Ouvi a intervenção em causa quase por acaso à hora do almoço.
Sobre ela, muito haveria a dizer [com certeza, mais do que aquilo que vou eu próprio aqui fazer] mas vou-me concentrar em dois aspectos que me interessam, de modo particular sendo eu, mesmo hoje, aposentado, o professor que fui, no activo, durante mais de três décadas.
Refiro-me, para começar, à exigência feita por Nuno Crato relativamente à definição por parte de um governo e de um ministério da Educação que não temos e, provavelmente, nunca tivemos em democracia---dos de antes nem vale, por razões óbvias, a pena falar, agora, aqui...---de metas claras para o ensino [em substituição daquele palavroso e invariavelmente errático, bizantino e muitas vezes 'piedoso', quase eclesial, linguajar aparentemente bem intencionado e de eufonia sempre assegurada] envolvendo "competências", "performações", "niveis de performatividade", "escalas performativas" e o que mais por lá se ouve sem, em momento algum, se poder, com sinceridade, dizer---mesmo aqueles que do ensino fazem profissão---o que possa significar realmente a maioria daquelas "coisas" pomposas e estratégica [senão mesmo... prudentemente] vazias...
Ora, eu devo dizer que, como professor, cuja carreira atravessou os derradeiros anos do fascismo e todo o circuito democrático-institucional [que não é exactamente a mesma coisa que "democrático", "democrático" tout court mas enfim...] e teve, por isso, oportunidade de testemunhar pessoal e directamente, os níveis de degradação que o ensino sofreu de então para cá [e demonstravelmente sofreu: a educação demo-institucional consegue ser pior e, a mais de um título, menos satisfatória do que a produzida em ditadura, pela ditadura e, sobretudo, para a ditadura!]; eu, dizia, a partir desse capital de experiência profissional só posso concordar com essa necessidade absolutamente vital de saneamento técnico-científico e/ou, se assim se preferir dizer: de 'operacionalização' estrutural da Educação que é como quem diz [está pressuposto!] a urgência absoluta em entregá-la, em cometê-la---finalmente!---a alguém que tenha uma noção mesmo só minimamente clara e consistente dos usos [não hesito em dizer] civilizacionais da Educação, isto é, da sua utilidade material para um desenvolvimento minimamente sustentável e orgânico [sem esquecer: realmente democrático!] do próprio País além, claro, dos meios técnicos credíveis e consistentes para conferir a tudo isso expressão operativa efectivamente credível.
Diz o professor Crato: é imperativo exigir que, do ano tal se saia a saber concretamente isto e isto, no outro a seguir, aquilo e mais aquilo---e assim por diante.
Volto a dizer: não podia concordar mais com o princípio.
A "Educação" em Portugal tem sido, de facto, consistentemente uma espécie de "escritório de contabilista" camuflado 'doublé de' "território de caça" [e de promoção política] para incompetentes palavrosos e não-raro desesperantemente medíocres, especialistas em camuflar as ideias e os conhecimentos que invariavelmente parecem todos indiferentemente vocacionados para não terem numa teia de verbosidade pegajosa e, em geral, completamente inútil; num autêntico "lamaçal" ou "paúl semântico" "a perder de vista" pelo qual qualquer verdadeira ideia ou potencial iniciativa minimamente inteligente e consistente está à partida condenada a acabar engolida, tragada, naufragada, sem apelo nem agravo.
A maior parte dos Ministérios da Educação que conheci [e conheci todos os que vigoraram em "democracia"---não deixem, já agora, por favor, de atentar nas aspas...] fazem-me sempre---a mim que, além de professor, sou cinéfilo... "por vocação"--- uma sequência notável de um filme norte-americano dirigido por Franklin J. Shaeffner sobre a vida do Gen. Patton onde este, ao chegar à unidade militar cujo comando vai assumir, depara com um caos inimaginável de inépcia e de negligência que o deixam, como militar, profunda e muito naturalmente horrorizado.
A dado passo, depara Patton concretamente com um soldado que, apesar de se encontrar de serviço, dorme tranquilamente sentado numa cadeira.
Com aquele pendor truculento e militarista que o caracterizava e que o filme de Shaeffer [um filme onde colaborou Francis Ford Coppola] espelha e sublinha, Patton pontapeia a cadeira onde o soldado repousa fazendo-o cair---de imediato, se apressando, porém, a pedir-lhe uma espécie de desculpa sarcástica, dizendo qualquer coisa como: "Pronto! Está bem! Vai lá dormir outra vez! Tu, ao menos, sabes o que andas aqui a fazer..."
