terça-feira, 5 de janeiro de 2010

"Cidadania ou «vigilantismo» camuflado?..."


Ainda a propósito da questão envolvendo os casamentos entre pessoas do mesmo sexo, por alguma razão [cujo fundamento real não descortino completamente mas emfim!] o "dernier cri" do debate político em Portugal, sinto-me irrestivelmente tentado a acrescentar a quanto, sobre o tema, já aqui deixei expendido, o seguinte: a insistência por parte de um grupo cívico, um tal "Cidadania e Casamento" ou coisa que o valha, no sentido de que a ideia seja referendada, força-me ao que, se não é rigorosamente uma conclusão, é seguramente, uma séria reflexão e que é esta: se eu fosse intelectualmente desonesto como, por exemplo, aquele cidadão que, no blogue de um amigo meu, escrevia que "qualquer dia estamos a legalizar os comportamentos pedófilos", diria, sim, que qualquer dias estamos a referendar mas é, por exemplo, coisas como os casamentos entre pessoas etnicamente, chamemos-lhes "incoincidentes" ou a admissão de cidadãos etnicamente [vamos designá-los assim em puro "politicamente-correctês"...] por "divergentes" em relação a um determinado paradigma racial [ou---por que não---político]maioritário usado, no processo, como estalão de direitos [e, especificamente, de Direito] cívico e político.

Ora, a mim, sempre me assustaram, confesso, todos os movimentos daquele cariz a que os anglo-saxões se referem como "vigilantes"---movimentos cujo fundamento de existência última e, sobretudo real se acha sempre, no limite, directamente associado ou ao mau funcionamento do sistema político em sentido amplo ou, em alternativa, ao desejo de impor modos de ser e de estar cívicos, sociais, étnicos, religiosos, cultu(r)ais e políticos quantitativamente maioritários sobre os das minorias no seio existentes.

Não posso, por exemplo, dissociar este "Casamento e Cidadania" de coisas absolutamente tenebrosas, lamentáveis [e, extremamente, perigosas!] como aquela inimaginável "questão" dos minaretes na Suiça ou do uso do lenço árabe em França, todas elas, a "dos minaretes" como a "do lenço" e agora esta "do casamento" assentes na ideia verdadeiramente assustadora de que os direitos privados têm sempre de ser tutelados e, em última instância, autorizados, i.e. têm de passar pelo crivo da homologação tutelar de uma maioria, ainda quando [e aqui é que bate verdadeiramente o ponto] a respectiva prática não implica qualquer retorno e muito menos obrigação ou coacção relativamente a outrem dentro ou fora do grupo racial, sexual, cultu(r)al ou político em causa.

Havendo fundamento por parte da maioria para qualquer receio de retorno ou acção directos sobre si e os seus próprio direito legítimo de não serem impedidos de viver a sua própria condição cultu(r)al, social, política, etc. resultante da prática ou práticas seguidas pela minoria; nesse caso, eu admito [e apoio pelos meios ao meu dispor!] que aquela se proteja juridicamente da ameaça "blindando", por assim dizer, os costumes na matéria em questão.

Não ocorrendo esse perigo, porém, aquilo perante o que só é possível que estejamos é uma forma abusiva, intelectual, social e politicamente invasiva e opressora de colonialismo---i.e. daquilo que pessoalmente chamo "endocolonialismo social e cultu(r)al objectual" o qual, por sua vez, parte sempre do princípio democraticamente insustentável de que existe uma "pureza ideal", chamemos-lhe "paradigmática" e até "arquetípica" existente para além da vontade e da consciência pessoais, sociais, cultu(r)ais, etc. dos indivíduos e dos grupos ou das comunidades, "pureza" absoluta essa da qual um conjunto de indivíduos [uma... "raça" étnica, religiosa, social, cultu(r)al, politicamente "pura"] se acha [e---pior ainda!---pretende ver reconhecido democrática e juridicamente o respectivo "direito" formal de auto-designar-se e auto-constituir-se] entitade tutelante com poderes para impor às minorias práticas específicas nas matérias e domínios em referência.

O casamento entre aquilo que há muito tempo já, noutros países, se designa por "consenting adults" [a que eu pessoalmente acrescentaria o termo "free": "consenting free adults"] não tem nada que ver com pedofilia onde não há, como qualquer pessoa intelectualmente séria facilmente percebe, por definição, nem "adults", nem "consenting" e muito memos "free": é pura e simplesmente desonesto confundir as coisas neste ponto e, sobretudo, a este ponto.

Do ponto de vista jurídico [jurídico-formal] e, também, aliás, político, atrevo-me, por outro lado, a sublinhar a ideia de que, para qualquer efeito, aquilo que se está a pretender com a reivindicação do seu uso neste caso é achar um modo formal e abstractamente legal de competir com o poder, esse sim, democraticamente, legítimo de os parlamentos livremente eleitos legislarem.
Um meio de tentar evitar que isso aconteça. [1]

Repare-se que a mim, em tese, nem sequer me repugna aceitar que seja possível fazê-lo--ou pretender fazê-lo designamente no caso de leis que demonstravelmente firam direitos básicos de cidadania e/ou lesem o próprio interesse legítimo, individual e colectivo, significativamente manifestado.

