente, refém senão mesmo prisioneiro dos seus próprios (não?) poderes.

Um teólogo esclarecido e, ao mesmo tempo, humanista pensaria, exactamente ao contr+ário, que Deus criou o Homem como um espelho (menor, é certo: muuuuito menor mas, ainda assim, não passivo) de Si atribuindo-lhe, ao menos em tese (tudo isto são apenas teses...) a capacidade para agir como instrumento melhorador do próprio Criador.

Parece cristalino?
Não! É cristalino--e é por isso que eu me permito afirmar que o papado actual tem tudo menos uma perspectiva estruturalmente humanista da Criação e (pior ainda! Mais grave ainda!) da Criação (vista como algo incapaz de evolução e progresso, algo cristalizado nas suas própria fragilidades e limitações) e do o próprio Deus.

Se o anterior papa fez do Cristianismo pretexto para "panfletar" (se excluíu à partida, consistentemente, um conjunto de modos de pensar a sociedade da possibilidade de crer) o actual fez do papel potencialmente determinante, em termos amplamente civilizacionais, um mero ensejo menor para o (não!) debate estéril e contumazmente situado à margem dos problemas e das inquietações reais das pessoas--e não falo apenas aqui de inquietações materiais, longe disso!...

Segundo exemplo: o famigerado preservativo. Sobre a desadequação do discurso papal neste domínio, já se disse, nestes últimos dias, virtualmente tudo.

Do ponto de vista teológico, todavia, falta dizer o seguinte: visivelmente, o papa não faz propriamente uma ideia muito lisongeira de Deus, como já vimos a propósito da questão anteriormente abordada.

Neste âmbito do preservativo, confirma essa ideia.

Como?

Bom, se o próprio mecanismo de fecundação passa obrigatoriamente por uma dinâmica de 'selecção natural' (curioso, não é?) e este implica, no caso vertente, a "morte" de milhões de espermatozóides, deve daí inferir-se se o primeiro "abortador" é o próprio Deus que assim "se antecipa" ao preservativo?!...

...Ou será que aquilo que Ele nos está de facto a dizer é que não devem identificar-se automática (acriticamente!) "espermatozóide" e "Vida" e, nesse caso, há que rever de base a questão do uso do preservativo?

Que, se calhar, ele não representa em si mesmo "Mal" algum?...

Pensar como Bento XVI é optar por uma abordagem des/estruturalmente obscurantista porque deploravelmente adialéctica do real--como se este fosse, repito para terminar, (e o próprio Deus com ele) por definição ou trgágica fatalidade insusceptível de regeneração que é como quem diz de autêntica Luz e verdadeira Esperança!

quarta-feira, 18 de março de 2009

"Port Bou e Cerbère"

Port Bou (a imponente silhueta da serrania catalã: o Canigou aparentemente adormecido, severamente debruçado sobre um mar, por sua vez, imensamente profundo, gélido e hostil...)

Eis dois lugares que não consigo (nem quero, aliás!) esquecer: Port Bou (de que já falei) e Cerbère, do lado francês.

Julgo que, até ao fim da vida, hei-de recordar sempre aquela "viagem" angustiante num Fevereiro gelado e inimaginavelmente ventoso, pelo cimo da serrania, completamente às escuras, gatinhando, desequilibrando-me a cada passo, tentando desesperadamente orientar-me num escuro que apenas os faróis ocasionais dos carros numa estrada distante rasgavam por brevíssimos instantes mas, de cada vez que o faziam, ainda era mais angustiante porque apenas se conseguiam lobrigar fugazmente ravinas por todo o lado, precipícios incríveis, despenhadeiros medonhos onde o mar ecoava com um rugido difícil de imaginar.

Port Bou (um esplendoroso pôr-do-sol aberto sobre um infinito onde estive a ponto de perder-me...)

Enquanto andei no alto da serra, nunca soube verdadeiramente, confesso, como (e, sobretudo, onde!) cada passo ia acabar: se ainda em terra mais ou menos firme (a rocha por onde me movia tinha reentrâncias agudas que me magoavam os joelhos, os pés e as mãos); se no abismo não-sei-quantos-metros mais abaixo!...
A dado passo, cheguei a decidir flectir na direcção do topo da montanha (o Canigou) e tentar a entrada em França, a pé, pelo cume gelado.

No dia seguinte (depois da peripécia incrível da passagem) apanhei boleia de um tipo que me contou que era comum gente morrer gelada ali, onde eu tinha chegado a pensar entrar...

Até por isso, por não ter sido necessário, nunca hei-de agradecer o suficiente ao comissário espanhol que me ensinou o modo de passar a fronteira sem perigo de maior.
Um comissário fronteiriço!

Foi um gesto absolutamente magnífico de cavalheirismo e humanidade. Nunca hei-de esquecer tão-pouco, a pergunta que me fez.
Ou melhor, a única exigência: a minha palavra de honra!

Já na década de '90, voltámos a Port Bou na vaga esperança de re/encontrá-lo para o abraçar mas claro já nem posto activo de fronteira existia: a casota estava lá mas deserta, completamente abandonada, vazia.

Esta memória aqui serve, por isso, também, para homenagear uma das melhores e mais humanas pessoas que (não) cheguei a conhecer, em toda a minha vida.

