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sexta-feira, 5 de novembro de 2010

"Aforismos sobre a Natureza Possível do Real---a Partir da Consideração dos Trabalhos de Investigação do Professor António Damásio"


Do meu [muito discutível, concedo!] ponto-de-vista pessoal, a importância dos trabalhos do tipo daquesles a que o professor Damásio associou de forma indisssolúvel o seu nome, prende-se, acima de tudo, com a possibilidade de consolidar experientalmente e converter em hipótese cientificamente credível de saber estável, todo um conjunto de hipóteses ou 'educadas intuições' teóricas, de cariz abstractamente filosófico, que resultam, basicamente, no que que me diz respeito, a mim, pessoalmente, da tentativa de organização mais ou menos apriorística de todo um vasto conjunto de dados de natureza empírica, resultantes da observação cuidada embora, repito, apenas intuitiva [ou "intuicional"] da realidade em redor.

Sempre acreditei, por exemplo, que

a] o processo filobiológico de individuação possui duas características particulares distintivas:

1. é um processo in/essencialmente funcionante inventado pela natureza [de facto, pela matéria de que toda ela é feita e que toda ela, em última instância, é] para gerir a deformação expansional característica da realidade e que

2. se trata, na verdade, "en fin de partie" de uma prova teórica de que a realidade não só se deforma continuamente como se adapta de igual modo continuamente às deformações particulares que a des.integração de que é feita nela vai ininterruptamente introduzindo;

b] a realidade, enquanto efeito, no fundo, apenas aparente ou aparencial resultante da [auto] construção/des-construção da matéria, possui uma lei e/ou uma propriedade básicas, resultantes, por sua vez, por abstractização/discentração natural do modo sequencial/expansional/dissipacional 'puro' como a matéria se "arruma" continuamente no interior de si própria ao dissipar-se---lei ou propriedade essa que é o que, à falta de mais adequada [e já consagrada] qualificação designo pel "a propriedade continuacional básica ínsita da matéria";

c) num certo sentido, toda esta possui, com efeito, uma in/essência e um fundamento que é "esser" continuamente 'par rapport a' si mesma, de modo que deslocando-se para um futuro inteiramente aparencial, situado de modo apenas virtual, como hoje diríamos, à sua frente, roda, a realidade como todo ou como 'objecto', de facto, no sentido exactamente inverso, caminhando, de algum modo teórico provável, [eu, pessoalmente, uso aqui o termo "tético"] para si mesma e para o respectivo passado que é, na ralidade, o seu verdadeiro futuro;

d] a desmultiplicação individuacional resulta precisamente deste esforço global aparentemente paradóxico da matéria para manter-se íntegra ao longo do continuum da sua própria des-integração, tentando sempre re-fazer-se ou re-começar em cada unidade significada funcionante [em cada "anisotropia"] que vai continuamente a partir de si gerando;

e] A causalidade consiste na mudança de estado, isto é, na passagem ao estado gasoso, possível pela «emergência funcionante» da "consciência" [a começar pelas formas básicas de consciência molecular primária] da própria deslocação física do real a partir do momento em que se torna continuacionalmente especular precisamente na "cionsciência" e começa, não apenas a gerar ou a prododuzir imagens secundárias de si mas a usá-las angular ou verticialmente para "esser";

f] com toda a "máquina do real" em movimento contraditório [formado de um futuro verdadeiro suituado atrás de si e de um passado de descarga em frente---é assim que eu vejo, de facto, o que cvhamamos abstractamente 'o Tempo']; com toda a "máquina do real", dizia recomeçando continuamente ou reintegrando-se contínua [ainda que cada vez mais remota ou mais discentralmente] em si mesma, as partículas funcionantes autónomas geradas, à medida que, por efeito da própria dissipação global da realidade, se afastam do centro determinacional intrinseca ou essencialmente físico, repito, desta são forçadas a adquirir "espessura funcionante autónoma" e, a partr de um dado "momento continuacional teórico, dotam-se a si mesmas de uma "consciência", como disse;

g] Como também disse, as formas originais desta possuem natureza atómica ou molecular e só, posteriormente, se des-integram elas próprias numa condição ou estado dual integrando uma percepção ou consciência especular de si, como sucede nas formas ditas superiores;

