sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

"Ainda a «questão» do casamento homossexual como problema cultural e cultual"


Regresso, ainda uma vez, à singularíssima "ordem do dia" nacional---o casamento homossexual---escogitada pelo poder político vigente para 'varrer para baixo do tapete' no imediato questões que, de outro modo, poderiam muito bem [ou muito mal mas enfim!...] "explodir-lhe", em qualquer altura, nas mãos.

Escogitada pelo poder político, como disse, para, enquanto lhe for possível, ir "enchendo uns quantos chouriços... argumentativos" mas também [e parece-me, sinceramente, que não seria mau que começássemos todos, como sociedade, a considerar também este outro lado mais imediatamente oculto da "questão"]; mas também, dizia, gostosamente aproveitada por uma certa hierarquia institucional católica [genericamente imóvel---de facto, completamente encalhada!---no tempo, manifestamente incapaz de evoluir e de lidar com as inúmeras complexidades do que chamamos globalmente "a vida moderna" [sobretudo, política---aí, então... longe vá o agoiro!...] e, por isso, sob diversos aspectos, em franco declínio] [o "Correio da Manhã" de hoje, por exemplo, inclui uma notícia onde se fala, logo em título, de das "ordenações" que, diz o "jornal cairam vinte por cento" só este ano] para tentar uma espécie de "contagem de espingardas" particular, de toque a reunir muito oportunamente fornecido pelo poder político e, por fim, para um sonhado "re-boost" quantitativo das suas depauperadíssimas hostes.

Detenhamo-nos, então, por uns momentos sobre este último ponto.

E para começar por dizer o seguinte: o problema da igreja institucional é claramente de natureza estrutural.

Como "teoria da realidade", ela enquanto ideário corresponde a um momento ou conjunto de sucessivos desses "momentos" históricos mas, sobretudo, especificamente científicos em que a sua base epistemológica fixa---o "conhecimento" bíblico---fornecia precisamente [em muitos casos---por demais conhecidos, aliás: Galileu e por aí adiante...---pela força mas enfim...] o único paradigma de organização teórica da realidade admitido---e autorizado.

Como teoria da realidade, ela foi ultrapassada naturalmente pela própria realidade sobre a qual se obstina ainda hoje em teorizar---coisa que ela, pelos vistos, nunca conseguiu de todo perceber.

Não percebeu, por exemplo e muito concretamente , que a única via que se lhe abria quando a própria evolução natural do Conhecimento humano [e especificamente dos modos humanos de Conhecer!] era a de ela própria evoluir de um domínio epistemológico onde de direito já de todo não cabia para um âmbito mais genérica ou, num certo sentido, filosófico, mais abstractamente ético onde existia um conjunto de representações e formulações particulares que àquele Conhecimento caído em desuso andavam mais ou menos directamente associados e que podiam ser beneficamente recuperados por [e/ou especificamente para] uso de uma sociedade cuja falha maior [uma delas, em todo o caso] consistia precisamente em, tendo-se reforçado científica e tecnicamente, ter-se, de modo inversamente proporcional, esvaziado em termos éticos e humanísticos.

Uma sociedade que se tinha "dissociado" ou "des-integrado" i.e. que se tinha tornado já "identitariamente inorgânica e epistemologicamente esquizofrénica" no preciso sentido em que tinha aprendido comparativamente depressa a "fazer coisas" mas a fazê-las independentemente dos seus usos especificamente sociais ou até imediatamente humanos e humanísticos.

Uma sociedade que tinha transformado numa cultura em si esse mesmo projecto tópico de arrancar a "Ciência" à "História" e de---lá está!---dissociar por completo ambas entre si passando, na prática, a concebê-las como entidades completamente inter-autónomas, entregando [era aí que iria, afinal, desembocar a sua ideia tópica teórica de "Estado", aliás!] a gestão da primeira daquelas componentes do seu património orgânico próprio à iniciativa privada enquanto que a gestão da segunda era por sua vez, cometida ao "Estado" no qual ela via basicamente, porém, apenas, por um lado, um "broker" ou "corretor institucional" daquela iniciativa mesma privada e, por outro, uma espécie de dispositivo móvel "de segurança" [ao qual ela chamou, como se sabe---muito ambiciosamente, de resto---o "seu" Estado "Social"] destinado a atenuar e a ir corrigindo, de forma, todavia, apenas primariamente "sintomática"---e só muito breve e muito localizadamente, de facto, "orgânica"---as disfunções inevitavelmente geradas pelo modo des/estruturalmente 'desigual' de funcionar daquela enquanto sistema em si.