Condições verdadeiramente aterradoras [dei um passo decisivo em direcção à maturidade ali, naquela fria casota de cimento onde se amontoavam numa luz difusa que multiplicava a impressão tenebrosa de vulnerabilidade que me invadia--(quantos?) quatro? Cinco? Seis--homens fardados de uma corporação indelevelmente marcada à época por uma reputação dificilmente imaginável em termos de arbítrio e crueldade]; dei, dizia, nesse dia (ou nessa noite) um passo verdadeiramente decisivo em direcção à maturidade ali, naquele gélido e incrivelmente isolado posto de fronteira, meio engolido por uma serrania inóspita e hostil a toda a volta, entre uma Espanha que eu conhecia sobretudo pelo eco das barbaridades cometidas pelo franquismo durante a guerra civil; pelo reconhecido atraso económico, social e político assim como pelo autoritarismo e discricionaridade das suas omnipotentes e omnipresentes forças policiais.
Foi um passo, a um tempo, assustador mas, apesar de tudo, também profundamente esperançoso, de fé não completamente perdida (ou ainda genericamente possível) na condição humana, vindo precisamente do seio dessa tenebrosa instituição de onde, de forma completamente insólita e imprevista, emergiu esse instante de fugaz mas digníssima cumplicidade, por breves momentos, estabelecida entre dois portugueses inimaginavelmente sós, aterrados e perdidos num universo fantasmagoricamente novo e ameaçador e um guarda fronteiriço, por sua vez, inacreditavelmente generoso e humano...
Cerbère (Por fim "à Nous La Liberté!...")

terça-feira, 17 de março de 2009

"Aspectos e Realidades da Sub-Suburbânia" [em revisão]

Uma escola do Norte do País decide criar, ao que parece, uma espécie de programa ou de projecto escolar próprio, especificamente destinado à população cigana (que aloja, aliás, muito singularmente num contentor).
"É racismo!"--gritou-se de imediato.

Em alguns bairros periféricos da "Suburbânia" nacional, foram alojados ao longo dos tempos, de forma indiscriminada (curioso vocábulo!...) outros desses mesmos ciganos "pêle-mêle" com várias comunidades negras, de diversas proveniências:

"É leviandade!"--clamou-se, imediatamente (ou não tão imediatamente como isso, para o caso tanto faz...) a propósito.

Perguntar-se-á (perguntarão aqueles a quem estas questões importantes do civismo ainda logram não deixar de todo indiferentes...) como Lenine num título célebre: "que fazer?"

Quem tem razão?

No caso da escola do Norte, "aquilo" meteu D.R.E.N. e tudo--que as eleições estão aí "à porta" e todo o cuidado com o politicamente correcto e o socialmente popular é, nestas alturas-chave, absolutamente de rigor!...

Ora, como aparentemente não se perfilavam no horizonte imediato novas manifestações maciças de professores (leia-se: não se perfilavam no horizonte imediato delegações sindicais às quais mandar a polícia saber "coisas"--no estrito interesse destas como é evidente!...) nem professores humoristas aos quais castigar "exemplarmente" as veleidades humoristas; como genericamente as circunstâncias davam, portanto, uma folgazinha, lá veio a directora regional "herself", com a simpatia e a subtileza de raciocínio que a caracterizam "explicar-se" e argumentar publicamente a medida.

Ora, desta directora regional; do modo como, em regra, "dirige" lá a "sua" região--assim como do tipo de "causa" que é muitas vezes vista (e ouvida) a advogar, está (mas estará?...) praticamente tudo dito.

Da comunidade ou melhor da... "questão" cigana é que seguramente não!

Nem estará tudo dito nem (muito menos!) a propósito dela e, muito em particular, a propósito de um projecto realmente esclarecido e verdadeiramente consistente de integração que a envolvesse é que seguramente não!

Ora, é aí que bate, diria eu, precisamente o ponto.

A integração das comunidades minoritárias (cigana, africana, etc.) ou se faz precocemente na Escola e sobretudo pela Escola--ou muito dificilmente se fará.

O problema é que, para isso, seria necessário um projecto educacional específico e próprio, negociado democraticamente com o conjunto da comunidade nacional nos seus aspectos sociais e políticos e, em seguida entregue, em estrito (mas não estreito, entenda-se!) regime de natural autonomia técnica a uma classe profissional--obviamente, a docente--adequadamente preparada para o efeito.

E nessa matéria, o governo--os governos!--enfim, não é?...

Mas o mais grave é que seria necessário isso mas seguramente muito mais do que isso!

Seriam necessários agentes políticos à altura (outra carência gritante!) e seria absolutamente essencial muuuito mais do que um mero "projecto" obsessivamente contabilístico e menor disfarçado de desígnio educacional (e tecnológico "par dessus le marché"!...) a fim de guiar cada atitude, cada medida, cada solução concreta, no âmbito da acção política.

O espaço de que disponho não me permite que me alargue demasiado na análise detalhada dos aspectos e questões que atrás sumariamente enunciei; dduas coisas são, porém, a meu ver, evidentes e vale a pena que sobre elas nos debrucemos com algum pormenor:

Primeira: constitui um lugar-comum afirmar que, nas sociedades de hoje, o paradigma ou paradigmas familiares tradicionais sofreram uma profunda alteração relativamente, desde logo, àquele que prevalecia, no caso da sociedade portuguesa, há trinta/quarenta anos.