h] a "consciência" possui, pois, uma origem e um fundamento, uma "explicação", basicamente funcionantes correspondentes à secundarização estatibilizada dos modos de "acompanhar" ou de "seguir o real", alocados às unidades, i.e. aos "grãos ônticos" ou "granulicidade ôntica secundária" de que aquele, a dado passo, passa a compor-se: pelos quais ou pela qual passa ulteriormente a ser constituido;

i] a minha hipótese pessoal, envolvendo a matéria de estudo do professor Damásio, concernendo, por seu turno, a relação estável e funcionante [primariamente funcional] entre "razão" e "afeccionalidade" é que esta [o que chamamos as emoções e os sentimentos] surgem, neste 'quadro funcionante' global ligado à própria forma básica, ínsita, do real, como um cimento de individualicidade, por um lado e um estímulo significado à funcionalicidade contínua da matéria induividuada, por outro---todo um conjunto organizado ou organizável de causas imediatas que acabam por tornar a «identidade» uma exigência natural e, portanto, uma inevitabilidade decorrencial ela mesma natural, previsível, de todo o processo;

j] é neste quadro que as emoções e os sentimentos [que, como ainda há pouco lia, num artigo de divulgação levada a cabo por Frenna Kiennen, em Harvard não por acaso possuem expressão genética e anatómica-funcional demostrável---lá está a importância dos tais estudos envolvendo a quantificação e a qualificação laboratorial destas hipóteses a que inevitavelmente associamos o nome do professor Damásio!]; é neste quadro, dizia, que emocionalidade e afeccionalidade começam a operar e a "justificar funcionantemente" a sua própria "invenção" pela matéria] conservando em geral íntegra a gravidade egótica através do expediente hábil de concentrá-la toda num mesmo 'lugar infísico' que é, então, a «identidade»;

k] a identidade supõe [e usa!] formas abstractas e secundárias de Tempo que ela opõe ao não-tempo real, criando, assim, no conjunto composto pela realidade e pelas suas imagens teorizadas ou abstractizadas, uma 'perturbação estável' tópica, de natureza in/essencialmente contraditória, que é 'pensar;

l] que é o pensar e que é, na sequência, deste o conhecer que, devo dizer, prefiro, por imperativo de rigor terminológico e conceptivo designar pelo neologismo "cognicionar";

m] para mim, uma prova teórica de que o geral conflui para io particular e que ambos se cruzam não só estável como, sobretudo, significadamente nas individuações e nos indivíduos é-nos, agora, dado pela referida investigadora de Harvard Fenna Kriennen quando, segundo a notícia que tive ocasião de ler, conclui que o cérebro humano produz sinais de natureza globalmente similar [a notícia não é, por razões óbvias ligadas à sua natureza jornalística, muito clara] quando "pensamos", diz o jornal, nos amigos e em nós pr+oprios, 'par rapport' aos que produzimios quando o fazemos relativamente a estranhos;

n] para mim, com efeito, o problema de virtudes" humanas como a solidarieade ou até a mizade nunca se pôs verdadeiramente em termos da sua génese possível.

o] Trata-se, a meu ver, em tese, de desfuncionações de informação originalmente funcional ligada à sobrevivência que perdeu centro ou que se perdeu do centro [daí o neologismo que frequentemente utilizo de "discentração"] mas que possui, através desse processo de seriar o real segundo espécies organizadas e autonomamente genetizadas, o interesse específico, do ponto de vista do conhecimento que pretendamos ter de nós próprios como expressão significada da matéria, de apontar para esse ponto teórico de cruzamento onde o real se prossegue individuando-se projerctando-se sobre os fragmentos funcionantes em que se des-integra e em tese re-integra ou re-nucleia;

p] de facto, do ponto de vista da própria estrutura causante primária que lhe subjaz, a "solidariedade" [como a "amizade", por exemplo---e o facto pode agora ser "visto" e "medido" em laboratório] são produzidos pela natureza como extensões ou "extensionalidades funcionantes originais" do indivíduo---do Eu, a partir de um dado 'instante composicional' de todo o processo---sendo apenas a posteriori des/percebidos pela "consciência" que, como se sabe recomeça em si o real introduzindo na sua recomposição contínua imagens puramente teóricas deste e até de si mesma, como entidades autónomas que, na origem dinâmica, não são;