Essa é mesmo, diria eu, a única diferença entre a [des] organização naquela unidade militar do exército dos E.U.A. nos anos '40 tal como a evoca o filme e todo o edifício da Educação em Portugal nas últimas três décadas: no primeiro destes casos, ainda havia uma pessoa que sabia minimamente o que estava ali a fazer...
Muitas vezes me ocorre esta sequência notável de "Patton" quando deparo com a maior parte das medidas tomadas pelos "sábios pedagogos" que os diversos governos constitucionais tiveram a brilhante ideia de colocar a gerir a Educação em Portugal, desde um exótico e pedagogicamente impensável Sottomaior Cardia, claramente para lá deslocado---ele que ali, de resto, triunfalmente, se apresentou aureolado da reputação de "filósofo" adquirida, sobretudo, a partir da sua colaboração na "Seara Nova"...---com propósitos [a que pouco terá faltado para serem-no confessadamente] políticos, que a imprensa da época---de que possuo, de resto, extenso mostruário---não deixou de documentar; desde esse àqueles que foram sem dúvida os dois piores e mais escandalosamente ineptos ministérios da educação que conheci---e conheci, volto a dizer vários: o de uma tal Maria do Carmo Seabra sobre a qual caíu, como se sabe, entretanto, um piedoso manto de silêncio desde que, em boa hora, a senhora abandonou---imagina-se e espera-se que definitivamente---o cargo e a anterior titular da pasta, Maria de Lurdes Rodrigues a única rival, entre diversos candidatos, a poder legitimamente aspirar com hipótese de sucesso a concorrer com a anterior para esse pouco invejável e pouco dignificante prémio de o pior ministro da educação de sempre, em Portugal, depois do 25 de Abril de '74...
Por tudo isto, volto a dizer, só posso concordar com o princípio enunciado pelo Prof. Crato no sentido de conferir expressão material, concreta, à necessária credibilização metodológica e epistemológica da gestão da Educação em Portugal que é como quem diz à sua modernização num sentido orgânico e profundo que nada tem que ver com modismos formais ou bizarrias de novo rico da política e da Epistemologia.
O único problema---a única reserva, em qualquer caso---é que, em momento algum da intervenção do Prof. Crato, o ouvi discorrer sobre aquilo que falta para garantir que uma educação finalmente credível em termos técnicos e, ao mesmo tempo, na prática, eficaz é também uma educação civilizada, humanista e, por isso [ao menos teórica ou ao menos tendencialmente] "integral", a saber: uma perspectiva teórica e crítica sobre ela própria.
Uma perspectiva teórica e crítica ínsita ao sistema---e no contexto dele dotada de expressão especificamente institucional e curricular.
Eu não digo que ela não a tenha: digo que não o ouvi mencioná-la---e isso preocupa-me porque partilho obviamente das críticas do Prof. Crato ao que tem demonstravelmente sido uma "educação" completamente avulsa, sem conteúdo ou projecto próprio, conduzida aos soluços e de uma forma sempre ancilar e sempre redutoramente instrumental relativamente à sua própria 'economia' vista esta como um referencial absoluto e omnipresente---e, ao mesmo tempo, desligada de qualquer projec
Partilhando delas, preocupa-me não o ter ouvido, por exemplo, falar sobre o papel vedadeiramente essencial da Filosofia na formação de um olhar crítico e, ao mesmo tempo, humanizado e humanista orgânico sobre a realidade ou sobre o papel não menos crucial da Literatura na formação de uma consciência essencialmente estética [que é também ética e cumulativamente crítica] que projecto de educação integral algum pode, sem graves riscos para a "saúde civuilizacional" da sociedade proposta, dispensar.