Isto, precisamente por se tratar, como atrás digo, de uma evidência qualquer pessoa--qualquer português medianamente esclarecido e informado dos nossos dias--independentemente da sua formação cultural específica, será capaz de reconhecer--e, de um modo ou de outro, reafirmar.

O problema é que não basta saber--e (re) afirmar.

O problema é que é vital tirar daí as ilações que se impõem e pronto, aqui, neste caso, já a "coisa" fia (bem!) mais fino...

O problema é que não basta dizer que o impacto da emergência (eu estou quase tentado a dizer: da emergência espontânea, caótica e, sobretudo, fatal!...) de "culturas" ou mesmo "sub-culturas" jovens impondo-se sobre o paradigma ou sobre os paradigmas tradicionais reconhecíveis no âmbito da formação típica da identidade se agudizou drasticamente nestas últimas décadas sendo que é também (essa é, pelo menos, a tese que aqui defendo) acrescentar que o "novo modo" de definir esse mesmo modelo típico de identidade passa hoje tão nuclear quanto disfuncionalmente pela substituição "estratégica" das "father images" tradicionais (social, cultural e até cultualmente testadas e vertical-descensionalmente transmitidas, segundo padrões de transmissão claramente definidos e--mais importante ainda--globalmente aceites).

O problema é, pois, que não basta observar que aquilo a que, à falta de melhor termo, designo por "trickle-down societations" (isto é, sociedades cujo código ou códigos de normas básicas em matéria de representações abstractas--a seu modo teóricas--essenciais da realidade se caracterizavam por ser, insistindo no que atrás sobre elas disse, progressivamente "adquiridas" pelas gerações jovens às que as haviam imediatamente antecedido, segundo um 'programa' global por estágios onde a autoridade ia sendo conquistada e continuamente re/integrada, de forma a que poderíamos com propriedade chamar «orgânica», na própria identidade); o problema, dizia, é que não basta, então, afirmar que o modelo "vertical/descensional" ("trickle-down standard") em causa cedeu, pois, já o lugar a um novo paradigma envolvendo o que poderíamos chamar, agora, "shedding societies" ou (como prefiro designá-las) "shedding societations".

Caracterizadas estas pela circunstância de a autoridade não depender já, nem sequer "simbolicamente", da propriedade (ou melhor: da apropriação consentida e progressiva) do saber (que era, afinal, o fundamento essenciante estável do paradigma tradicional) mas constituir antes uma espécie de dado meta-físico inscrito à partida no tecido original da própria identidade, independentemente daquela questão da propriedade, efectiva ou simbólica, do saber.

Mais: é preciso dizer que daí veio a resultar que o erro constitui agora algo que faz (como dizer?) 'parte natural do ser', acontecendo que, à falta de uma experiencialidade anterior inscrita na identidade colectiva e gradualmente "herdada" pela individual, o erro não é mais "adquirido" tendo de ser sim (porque, como disse, ele nasce agora ao mesmo tempo que a própria identidade) descartado (em inglês: "shed") em vez de "conseguido" e mesmo "conquistado", "ganho", em última análise, como um acto de liberdade e (autêntica!) responsabilidade.

É exactamente desse modo espontâneo completamente desprovido de passado que funcionam, na (in?) essência, as culturas jovens que são, afinal, que dá corpo objectivo, material--e fixa em si--o padrão "shedding".

Ora, a única maneira correcta, adequada, de obstar à des-integração e à des-funcionalização cultural (e cultual!) que dessa nova configuração genérica dos processos de formação e consolidação da identidade pode resultar é re/centrar nuclearmente na Escola, de modo responsável e organizado (de modo orgânico!) parte significativa, substancial, daquela mecânica da formação da própria identidade.

Vou mesmo mais longe e atrevo-me a afirmar que, caso tal não aconteça, correm as sociedades pós-modernas o risco de sofrer uma fractura "de episteme" que traga consigo, no limite, a total des-integração dessas mesmas sociedades.
Ausentes os transmissores tradicionais de "valores": os pais, os (mais) velhos, um corpus cultu(r)al qualquer próprio e reconhecível expresso em livros, filmes, quadros etc. colectivamente familiares e, de um modo ou de outro, referenciais (para seguirem existindo como tal é absolutamente essencial que as sociedades não apenas segreguem ou "exsudem" sucessivamente valores próprios mas que, de igual modo, os fixem de maneira a ser possível re/projectar continuamente esses mesmos "valores" sobre si mesmas; ausentes, dizia, pois, das sociedades pós-modernas os referidos "transmissores" (a pós-modernidade pode, de algum modo, ser teoricamente definida como originando um modelo típico de sociedade caracterizado pela necessidade de recomeçar continuamente a História do ponto teoricamente exacto em que ela havia sido interrompida na--e pela--geração ou gerações anteriores); ausentes, pois, os tais re/transmissores tradicionais orgânicos de "cultura", seria, em meu entender, vital que as sociedades (pós) modernas revissem, de forma radical a partir dessa ideia nuclear o 'desenho epistemológico' futuro da Escola, de modo a que ela não se degradasse por inteiro, involuindo fatalmente (como, de resto, me parece que está a acontecer cada vez mais claramente entre nós) para formas puramente funcionais e, sobretudo, civilizacionalmente inorgânicas.
A outra coisa que, para mim, é evidente, neste quadro, é que não haverá (muitas) alternativas a um modelo de "contrato social e civilizacional" que, há muito, venho defendendo e que se me afigura ser, efectivamente, o único capaz de operar a necessecária recentração e refixação do horizonte cultu(r)al das sociedades (dos "paradigmas de societação") pós-modernos, atrás citadas.