Agora, é preciso é que, em qualquer caso, quem o faz tenha plena consciência do que está a fazer---isto, por um lado.

Isto é, que quem o faz perceba exactamente como está a posicionar-se relativamente ao projecto democrático institucional e legalmente expresso como tal, que é como quem diz: ao Estado de direito.

E, por outro lado, é preciso que os fundamentos para o que talvez pudéssemos considerar [eu, seguramente, considero!] uma modalidade alternativa subtil [ao menos "na forma tentada!", como se diz em linguagem jurídica e judicial...] do direito [cívico e político] de desobediência não podem, legitimamente, em caso algum, envolver [e na prática, resultar n] a opressão, directa ou camuflada, dos direitos legítimos [e do próprio Direito] das minorias, tal como atrás os defini, isto é, não envolvendo o reconhecimento desses direitos qualquer obrigatoriedade ou vinculação relativamente a outrem, permanecendo, portanto, sempre actuantes e operantes, na estrita [mas não estreita!...] esfera do privado.

Não se percebe, aliás, muito bem em termos de honestidade intelectual e política a reivindicação de um referendo com base no argumento de que nele vai antecipadamente fazer vencimento uma das alternativas referendadas, por acaso, a nossa própria. [2]

Isso, em termos reais, configura o projecto de ver plebiscitada, neste caso, uma moral que se pretende, desse modo, usando a própria lei contra o direito democrático de os parlamentos decidirem e legislarem ver aplicada [leia-se alargada e universalmente imposta] aquantos, originalmente a recusavam ou simplesmente ignoravam.

Aliás, é preciso dizer muito claramente que a questão aqui nem é exactamente "moral": é cívica---e política.

É de direitos e de Direito cívicos e políticos que se trata.

A tutela religiosa do processo de produção de lei é um absurdo porque é algo completamente ilegítimo no Estado laico.

Deveria a Cidadania pensar, por exemplo, sobre onde este processo de "achatamento" forçado, untensivo e "estratégico", colonial, das culturas levado a cabo pelo modelo de missionação jesuítica, hispânica, portuguesa e espanhola [de "apropriação ou canibalismo cultu(r)al"] nas Américas ou em África conduziu.

A base conceptual permanece rigorosamente a mesma desde Vasco da Gama, Pizarro ou Cortez.

Os usos políticos, também, aliás.

Não seria já tempo de extirpar esta pulsão opressora latente que o "espírito" inquisitorial deixou que residuasse subtilmente entre nós aso fim destes séculos todos, tentando contaminar não apenas os modos políticos modernos, civilizados, de as sociedades se organizarem como o próprio uso intelectual e político da História concebida como uma gaiola epitemológica onde toda a liberdade individual vem, sempre, cíclica e, sobretudo, obrigatoriamente... "aconselhar-se"?...

NOTAS

[1] Não se trata aqui, com efeito, de uma iniciativa autónoma de um grupo de cidadãos mas, muito clara [e, aliás, muito assumidamente] de uma contra-iniciativa que levanta, a meu ver, o problema teórico, filosófico, da legitimidade jurídica intrínseca
Ou seja: está por saber se tentar impedir que um órgão legislativo democrático exerça os seus poderes legais e constitucionais não confugura, em si mesmo, um acto político-juridicamente abusivo e até [ou porque] democraticamente subversivo e, como tal, em si mesmo ferido de nulidade natural.
Se a ordem das coisas tivesse sido a inversa, i.e. se o pedido de referendo tivesse sido anterior à iniciativa de legislar não surgindo, nesse caso, como a tentativa de interferir com a arquitectura político-institucional democrática, admito que o pedido de referendo tivesse podido ser democraticamente inquestionável e, por conseguinte, legítimo.

[2] Tal como eu o vejo, como cidadão, com efeito, requerer o recurso ao referendo não para esclarecer posições cuja natureza honestamente se desconhecem mas na confessada tentativa de forçar a adopção de uma que se acredita ser à partida vencedora parece-me, com toda a franqueza, um modo de desvirtuar o uso política e até eticamente idóneo do referendo; uma batota quie é dever de quantos têm pelo espírito da democracia e mesmo apenas do da "simples" tolerância denunciar.]

[Na imagem: "Visiting A Place Called Hope", colagem sobre papel de Carlos Machado Acabado]

1 comentário:

Ezul disse...

Tenebroso e inquietante, sem dúvida! Pretendem formatar os afectos, a cultura, as opções religiosas, os costumes, o pensamento… Exploram os receios, incentivam a perseguição e a censura. E o pior é que parece que estão a ressurgir em força!