o] na realidade, não há solidariedade e o facto de nos parecer, por vezes, vê-la diz-nos muito sobre o modo como a "consciência" auto-representa o real, retirando-o do seu contexto próprio e reprejectando-o em seguida, primeiro funcional, depois, funcionante e, por fim, significadamente segundo um tempo ou uma temporicidade próprios sobre ele ou nele;

p] sem o combustível da afeccionalidade [é a minha tese, pelo menos] a individuação não se autonomizaria o suficiente do estado ou estádio anteriores do processo;

q] na realidade, ela---o processo que à sua emergência conduz---vem impelido de trás [como atrás digo: do futuro natural da realidade ou, pelo menos, da matéria que a substancia] pela própria dissipacionalidade da matéria que é o único e verdadeiro fundamento do real.

terça-feira, 13 de julho de 2010

"Sobre a Ideia de Cristianismo"


Começo por aqui: assumidamente, não sou cristão.

Não sou "Cristão".

Ponto final.

E, no entanto, sou-o [terei começado mais ou menos tardia ou mais ou menos ulteriormente a ser cristão] quando, algures no dealbar de uma natural 'idade da razão' estritamente pessoal e autónoma, pude finalmente começar a sê-lo.
Eu---não os outros em mim.

Eu---não uma construção im/puramente ficcional e absolutamente estática que pretendeu utilizar-me e à minha legítima autonomia intelectual, crítica, cosmovisional para reafirmar-se na História, numa História que não era seguramente a minha, desde logo em consequência desse ponto de partida criticional, invertido, que adoptara à partida para existir ou seguir existindo.
Porque há 'Cristianismo' e 'cristianismo'.

O "meu" é decididamente o segundo, o cristianismo com minúscula, o cristianismo como "hipótese de existencialicidade objectual e subjectual", isto é, como método de abordagem crítica ou criticional ampla do real, como "grande para-dialéctica ou epi-dialéctica subjeccional" incondicionalmente aberta à Objectualidade i.e. ao Tempo, ao exterior da consciência e nunca como mero "sistema", entendidocomo uma âncora impossível dessa e para essa mesma Objectualidade concebida, por sua vez, sempre no quadro de um projecto absurdamente distópico de aprisionar o Tempo por inteiro na "consciência", diluindo-o aberrantemente nela e tornando-o de algum modo invisível', «criticionalmente invisível» nela.

Tornando-a a ela própria invisível em si mesma.

A velha 'questão' da «historicidade» [ou da «historialidade intrínseca»] do cristinanismo i.e. da sua, em meu entender, desejável e potencialmente fecunda «crítica imanência» vs. a sua, por seu turno, «criticionalmente estática e inerte, completamente imóvel» "transcendência" não faz para mim o mínimo sentido: todo o cristianismo é idealmente «imanente».

Mesmo para os «transcendentalistas" de origem---ou "de escola"---deveria, no limite real, sê-lo, no sentido exacto em que a "transcendência" devesse estar obrigatoriamente vinculada, como 'pressuposto de escola' à necessidade angular de passar forçodamente a «imanência» a fim de ganhar secundária porque para-dialecticamente sentido, ganhando antes «dimensão» ou «mensurabilidade humana» [e, sobretudo, humanista!] como pressuposto incontornável de, chamemos-lhe: "existenciação ultimativa---e efectiva".

Nesse sentido epi-dialéctico [dialectizante] móvel e estruturalmente [estruturacionalmene] aberto, a tradição cristã 'virou em mim' cristianismo.

A minha consciência ou inteligência do real ancorou [angulou, verticiou, mesmo] no património Cristão pré-existente daí, partindo daí, então, "à Voltaire" mas também "à Sartre", para uma leitura organizada---possivelmente orgânica, também---da própria História e/ou, num plano mais abstracto, da Realidade onde aquela se 'fixa' e de que ela é "objectuação especular ou especulada", "especulacional", específica e particular [ou «particularizadora»/«particularizante»].