Ou seja: os sucessivos governos que se seguiram àquele onde se inscreveu o ministério-chave Sottomaior Cardia (foi, de facto, de um certo ponto de vista disfuncional e bloqueador, um ministério-chave) sempre procuraram focar os seus impulsos ou as suas pulsões (muito confusamente, aliás!) "reformadoras" num modelo em que o técnico e o político se encontravam (lá está!) disfuncional e (com certeza não acidentalmente!) confundidos entre si.

Tratou-se de um modelo em certa (em larga, assumida, confessa, no caso do ministério Cardia!) medida restauracionista que se propunha, desde logo, retirar cautelarmente aos técnicos, aos professores enquanto classe profissional, a condução dos processos educacionais a ter lugar na sociedade portuguesa.

Vinha-se de um período de intenso experimentalismo social e pedagógico-didáctico e o poder político reformador (reformador e reformista!) entendeu não só defender-se como entendeu, também, concretamente que daquele modo (isto é, retirando os professores e os próprios alunos--aos sujeitos da acção educativa--a condução mais ou menos autónoma das respectivas experiências sociais mas também e especificamente pedagógico-didácticas, que era o que estava na realidade a acontecer--nem sempre organizada e nem sempre disciplinadamente, é verdade: são os riscos do experimentalismo verdadeiramente democrático!) se defendia melhor; por outro lado, a tecnologização (muito relativa, aliás, mas enfim: a tecnologização!) progressiva da sociedade portuguesa começava a tender já a desactualizar gradualmente os padrões anteriores de uso social e político da Educação e do Saber em geral e tudo isto somado fez com que, tentando (quase sempre desajeitadamente em termos designadamente técnicos e políticos, aliás!) recuperar a condução do processo envolvendo aquela utilização social concreta do Saber, o poder político "baralhasse" invariavelmente tudo (e pior ainda!) desse sempre novas mostras de entender que era (im!) precisamente "baralhando" que se atingiriam as "soluções" neste domínio específico da Educação e da educatividade entre nós.

Ora, essas soluções (sem aspas!) só podem, a meu ver e como já disse, sair da clarificação precisa dos papéis sociais, históricos, políticos, civilizacionais, etc. relativos da Política e da Técnica no âmbito da Educação.

Ou seja: cabe (deve, deveria!) competir ao poder político muito concretamente negociar, aberta, lealmente, com o conjunto da sociedade portuguesa a definição prévia de um acervo de objectivos sociais, históricos, civilizacionais, políticos para a Educação.
Porém, uma vez definidos estes, deveria, então, ser encomendado aos técnicos--aos professores, pois--um projecto técnico preciso dos modos (vou repetir-me deliberadamente: dos modos especificamente técnicos) de conseguir atingir os referidos objectivos, em regime de autonomia (ainda uma vez!) técnica.

Não estamos aqui a falar, atenção, de uma qualquer (absurda) autonomia política, por exemplo.

Não é disso que se trata.

Em momento algum, deverá haver, neste quadro, condições para que dele possa resultar uma "classe sacerdotal" docente: os "curiosos" da Educação--alguns deles, ministros «dela», aliás...--exactamente porque, a respeito de Educação, possuem, sobretudo, uma visão ou visões "de curioso", gostam em regra, quando pretendem impor os respectivas pontos de vista na matéria, de insistir na tecla de um suposto "corporativismo" docente.
Pois bem! Não é, nem de longe nem de perto, disso que aqui se trata e não é seguramente isso o que aqui se propõe--bem pelo contrário!)
Aquilo que aqui se pretende evitar é precisamente a emergência da tecnocracia, ou seja, uma substituição da vontade da sociedade por uma qualquer vontade, nesse particular domínio: absurdamente autónoma, dos técnicos.

Não são, neste quadro, insisto, os professores "que mandam"--ou "quem manda": quem manda é (por mediação do poder político eleito) a sociedade: os professores, neste quadro contratual, social e civilizacional (*) executam.

Dispõem é do "privilégio" da autonomia técnica indispensável ao bom desempenho das tarefas que lhes estão cometidas.

A liberdade numa sociedade minimamente "tecnológica" ou "moderadamente tecnologizada" como aquela em que vivemos, ao contrário do que parecem pensar alguns fora e mesmo dentro do próprio poder, não pode ser "medida" pela possibilidade completamente absurda e arbitrária, aleatória e aleatorizante, de interferir constantemente o trabalho esprcífico dos técnicos, sejam eles médicos, advogados, arquitectos ou professores: mede-se, diria eu, pelos efeitos materiais da respectiva acção concreta sobre diversas componentes específicas do social.

É a isso que eu chamo um "contrato social e civilizacional"

Então, o valor e a aptidão dos técnicos já tem um referencial concreto, um padrão--e uma medida: o valor dos técnicos mede-se pela respectiva (in) capacidade para cumprir o contrato anteriormente definido e negociado com a comunidade através da mediação concreta do poder político vigente.