Tirando, com efeito, em países como a Inglaterra ou a França, o imediato pós-guerra não me parece que, na esmagadora maioria dos casos o Estado dito "social" tenha sido outra coisa que não aquilo a que chamo um mero "revestimento politiforme móvel e funcional" do núcleo ou infra-estrutura económico-financeira dos diversos regimes ocidentais.

Diversas vezes, também, tenho chamado a atenção para o papel [des] estruturalmente conservador [teórica mas também objectivamente reaccionário mesmo, no limite] do Estado dito "social" assim entendido como uma "peça-chave" do modelo económico-financeiro [e instrumentalmente político] achado pelos regimes pós-autoritários [pós-fascistas] ocidentais para fazerem face ao fracasso sistémico dos autoritarismos dos anos '20 e '30 para gerirem a sua própria sobrevivência enquanto modo de produção.

A verdade é que o Estado assim concebido, operou, na realidade, na prática, não como um aliado das classes trabalhadoras [na medida em que não previa transformações políticas reais do modelo económico-político mas, exactamente ao contrário, tornar esse modelo social, política e, em geral, histórica, social e politicamente "habitável"] mas, exactamente ao contrário, repito, como um aliado daqueles que se situavam económica, social e politicamente acima dessas mesmas classes, i.e. dos detentores da propriedade [e] do capital e tendo como meta histórica precisamente que a realidade não se alterasse no essencial.

Ora, neste contexto de fixação externa da História---da sua conversão prática [e, também, em muitos casos, teórica, já agora...] em refém da própria infra-estrutura económico-financeira das sociedades ocidentais---seria extremamente importante que a igreja católica tivesse sabido perceber o campo de intervenção moral que o próprio sistema, com a sua "vocação inata" [de estrutura, de episteme] para gerar desigualdades de toda a ordem, lhe oferecia.

Isto é, que ela tivesse sabido entender em que exactos sentido e direcção se orientava a sua própria possibilidade de evoluir.

É Voltaire quem tem, a dado passo, sobre o cristianismo do seu tempo, uma reflexão extraordinária envolvendo a ideia de que [a responsabilidade da formulação é minha, a ideia geral é que é do criador do "Candide"] perante as desigualdades existentes Deus tinha uma espécie de [permitam-me a expressão] 'obrigação moral' de existir ou de 'se criar a si próprio' a fim de estimular a humanidade a ser um pouco mais... tolerante e humana.

Ora, foi isto que a igreja claramente [ainda?] não percebeu.

Ainda hoje, de facto, em lugar de proceder, ela própria, a uma séria reflexão deste tipo, opta por posicionamentos teórica e cientificamente em si mesmos de todo insustentáveis, tentando à força e à revelia da própria História impor a "teologia" como uma "ciência" concorrente das próprias ciências [é essa claramente a linha de intervenção concreta---a estratégia---eleita pelo actual papa para intervir na sociedade moderna, numa sociedade essencialmente urbana, tecnologicamente evoluída, a uma distância abissal, portanto, daquela onde essa intervenção geralmente resultava] numa via completamente aberrante e até objectivamente suicidária que apenas pode, a prazo, conduzir a fracturas dificilmente colmatáveis da própria igreja relativamente a vastos sectores da sociedade e, no limite, ao fechamento integral do próprio catolicismo num ghetto construido por si mesmo e por uma estatégia incrivelmente inábil e autista, obstinamente míope de intervenção na vida [dita, com razão ou sem ela---essa é outra questão] "real" e "moderna".

Basta recordar o recente---e, a todos os títulos, dificilmente imaginável!---"episódio" da polémica "teológica" com Saramago para se perceber até que extremos de puro, estéril e cego escolasticismo a igreja institucional de hoje está disposta a ir...

Este, digamos, o pano de fundo sobre o qual se destaca o modo inimaginavelmente desajustado da realidade, dela teimosamente alienado, como a igreja católica se colocou perante toda uma fenomenologia cultu(r)al [ética, política, civilizacional] de que o casamento entre pessoas do mesmo sexo representa, no fundo, um mero epifenómeno.

Ainda hoje, na mesma edição do jornal que citei a propósito do declínio dos valores em matéria de ordenação de sacerdotes católicos se achava uma outra envolvendo um padre português em França acusado de pedofilia e abuso de menores.

A questão é: onde é que uma instituição que tem, no domínio dos comportamentos designadamente de índolo sexual; de índole sexual envolvendo pessoas ás quais não se pode, de todo, aplicar a designação de "consenting free adults"; como é que uma instituição que, neste domínio manifesta as fragilidades e dificuldades que exibe [basta ver o recente "caso irlandês"]; onde é que uma instituição assim vai buscar autoridade moral para se pronunciar em matérias que envolvem, aí sim, os tais "consenting free adults"?

E não digo: onde vai ela buscar fundamento porque o fundamnento em causa, pura e simplesmente, não existe.