O Cristianismo é uma linguagem, uma forma útil de «consciencialidade» e de «conscienciação inteiramente móvel do real»: o Cristianismo "puro" ou "Cristianismo absoluto" dos "teólogos"; o Cristianismo como modo de fechar hermeticamente a História à crítica e à própria consciência---ou à conscienciação de si e... do "si"---é uma verdadeira "aberração criticional", um projecto de des-historicização assistémica das sociedades e das civilizações à qual devemos alguns dos inteleccional, 'civilizacional' e humanisticamente piores momentos da própria Humanidade.

O 'Cristianismo' em si, ninguém verdadeiramente o duvidará, configura um universo ficcional similar a tantos outros que as comunidades humanas constroem a partir das pulsões filogénicas funcionais ou funcionantes de que a "consciência" vem naturalmente provida.

Conhecer---"cognoscer", como prefiro dizer---é uma «componente funcional ínsita de vitação», como digo numa improvisada semântica pessoal: "cognoscer" é seriar funcionalmente as impressões sensíveis pondo-as ao serviço dessa mesma mesma «vitação» necessária que informa todos os "seres" ou "esseres" existentes.

Se há "lei" estável do esser ou do que chamo "a condição essente" básica ou primária da matéria, é... o próprio esser transformado numa qualquer consciência estável ou estabilizada [primária, secundária, etc.] de si.

Quando consideramos teoricamente a génese filobiogénica do "esser" somos forçados a perceber como "ser é um dever ínsito estrutural/estruturante da matéria".

Todo o "ser" está organizado, de forma estrututural e estruturadamente natural, para ser.

Todas as formas de "solidariedade aparente" ou "aparencial" ligadas secundariamente à consciência do ser radicam nesse princípio absolutamente fundamental, nuclear, atómico até, que é, no limite, indissociável do próprio "esser" como tal e também como expressão particular e própria, necessária ou "necessitária", funcional/funcionante de si.

Aquilo que uma linguagem [uma sintaxe mais do que objectualmente um léxico] um «idioma criticional» como o cristianismo fornecem é a possibilidade de fazer comunicar entre si e consigo um conjunto de "formulações utilizantes" naturais ou instintuais, "ecológicas" ou "ecoformes", da consciência transformando-as num código comum que confere, por sua vez, fundamento [«substanciação fundamentante» ou «fundamentacional»] às diversas formas secundárias, terciárias e por aí fora de "societação biomórfica".

Pretender utilizar um idioma como um absurdo conhecimento em si tem muito pouco ou nada a ver com «Conhecimento».

É, porém, exactamente o que faz o "Cristianismo dos teólogos" que não utiliza o cristianismo como um modo de realizar histórica ou objectualmente, o esser mas, pelo contrário, de tentar de forma inteiramente disfuncional e absurda projectar a ficcção de uma super-realidade constante e intemporal sobre a própria realidade, impedindo que formas verdadeiramente operativas de realizar a ecologia do ser e da própria possibilidade concreta de transcendendência [de transcender ou "transcendentalizar"] ocorram naturalmente na História.
[Na imagem: Salvador Dali, "A Última Ceia"]

sábado, 1 de maio de 2010

"Walter Benjamin"


Ligam-me a ele, desde logo, uma passagem comum [embora dramaticamente diferente, embora a minha própria passagem por lá estivesse longe de ter sido marcada pela ausência de pathos e de drama...] por Port Bou, um lugar que essa passagem tornou, há muito, para mim, um lugar sob muitos aspectos referencial e até de algum culto.

Mais do isso, porém, liga-me a Benjamin uma certa visão in-fixa e deliberadamente descentral da realidade, uma visão in/essencialmente afuncional onde se situa, a meu ver, a chave da futura revolução incomparavelmente mais humanista do que socialista.

Ou, mais exactamente, talvez: antes humanista e, só depois, socialista.

O "flâneur" benjaminiano contém, a meu ver, precisamente as chaves mesmas do humanismo futuro.

sábado, 16 de janeiro de 2010

"Sobre alguns aspectos da génese do conceito 'teórico' de 'humanidade em situação'---algumas reflexões pessoais" [texto em construção]


Em conversa muito recente ainda com as Amigas "Ezul" e "Ava", voltou a ser abordada aqui aquela que é, por razões óbvias, a grande questão de momento; aquela a que, a mim pessoalmente e, com certeza, a inúmeras outras pessoas por esse mundo fora, tem [no meu caso, quase obsessivamente!...] ocupado o espírito nestes últimos dias: o terramoto no Haiti.