Foi o indecoroso "analfabetismo cívico" de ministérios como aqueles dois que expressamente citei e que foram, de facto, maus de mais «para serem verdade» [foram maus de mais até para este Portugal dos últimos trinta/trinta e tal anos; este Portugal formalmente democrático cujo conceito de democracia remonta, porém, a uma patética corruptela do espírito do 25 de Abril, infectado pelo virus de um novembrismo peseteiro e venal quev espetrou na sombra pela sua oportunidade para enttrar na História à boleia dass fragilidades de um Abril demasiado jovem para contê-lo]; foi, dizia, o indecoroso analfabetismo cívico de sucessivos ministérios da educação que criou as condições para a emergência daquela situação descrita por José Gil num texto de 2006 da "Visão" [intitulado significativamente "O apagamento da Filosofia?] onde o autor recorda o modo como um saber, repito, absolutamente essencial para a formação equilibrada da consciência intelectual mas, também, cívica e até histórica dos indivíduos foi sendo [eu---que nem sequer sou professor de Filosofia e por isso sou insuspeito de qualquer interesse egoisticamente profissional ou corporativo---não hesitaria em dizer: criminosamente] desvalorizado e objectualmente postergado dos currículos o mesmo sucedendo com o estudo da Literatura que, um dia, um "iluminado" qualquer com inimagináveis poderes de tutela tentou substituir pelo estudo [!] de regulamento de um concurso pimba à época muito falado---o patético "Big Brother" de desgraçada e ainda recente memória...
Este um aspecto---uma reflexão que a intervenção do Prof. Crato que comecei por citar me suscita; um aspecto cuja abordagem eu concluiria, aliás, sintetizando deste modo: é evidente que uma pessoa com um mínimo de esclarecimento e inteligência só pode conceber hoje-por-hoje um modelo de educatividade capaz de conter em si [alguma, pelo menos] aptidão para, por um lado, interagir reconhecível e também organizadamente com o real assim como para, por outro lado, impor a si próprio objectivos claros, definidos e, como é evidente, pontualmente demonstráveis que possam ser continuamente reinvestidos naquela mesma operacionalização contínua do modelo, anteriormente referida.
Isso não está em causa---ou só o pode estar para os "analfabetos da pedagogia e da didáctica", mesmo aqueles---ou sobretudo aqueles!] que conseguem, por uma razão ou por outra, chegar a ministros.
O que eu temo muito concretamente é que aí se esgote o projecto educacional que idealmente há-de um dia substituir a incoerência tutelar e política actual.
E aquilo que eu não ouvi hoje o Prof. Crato dizer parece, de algum modo, justificar aquele receio de princípio.
Outro ponto envolve um famigerado "exame de admissão" à carreira docente.
De facto, sob a roupagem apelativa da razoabilidade e do bom senso, a ideia contém, em si, implicitamente um absurdo ou um conjunto de absurdos e monstruosidades várias dificilmente ignorável.
Eu, por exemplo, não compreendo [e já escrevi isto em diversos artigos dados à estampa n' "O Professor"por exemplo] como pode haver num país todo um ramo específico do ensino superior concebido para formar docentes que só após tê-lo feito vai tentar averiguar se aqueles que acabou de formar... servem, para exercer a profissão para a qual... foram formados!
Até que me provem o contrário---e escrevi-o!---todas as eventuais reprovações num exame desta natureza e com estas características são reprovações do próprio sistema educativo como tal a si mesmo muito mais do que às pessoas que eventualmente nele reprovem.
Faz-me arrepiar a ideia de como é possível haver quem caucione sem a questionar---pelo contrário: encorajando-a na prática!---a despesa em dinheiros públicos e privados; o gasto em tempo útil da vida das pessoas e das sociedades assim como em disfunções de vária ordem com um projecto destes e ainda por cima, chame a isso "saneamento" do modelo ou dos modelos de educatividade em Portugal!
Então, as Escolas [ditas?] Superiores de Educação não conseguem fornecer a si mesmas [e à actividade que é, por estatuto, a sua própria] 'feddback' credível em matéria da mais elementar orientação profissional?
Formam técnicos e... "depois logo se vê"?
Que é, afinal, um técnico?
Que pensam as pessoas em geral sobre o que é um técnico se aqueles que têm o dever de formá-los parecem, afinal, não ter disso uma ideia assim tão clara, definida e operativa como tudo isso?
Quem paga afinal a formação falhada dos técnicos assim falhados?
E quem paga aqueles que não se formaram noutras áreas do saber porque a Universidade não soube perceber a tempo que seriam muito melhores médicos ou engenheiros e arquitectos do que professores?
Não será, de resto, esta ideia de "primeiro, formam-se os técnicos e, depois, logo se vê se servem para... técnicos" já o resultado daquele paradigma teórico de educatividade puramente tecnocrática às qual falta, até institucionalmente, como atrás refiro, uma ideia ou uma filosofia de si própria e do mundo em que [afinal, não] se insere?...
Em que, bem vistas as coisas, afinal, talvez, se não insira?...
Vale seguramente, penso eu, reflectir seriamente em tudo isto.