As origens dos comportamentos pedófilos não podem, a meu ver, ser dissociadas precisamente do modo [des] estruturalmente arcaico e intrinsecamente disfuncional como a igreja permanece organizada, ainsda hoje, logo desde a formação do seu pessoal; do modo teimosamente 'medievalizado' como concebe designadamente a relação entre os sexos [de que a inimaginável "questão" da ordenação de mulheres permanece uma manifestação verdadeiramente gritante de obsolescência e indigno obscurantismo discriminatório.

A pedagogia católica, com efeito, ao preconizar nos domínios específicos onde se exerce na sua forma mais 'pura' e mais ortodoxa [seminários, colégios internos, etc.] que o desenvolvimento da identidade e da consciência dos indivíduos tenha lugar num contexto "sexual e sexistamente claustrofóbico e estr[e]itamente segregado"---'segregacionista', mesmo---é que cria algumas das condições primárias para que possa emergir mais tarde o padrão de disfuncionalidade pedófila relativamente a cuja condição 'tópica' hoje já muito pouca gente duvidará em associar ao modelo eclesial em matéria especificamente pedagógica e até didáctica.

Era, porém, para , i.e. para o saneamento cuidado e criterioso das suas estruturas conceptuais e cosmovisionais básicas que a igreja institucional deveria começar por virar-se a fim de "arejar" tão desejável quanto radicalmente o seu património próprio em matéria ética na sociedade contemporânea.


E eu terminaria dizendo: enquanto não tiver percebido isto [e, sobretudo, se o não chegar a percebê-lo!] não é difícil antever que fim reservam as sociedades modernas ao corpus doutrinário eclesial institucional; às representações de ordem "morail" que dele se obstinam em seguir gerando-se---assim como, em última análise, à própria instituição que produz tudo isso---enquanto tal...


[Na imagem: fotograma de "Blindness" de Fernando Meirelles baseado na obra "Elogio da Cegueira" de José Saramago ]

2 comentários:

Ezul disse...

Eu destacaria, precisamente, essa notória incapacidade da igreja institucional para ser “tolerante e humana”. Vá lá esperar-se que dali venha um contributo válido para promover esses valores… Recordo, a este propósito, quando ainda seguia certos rituais católicos, de acordo com a educação e os valores que me tinham sido transmitidos, certos sentimentos de revolta e de indignação que não podia evitar durante as missas, face a certos e determinados dogmas, face a afirmações que demonstravam a indisponibilidade da igreja para se comover com a realidade humana.
E, a propósito de um triste acontecimento ocorrido nesta cidade há alguns anos, ainda pergunto a mim própria como foi possível revelar tanta insensibilidade… Negarem o serviço religioso, calarem os sinos da igreja numa despedida, quando tais actos poderiam ser um acto de conforto naquele momento doloroso? Um silêncio que nunca hei-de compreender! Se a igreja não se comove com o sofrimento humano, bem pode esperar que nos comovamos com o seu próprio destino!
Mas acredito, a propósito das ordenações de padres, em motivações genuínas para actos de generosidade que, muitas vezes, morrem estranguladas pela rigidez dos dogmas. E sinto uma profunda admiração por algumas figuras da nossa sociedade que, identificando-se, ou não, com uma determinada opção política, abandonaram a via religiosa e fizeram da sua vida um verdadeiro exemplo de solidariedade.

Carlos Machado Acabado disse...

Tem razão, "Ezul"!
Eu próprio recordo com particulares admiração e respeito, algumas dessas figuras que, pela sua inteligência não conseguiram suportar a convivência com o omnipresente e brutal peso de dogmas como aqueles a que alude---gente que, pela sua verticalidade, acabou, por outro lado, fatalmente fora de uma igreja que antes haviam suposto ser a sua casa espiritual, moral e, em termos latos, intelectual.
Desses, destacaria José da Felicidade Alves, ex-padre de Belém, uma das mais intelectualmente estimulantes figuras de padre que conheci [não conheci muitos, é verdade...] e que acabou banido e que morreu amargurado pela sua impotência em transformar um monstro que se alimenta da mais "pura" docilidade e do mais "puro" conformismo quando não das mais aterradoras inércias de todo o tipo à mistura com os mais brutais apetites...
Eu próprio recordo os terrores que rodearam a minha adolescência feita de culpas que não entendia e de inomináveis terrores de todo o tipo que só muito tarde [e só eu sei com que esforço!] consegui esconjurar de todo...
Recordo, por exemplo, uma procissão em Moura de que fugi, literalmente, aterrado, apavorado, com os cânticos lúgubres e a luz sinistra das velas que foram decididamente "demais" para um espírito ainda muito vulnerável e literalmente atafulhado de fantasmas e espectros de toda a ordem...