De um modo ou de outro, todos deplorávamos o modo como está organizada a solidariedade para com as vítimas que, agora são haitinanos como ainda não há muito eram timores e antes outra coisa qualquer, igualmente pobre, cronicamente sofredora e, inevitavelmente---de forma, regular e, num certo sentido, até 'natural'---abandonada por todos.

Tive, então, ocasião de qualificar---senão mesmo, de algum modo, de [pré] definir já---muito sumariamente, embora, esse modo [que é típico e que é, sobretudo, de um modo mais amplo e mais estável: tópico]; esse modo descontínuo, casuístico, circunstancial e in/essencialmente inorgânico; esse modo generoso, não se duvida mas também pontual, circunscrito no tempo e sempre excessivamente direcccionado e datado de partilhar da dor dos outros ou de manifestar por eles solidariedade; tive, então, dizia, ocasião de qualificá-lo como "uma coisa cultural".

Generosa, repito mas frágil e, no fundo, sempre fugaz, sempre efémera---e sempre, por isso, também intrinsecamente insubstantiva.

Cultural, disse.

É verdade---e cultual, também.

De algum modo, até sobretudo cultual.

Estou mesmo firmemente persuadido de que, mais uma vez neste 'caso', o cultual precede---e determina!---a forma abstracta particular e específica do cultural.

É, com efeito, a meu ver, impossível dissociar o nosso modo, insisto: cultu(r)al, em meu entender, caracteristicamente inorgânico de ver o exercício concreto da humanidade de uma concepção ou conjunto de concepções afins, muito próprias, do mundo que possuem todas elas a característica comum de colocarem o humanismo sempre na dependência de uma abordagem anterior determinante de sinal topicamente teocêntrico da realidade---abordagem essa que, sem grande dificuldade, deriva, de forma reconhecivelmente cíclica, pendular, historicamente demonstrável, para a subalternização persistente da acção---da importância da intervenção---humana, individual e colectiva, no processo amplo de transformação histórica da realidade e, de um modo muito particular, mais lato ainda, dessa mesma acção humana como geradora directa de sempre mais realidade, digamos assim.

Da acção humana como definidora [dentro dos limites do objectiva ou do objectualmente possível, como é evidente] da própria forma ou formas ulteriores estáveis da realidade.

Da própria forma ou formas a tomar por esta.

Como determinante nuclear do próprio curso particular da História, se assim preferirmos, de um modo mais concreto e mais específico---mais próximo e mais político, num certo sentido profundo e também nobre---dizer.

A minha ideia ou a minha... "tese" pessoais envolvendo uma "tanatopia" ou "pensar tanatópico" nacional como grande "motivo fundador" de uma certa identicidade colectiva nacional, radica, aliás, especificamente aqui, na existência estável, persistente, em determinados níveis da [sub?] consciência nacional, de uma pulsão latencial, com frequência, de um modo ou de outro, obsidentemente teocêntrica [e, depois, naturalmente teocrática] sempre latente "em potência", como diria S. Tomás de Aquino, naquele acervo de 'concepções fundadoras' de que atrás falo---pulsão essa que, volto a dizer [mesmo correndo o riscio de me repetir] tende ciclicamente a vir '[re] contaminar', de forma mais ou menos cíclica, os nossos paradigmas cultu(r)ais estáveis, concretos, de relacionamento com o conjunto do real e, de um modo muito particular e específico, com os outros seres humanos.

Com a "outridade" ou "alteridade", como tal.

Com "o Outro".

A nossa "ideia de História" [usando aqui, num sentido quase 'categorial', chamemos-lhe assim, uma semântica e uma conceituação que Collingwood consagrou num título célebre] passa inevitavelmente por colocar o sentido da própria História fora dela e para além dela---mas não só: passa, de igual modo, central, determinantemente, por reportar sempre a própria História "com tudo quanto ela tem---ou pode ter---dentro" a um sentido final; a um horizonte último, muito platónica ou muito neo-platonicamente situado "a toda a volta dela"; solidamente instalado nos "instantes teóricos" [numa teoria ou sistema pré-definidos desses "instantes"] que a antecederam; um horizonte vocacionado para usar os factos, as circunstâncias concretas do real, como um "espelho ôntico" de onde aquela "imagética arquetipal" é continuamente reprojectada para um [em última análise, por isso, falso, puramente aparencial] "futuro" rigorosamente simétrico ou simetriforme do 'passado ideal' que a "História" está fatalmente condenada a "demonstrar"---ou, em alternativa, a "morrer culpada" por não tê-lo feito...