Ora, voltando ao início destas notas, deve sublinhar-se que as tarefas de integração de comunidades como a cigana são ttambém abrangidas por este contrato--que é, devo acrescentar, em larga medida polidisciplinar, envolvendo professores (pedagogos e especificamente didactas), médicos, psicólogos, assistentes sociais, etc.

Aquilo que eu não me canso de dizer é que, uma vez definido pela sociedade que se devem (ou se se devem...) integrar as referidas comunidades, o problema passa (deve idealmente passar!) por uma fase estritamente técnica de onde só volta a "sair", digamos assim, sob a forma de efeito ou consequência dessa mesma acção especificadamente técnica, os quais, efeito ou consequência, "voltam, a partir daí, a ser", por um lado, questões latamente sociais (houve ou não sucesso concreto na integração?) e, por outro, ainda e sempre especificamente técnicas (se não se obtiveram níveis reconhecíveis, demonstráveis, de sucesso, os técnicos aos quais as tarefas em causa estiveram cometidas, serão pedidas, através de outros técnicos, as devidas responsabilidades permanecendo, pois, todo o processo uma questão fundamentadamente técnica nos pontos e alturas em que deve para permanecer credível ser--e só depois a avaliação e a classificação dos técnicos e do seu trabalho pode ser adequadamente canalizada para o domínio político ao qual compete, então, conferir à avaliação dos agentes no terreno expressão operativa precisa e concreta.

É por nada disto se verificar (permanecendo os políticos os proprietários praticamente os únicos "proprietários" reconheciveis e (pior ainda!) "legítimos" da acção técnica--ensino, avaliação dos técnicos, etc.) na nossa sociedade actual que continuamos a interrogar-nos, perplexos, confusos e eternamente indecisos perante "casos" como da tal escola que confinou, em nome de um projecto educativo onde a comunidade em momento algum entrou para negociar e que, por isso, a maioria tem dificuldade em equacionar, a um contentor, longe das outras crianças.

...Isso enquanto em bairros da "Suburbânia" nacional como o Portugal Novo e a Quinta da Fonte uma medida que pode ser vista como exactamente a oposta dessa não se livra, pelas mesmíssimas razões atrás referidas, de ruidosas críticas que, por paradoxal que possa parecer, se confundem, por sua vez, com as anteriores...
(*) Por coincidência, quando coligia as minhas notas para este texto, aconteceu-me estar a ler um curioso livrinho da preciosa colecção inglesa "Pelican", intitulado "Victorian People" e escrito por Asa Briggs.
Dele consta um artigo dedicado a "Thomas Hughes e as 'Public Schools' onde a questão da profunda transformação das 'public schools' em meados do século XIX no modelo que o thatcherismo viria a implodir com as consequências que se conhecem, modelo esse que, com todos os seus defeitos, deu um contributo importantíssimo para a formação das elites em Inglaterra.
O que as 'public schools' eram antes e aquilo em que se converteram por acção de uma série de reformadores aos quais seria injusto negar inteligência e uma aguda sensibilidade civilizacional são realidades profundamente distintas.
O que homens como Matthew Arnold de Rugby, por exemplo, conduziram foi, na realidade, um consistente processo de reajustamento civilizacional da Educação (de uma certa Educação, é preciso precisar) à História, recolando-a operativamente a esta quando o hiato epistemológico entre ambas era significativo.
Tratou-se, pois, aqui, dito de outro modo, de reformar a partir de um ângulo teórico ou teorético, histórico, social, civilizacional, preciso de algum modo a sociedade, colocando operativamente a Escola no caminho dessa reforma ou dessa... "reformação" da sociedade.
Desse modo, ela deixou de estar à margem do funcionamento dos processos globais de civilizacionalidade: re/entrou no seu tempo de forma determinante, tendo aprendido a dialogar com ele e a articular-se harmonicamente com ele.
É nesse sentido que eu falo de processo civilizacional e me permito supor que um processo desse tipo está, de algum modo, em curso engtre nós sendo essencial que a Escola portuguesa actual perceba aquilo que a inglesa das 'public schools' entendeu, no seu tempo.
A visão destas era socialmente limitada?
Nem sempre os seus métodos foram perfeitos?
Não é disso que aqui se trata: trata-se, sim, de perceber como, em termos globais, a Escola inglesa da época se entendeu perfeitamente com o seu tempo, por um lado e, por outro, como a necessidade vital de homens e mulheres com inteligência e sensibilidade educacional (que, entre nós visivelmente nunca terão chegado ao poder ou, se chegaram, não tiveram, por razões várias, ocasião de mostrar que possuíam aqueles atributos.
E esse, também, é um problema grave da Escola portuguesa que, por via de regra, escolhe meros contabilistas sem visão e medíocres comissários de ocasião para tutelar, nos diversos graus da pirâmide educacional, o que deveria por direito estar reservado aos homens e mulheres com as melhoes ideias e a mais transparente inteligência, independentemente de "comissariados" ou carreiras...
[Imagens extraídas com a devida vénia de kelp.cl]

"A «nacionalização dos bancos» ou a «privatização da lucidez e do bom senso»?..."


