quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

"Sobre O Conceito De Negritude, A Propósito do Caso Haitinano" [Texto e tradução não revistos]


A recente tragédia haitiana---afinal, a ponta sangrenta de um iceberg de abjecção e crónica[s] miséria[s]---empurrou-me, de forma natural e quase irresistível, para uma das babilónicas estantes da minha, também ela em geral caótica, biblioteca pessoal, especificamente para uma secção que intitulei tão lacónica quanto, imagino eu, esclarecedoramente "África"---uma secção onde estão, claro, Paul Nizan ["Aden-Arabie" com um longo prefácio do universal Sartre]; Franz Fanon, Amilcar Cabral, o 'Che', duas obras de que gosto particularmente e que me foram indicadas pelo Rogério de Carvalho, à época meu colega na "Anselmo", em Almada: "La Folie Colonisée" e "Oedipe Africain" assim como, entre inúmeros outros cujos nomes não pararia de citar---Leopold Senghor.

De Senghor, um dos teóricos mais conhecidos mas, também, mais polémicos e não-raro, mais equívocos e discutíveis da "negritude" [enquadrado aqui por um texto de Stanislas Adotevi, de "Négritude et Négrologues", publicado na inigualável colecção 10/18] reproduzo aqui um texto onde são perfeitamente identificáveis---onde são, diria eu, quase materialmente "visíveis"---os efeitos dilacerantes da 'tragédia colonial', pano de fundo do caos social, histórico e político que opera, afinal, como pano de fundo e, ao mesmo tempo, factor exponencialmente multiplicador de tudo quanto seja tragédia natural, como a recentemente ocorrida no Haiti.

A importância deste movimento da negritude foi, sobretudo [tratando-se, embora de um movimento---poderá dizer-se que o foi realmente, na verdadeira acepção da palavra?---que, além de nunca ter possuído propriamente uma base teórica e ideológica estável comum a todos quantos geralmente entendemos como tendo estado a ele associados, nunca terá passado efectivamente do plano restrito das elites, sem verdadeira implantação generalizada e especificamente, popular, pois, entre as massas africanas embora teorizações como a de Fanon sonbre a luta armada tivessem inspirado a acção dos movimentos independentistas em vários países africanos]; a importância concreta deste 'movimento' [que, insisto, mais do que um movimento propriamente dito terá sido, sobretudo, um posicionamento, um ponto de vista especificamente negro sobre a 'condição negra': o despertar de uma ou melhor: de várias 'consciências negras' temporalmente simultâneas sobre a "negritude"] foi, pois, dizia eu, sobretudo simbólica e genericamente estimulante da auto-reflexão negra sobre si própria algo que o colonialismo nunca havia até ao momento permitido que se formasse.

Na verdade, o que com ele surgia era uma intelligentsia africana composta por homens , muitos deles educados na Europa e que representavam, como recorda Adotevi, uma espécie de despertar [volto a dizer, sobretudo simbólico em consequência do grande fosso cultural que, na sociedade africana onde teve lugar, separava as elites das massas] de uma consciência local africana do colonialismo.

Na formação desta radica, afinal, a única esperança consistente para a superação das diversas formas, objectivas e subjectivas, que assume a dependência [neo] colonial, formal ou simplesmente 'objectual', de direito [?] como, de igual modo, de facto.

A tragédia haitina evidencia, precisamente, com dramática e desoladora eloquência, o modo como a ausência consistente desta consciência essencial de si; dessa 'inteligência precisa da realidade' [étnica, cultu(r)al, económica, social, política, civilizacional, etc.] de que o movimento da negritude terá sido o precursor constitui o "caldo de cultura" tragicamente "ideal" para a consolidação da dependência objectiva, concreta; para a dependência de facto, ainda quando, em termos estritamente formais, se é um país independente.

No caso haitinano este dependência irá ao que tudo indica assumir a breve trecho formas para as quais a ajuda norte-americana prestada no contexto do catastrófico terramoto ainda bem recente terá constituido a porta de entrada pretextual azada.

Dos temas básicos do novimento da 'negritude' [particularmente interessantes de rever aqui, tendo em vista a sua essencioal aplicabilidade, mutatis mutandis, em casos como o haitinanoo], regressando um pouco a ele, fala Adotevi nestes termos:


"Primeiro, os temas. Em primeiro lugar, o orgulho pelo facto de se pertencer à tradição da civilização africana, de possuir valores que distinguem o mundo negro do universo dos brancos. Este posicionamento apela, no domínio da produção artística, à libertação dos modelos europeuse e à expressão de uma firme profissão de fé no destino de África.

Assim formulada, a negritude marca o nascimento de uma nova literatura africana.

Mas não há apenas isto. Há também os méritos. Mergulhando, com uma precisão de autênticos investigadores, num domínio que toda a gente sabia ser o de uma premente mistura de humilhação, de opressão e de ódio, os nossos poetas como Césaire e Damas, fizeram chegar até aos olhos da boa consciência europeia a visão das grilhetas da escravatura. As paslavras começaram a chegar. Entrechocando-se, reproduzindo a violenta miséria das colónias".


Sobre esta fala agora Aimé Césaire:


"Au bout du petit matin, on ne sait où dépêcher ses rêves avortés, le fleuve de vie déséspérément torpide dans son lit, sans turgescence ni dépression, incertain de fluer, lamentablement vide la lourde imparcialité de l'ennui, répartissant l'ombre sus toutes choses égales, l'air stagnant sans une trouée d'oiseau clair [...]

Au bout du petit matin, une autre petite maison qui sent tres mauvais dans une rue très étroite, una maison minuscule qui abrite en ses entrailles de bois pourri des dizaines de rats et la turbulence de mes six frères et soueurs, une petite maison cruelle dont l'intransigeance affole nos fins de mois et mon père fantasque grigoté d'une seule misère, je n'ai jammais su laquelle, qu'une imprevisible sorcellerie assouopit en mélancolique tendresse ou exalte en hautes flammes de colère; et ma mère dont les jambes pour notre faim inlassable pédalent, pédalent le jour, de nuit."


[Manhã cedo começa a atormentar-nos o problema do destino a dar aos sonhos gorados---o rio da existência desesperadamente imóvel no seu leito, sem relevos nem depressões, fluindo incerto na pesada neutralidade do tédio, vertendo sombras sobre tudo quanto existe, o ar estagnado completamente nu do voo das aves.

Manhã cedo, uma outra casa, minúscula e rasgada pelo odor das coisas putrescentes, erguendo-se na ruela estreita---casa anã que em cujas entranhas completamente corrompidas pela podridão erram os ratos às dezenas e onde fervilham em turbulência as passadas ágeis e lestas dos meus seis irmãos e irmãs; casa cruel cuja fera intransigência persegue cada fim dos nossos meses; e o meu pai, o meu pai refém indefeso de uma única miséria---nunca soube exactamente qual; o meu pai que, presa de imprevisível sortilégio, hesita entre a melancólica ternura e a chama irreprimível da cólera---e a minha mãe cujas pernas para a nossa fome, infatigável e feroz, pedalam, pedalam, dia e noite...]


[Na imagem: retrato de Aimé Césaire]