Já o disse noutro ponto próximo deste "Diário" mas vou repeti-lo ainda uma vez: o "Público" de 09.03.09 vinha cheio de "coisas" estimulantes, i.e. de ensejos privilegiados para a reflexão sobre o País e a sociedade que somos.

Um artigo "de opinião" de F. Sarsfiel Cabral intitulado "A nacionalização dos bancos", por exemplo.

É uma daquelas "coisas" que a gente lê e apetece-lhe logo benzer-se!...

Os equívocos e as contradições são, como diz um sobrinho meu adolescente, "mais do que muitos, que muitos não bastam para descrever os que são..."

Eu limito-me aqui a listar uns quantos.

Primeiro, vem aquela mata-mata da nacionalização dos bancos na sequência da "crise" actual.

Aterrado com a hipótese de esta vir pôr em evidência não apenas a sua própria incompetência como, por arrastamento, atestar da razão que assiste a quem critica a "economocracia" global vigente, os neo-liberais de todo o mundo, unindo-se, nunca deixam de, mal lhes põem um jornal ao alcance da mão, juntar-se para esgrimir "argumentos" em (acalorada!) defesa da mera "instrumentalicidade" das medidas de estatização tomadas, no contexto da "crise", pelos governos do "Ocidente" de uma forma geral.

"Não há" (dizem) "a mínima possibilidade de se confundir o que se faz hoje para combater a "crise" com o que um Vasco Gonçalves faz, em '75 com a banca nacional! Vasco Gonçalves queria nacionalizar para sempre: a gente é só atér as coisas "arrefecerem" um pouco..."

Espantosa argumentação esta que parece dar de barato que instrumentalizar de um modo escandalosamente cínico o Estado é preferível a fazê-lo em nome de uma concepção, aliás generosa e sdesinteressada, desse mesmo Estado!

É mau que o Estado use a banca como expressão concreta, activa de uma ideia teórica de Estado que é, afinal, numa palavra, a que deriva, de forma natural e no plano conceptual e filosófico, da ideia civilizacionalmente moderna de Estado-nação ou, como prefiro chamar-lhe, de "Estado consciência" segundo a qual o Estado funciona como a projecção institucional orgânica do interesse e da consciência nacionais como todo.

É assim, aliás, que se compreende a ideia de nacionalizar a banca: compreende-se, pois, equacionando-a precisamente no contexto específico de um projecto global, realmente prático, de (como dizer?) pôr efectivamente o Estado no seu lugar certo na História e na sociedade, em geral.

De pô-lo a funcionar como um instrumento material organicamente concretizador do conceito preciso, histórico, social e civilizacional do Estado como expressão verdadeiramente actuante, operativa, das aspirações reconhecíveis da consciência colectiva.

Ora, isto, pois, dizia, é, ao que parece, "mau"; "bom" é pretender usá-lo como uma mera ferramenta ou alfaia instrumental, utensiliar, que é pontualmente chamada a corrigir disfunões contextuais, devendo, porém, em seguida, cumpridas as tarefas que os "proprietários da História" especificamente lhe encomendaram, regressar docilmente ao limbo de onde foi trazido com funções tão estritas quanto, sobretudo, estreitas, efémeras e especificamente utensiliárias.

Primeiro equívoco.

Outro: mas, se como dizem os neo-liberais (os neo-liberais "soft" ou "sociais" e os "hard core" ou "pós-sociais) o Estado só serve para remendar o sistema quando ele abre fendas, como se explica que seja, afinal a ele que os bons gestores da realidade têm de recorrer quando são incapazes de corrigir os seus próprios erros?

Como se explica que o Estado sirva para arrumar a casa quando ouros a desarrumam , se ele é tão inepto nas "arrumações" que é preciso retirar-lhe ordinariamente as tarefas envolvendo precisamente... "arrumações"?...

Há, aqui, com efeito, qualquer coisa que não joga: o Estado é mau a gerir. Bons são os privados. A verdade, porém, é que quando os privados falham, chamam o Estado para resolver!

Estranho?

Enfim, ele há tanta coisa estranha na vida que mais esta...

Diz ainda Sarsfield Cabral, expressamente, a dado passo--terceiro equívoco:

"[...] uma empresa não é pública por acaso--se assim fosse, deveria ser privatizada" [sublinhado meu].

Ora, é a isto, a "coisas" destas, que eu me refiro quando censuro os "comentadores" em geral de raramente terem ideias que trocam, habitualmente, por esses fantasmas ou espectros disfuncionais das ideias que são as "convicções".

Quer dizer: a "condição natural das empresas" é serem privadas.

Demonstra-se isto?

Não! Acredita-se!

Acredita-se que o acaso deve funcionar, sempre, em todos os casos pelos vistos, como princípio "de episteme" ou "lei geral da realidade" de forma natural, na direcção e no sentido dos privados.

É, dito de outro modo, o velho/novo (pós-moderno ou pós-histórico) princípio do "Estado-broker", "Estado almocreve" ou "Estado funcional" e/ou "utensiliar".

O Acaso, alega-se aqui, é, pois, nosso, das empresas.

Só prescindimos dele por momentos quando as coisas "correm ml".

Mesmo que corram mal por culpa nossa e não do Estado.

Do Estado que ("here we go again!") todavia, de um modo, aliás, muuuuito dificilmente explicável, chamamos em pânico sempre que há dificuldades--ou "crises" como a actual...

Como raciocínio, parece-me realmente notável!...

Bom mas Sarsfield Cabral até admite generosamente a prevalência regular de um banco público--mesmo que seja apenas suposta ou imperfeitamente 'público': a Caixa Geral de Depósitos.

Isto, ainda que, diz ele "naturalmente [...] um banco, ou qualuer outra empresa, do Estado (afinal, parece que... enfim! Continuemos!) pode sempre ser utilizado para servir interesses e amizades particulares (não as de Peyreffite, outras! Quais? Bom, isso agora... Mas continuemos) ou partidárias e não para fins de interesse nacional".

Boa! Afinal não é nem precisamente público nem exactamente privado, o banco que o articulista nos concede: digamos antes que... tem dias...

Ora, do meu ponto de vista pessoal, esta coisa de se admitir a existência de bancos públicos quer, em última instância dizer, que, no limite, de forma implícita, se admite que os interesses do público e do privado não são necessária nem inevitavelmente coincidentes.

Mas admitir isto, é admitir também tácita e (aí sim!) inevitavelmente que pretender que possa estar organicamente limpa de "crises" cíclicas uma sociedade que entrega, diz ela: naturalmente aos privados a gestão dos diversos interesses implicitamente reconhecidos como existentes.

Aliás, é isso mesmo que começam hoje já a admitir cada vez mais abertamente, como se sabe, muitos dos anteriores neo-liberais "puros-e-duros".

Acontece é que, nesse caso, não se conseguirá muito bem perceber "aquela do" "se as empresas fossem públicas por acaso, deviam privatizar-se". Isto é: não podiam ser públicas por acaso mas deixa de haver acaso se forem privadas.

Só que, por outro lado, se forem privadas, há "crises" (porque implicitamente os privados não cobrem tosdos os casos ou todos os interesses dentro do social, por um lado) mas não só: se até as públicas "podem naturalmente ser utilizadas para servir interesses e amizades particulares ou partidárias", imagine-se uma sociedade onde TODAS fossem públicas!!...

Por último, a questão: mas não se pode, ao menos, no caso das públicas, evitar que sejam "utilizadas" desde logo "para servir interesses e amizades particulares ou partidárias e não para fins de interesse nacional"?

Bom... poder talvez se possa só que, para tanto, é escusado contar com Francisco Sarsfield Cabral que tem desde logo o escrúpulo de confessasr que... se há, ele não sabe como!

Ora, se Sarsfield Cabral, que é um reputado economista, não sabe, como hei-de eu--como havemos nós todos, em geral, portugueses--saber e, ao mesmo tempo, defender que o modelo "ocidental" actual, "europeu" e "global" (é disso obviamente que estamos aqui todos a falar!) está no in/essencial, certo e que a consciência nacional, na forma civilizacionalmente ideal de um Estado orgânico e actuante, apenas deve ser chamado a intervir na sociedade real e, em geral, na História para "apagar fogos" e, numa palavra, limitar-se às tarefas im/puramente meniais de restaurar ou remendar pontualmente o status quo??!!

A resposta até nem é difícil de dar e situa-se (eu diria: tentativamente) algures entre a ideia salazarista de uma "democracia orgânica" para gerir os distintos interesses económicos, sociais e políticos existentes numa sociedade des/estruturalmente desigual como são genericamente as do "Ocidente" e, concretamente, as da "Europa" de hoje (por "democracia orgânica" entendia, como se sabe, o ditador um sistema político dotado dos órgãos da democracia, independentemente da circunstância de, em última análise, funcionarem ou não); a resposta, dizia, situa-se, pois, algures entre esse arremedo formal de democracia e um paradigma real e colectivamente participado, estrategicamente apoiado em instituições efectivamente operantes e capazes de evolução mas, sobretudo, um modelo em que o Estado não esteja condenado ao papel ancilar de um instrumento que regularmente se desactiva quando supostamente "não faz falta".

Isso, seguramente.
[Na imagem: fragmento do original da "Política" de Aristóteles.]

"Outra..."


O modo como funcionam estes "blogs" (deslocando-se, de forma paradoxal, do fim para o princípio) faz com que esta 'entrada' (que aqui aparece antes) deva, na realidade, ser lida depois da que se lhe segue.

Enfim «coisas» da "blogagem"...

O que interesa verdadeiramente aqui é reflectir sobre um texto de Teresa de Sousa inserto, também ele (como o de São José almeida de que falo na tal 'entrada' que, vindo como disse, imediatamente a seguir a esta, lhe é de facto anterior) no "Público" de 09.03.09.

Aqui, se retoma a comparação entre Cavaco Silva e José Sócrates. Trata-se, de resto num caso e noutro, de uma espécie de "dossier" sobre os "três anos em Belém" do primeiro dos citados políticos.

O que daqui, do texto de Teresa de Sousa, ressalta (para mim, pelo menos: do ponto de vista do meu interesse e da minha própria análise) é, ainda e sempre, a tal "tara crítica" da fulanização completamente assistémica da realidade (histórica, social, política) circundante.

Segundo Teresa de Sousa (não vou aqui perder demasiado tempo a repetir) "Cavaco é não-sei-quê", já "Sócrates é mais outra coisa qualquer".

Ora, eu não sei ao certo (nem, francamente, me interessa muito saber...) se Sócrates é mais "isto" do que Cavaco e menos "aquilo" do que este.

Um e outro me são, enquanto pessoas (eu deveria mesmo idealmente dizer--se a "democracia portuguesa" funcionasse, como devia, assim--qualquer um deles me interessa tanto como o outro enquanto "servidores públicos" ("public servants")-- que, de resto, tenho as mais sérias e, a meu ver, fundadas dúvidas que qualquer um deles seja...

Os políticos para mim deviam ser como os árbitros de futebol e os locutores de televisão: tanto melhores quanto por eles enquanto indivíduos menos se desse.

Uma certa maneira pretensamente "moderna" e "dinâmica", comunicacionalmente... "desempoeirada" (de facto, terceiro-mundista polida à pressa e apenas exteriormente mas enfim...) de conceber a "política" faz com que uns quantos "analistas" e "inteligentes de carreira" se dediquem regularmente (leia-se: que uns e outros ganhem a respectiva vidinha) a criar puras (ou, pelo contrário, impuras?...) personagens de ficção a partir da ideia que eles próprios, "analistas" fazem ou dizem fazer (e que é, sobretudo, essencial que todos nós façamos também...) de uns quantos espertalhões em si mesmos cinzentos, oportunistas e não-raro escandalosamente parolos a que todos os interesados se obstinam, apesar disso, em tentar fazer-nos genericamente acreditar que se trata de verdadeiros políticos...

Cavaco é mais "isto-ou-aquilo" do que José Sócrates?

É menos "aqueloutro"?

Cavaco e Sócrates são o "sistema".

São o sistema político que faz do Estado, como tantas vezes tenho dito, um emprego dos mais chorudos (com saída directa para carreiras de, por vezes escandaloso, luxo no privado); que faz do carreirismo político em geral uma indústria fabulosamente rentável para uns quantos espertalhões de carreira eque fez, por fim, já do Estado um mero corretor (senão mesmo um simples e dócil almocreve) dos interesses que as pessoas em causa--os tais "políticos" saídos da ficção de uns quantos fantasistas da análise e do comentário mais ou menos 'profissional'--servem e, afinal, eles próprios são.

Tudo isto já disse, porém, noutro lugar--designadamente quando me debruço sobre o "exame" que São José Almeida faz do "cavaquismo" e de um suposto "socratismo" que, segundo ela, se terá seguido ao primeiro.

Não vale, pois, a pena insistir neste aspecto da nossa própria análise, aqui.

Do texto de Teresa de Sousa ("Ou eu ou o caos, parte II") ressalto sobretudo o seguinte parágrafo onde fala do actual presidente da República:

"O "capitalismo popular" que Cavaco roubou à sua heroína Margaret Thatcher (que haveria de substituir por Delors e González) tinha finalmente o seu grande intérprete. Não precisava de ideologias nem de concessões. Era assim, em toda a sua nudez e com toda a sua eficácia. Ele e o povo. Partidos? Parlamento. Rituais democráticos por vezes incómodos" [sublinhado meu].

E mais adiante:

[...] Cavaco e Sócrates. Pragmáticos. Implacáveis quando se trata de vencer. Pouco tolerantes à "maçada" dos partidos".

Os "retratos" falam por si: eufemísticos embora, falam por si: "Pragmáticos", "implacáveis quando se trata de vencer" (!...), "pouco tolerantes à "maçada" (!!) dos partidos" e por aí fora.

Tudo isso já se sabia, aliás.

Já o sabia quem não se disponibiliza a "engolir" credulamente as fantasias supostamente originais e objectivas dos "an(im)alistas" e "palitólogos" profissionais.

Essas pessoas (entre as quais me lisongeio, aliás, acreditando estar...) davam era a todas essas coisas outros nomes.

Nada disso constitui qualquer novidade, pois.

O que é interessante é constar como asim, de mansinho e supostamente sob a forma de genuína (e escrupulosa!) análise política esteja, afinal, a ser confirmado, implicitamente, quanto venho há muito a dizer sobre "deriva demomórfica (pós) moderna nacional" ou simplesmente "pós-democracia".

Aquilo que (tão óbvia quanto desgraçadamente!) permite defini-la nos seus traços gerais é, diria eu, exactamente a possibilidade regular (eu diria: a quase inevitabilidade cíclica!) de uns quantos fulanos espertalhóides se "infiltrarem" no edifício "estrategicamente imperfeito e deixado por acabar da "democracia instrumental" (ou da "democracia funcional") (à) portuguesa actual; indivíduos ideologicamente "pragmáticos", ética e/ou socialmente "implacáveis quando se trata de vencer" (quem e o quê?...) e, em geral, "pouco tolerantes à "maçada" (!) dos partidos".

É que são esses quem "dá", afinal, "o tom" à "democracia" nacional, quem marca indelevelmente a História e o rosto concreto do "sistema", quem, numa palavra, importa a "política" do terceiro (senão mesmo do quarto ou quinto...) mundos para o próprio seio do "primeiro" e faz da História a palhaçada que ela hoje-por-hoje cada vez mais é...


[Imagem extraída com a devida vénia de lesjones.org]