Em qualquer caso, para esta visão do real, a História verdadeiramente "não existe".

Isto é, não existe realmente.

Configura sempre, pelo contrário, uma mera abstracção---ou, ao invés disso, se assim preferirmos dizer: uma simples concretação des/estruturalmente secundária, ancilar, da sua própria forma ideal---e, nesse sentido básico, primário---a tal inexistência-em-si de que acabei de falar.

Parece, pois, óbvio que, neste quadro, o papel destinado à acção humana; à intervenção humana no "shaping" concreto do real; na sua transformação e condução está, ele próprio, antecipadamente condenado à irrelevância, à insubstancialidade ou insubstantividade objectivas---e naturalmente 'fadado' para todas elas.

A própria acção humana [enquanto "categoria ontológica e/ou teórica" do real, chamemos-lhe assim] é, na sua in/essência, um mero "eco circunstanciante" do tal 'ideal que precede a História' [a História, não existindo, precede-se, de facto, sempre a si própria; o futuro, como disse, não existe: na ir/realidade, "já aconteceu" todo "antes" e está apenas a contemplar-se a si próprio no 'objecto especular' completamente inerte e irrelevante-em si-que é História e/ou que são são os "factos"]---sendo que o 'ideal', a "primeira e pura História" usa, sempre---nunca será de mais insistir neste ponto!---a condição humana para demonstrar-se a si mesmo, "atravessando", por assim dizer, a própria [in] aptidão natural e estrutural desta para projectar a sua própria vontade [e para projectar o seu próprio desejo, também] sobre os segmentos ou sequências da [ir] realidade circundante com os quais lhe cabe especificadamente coexistir, por assim dizer.

Ora, é este modo a que chamei 'tópico' de organizar teórica [ou... teoreticamente] a realidade [sempre de um modo ou de outro, estável e latentemente desumanizador, insisto] que se reflecte---de forma, aliás, em meu entender, demonstrável---no nosso modo igualmente tópico, cultu(r)al, de exercer circunstancialmente a 'humanidade': como algo que, de facto, em última instância, não nos "pertence" enquanto efeito natural do nosso próprio arbítrio e vontade mas, exactamente ao contrário, como algo que nos é ditado pelo próprio ideal manifestando-se, de forma [chamemos-lhe:] 'imanente', nas circunstâncias e chamando-nos, desse modo---sempre de um modo ou de outro, docilmente---àquele modo de "virtualidade volicional" ou "volitiva", no fundo "pura", que imaginamos ser a "acção".

O que eu digo para concluir é que, enquanto não percebermos todos que a História, num certo sentido muito concreto e preciso, ou é feita por nós ou está condenada a fazer-se a si mesma com todas as indesejáveis e disfuncionais [indesejáveis porque disfuncionais] decorrências desse processo de "auto-gestão" em que estamos sempre a deixá-la cair; o que eu digo para concluir, então, é que, nesse caso, a "única História" e a única humanidade [a única "Humanicidade"] que nos restam são aquelas que as coisas e as circunstâncias nos impuserem e que nunca serão, por isso, nem uma nem outra, real e verdadeiramente nossas...


As nossas.


[Na imagem: composição geométrica de Piet Mondrian]

sábado, 9 de janeiro de 2010

"Reflexões sobre a «Natureza Teórica da Propriedade»..." [Texto em construção]

Embora, para alguns a diferença entre a Esquerda e a Direita tenha [magicamente?] deixado de existir, a verdade é que poucas vezes como hoje ela terá sido tão relevante [e, até, a seu modo]clara mas, sobretudo, tão necessária.
As diferenças começam, aliás, logo aí: já estamos claramente no domínio conceptual---numa espécie de "círculo cosmovisional" demonstravelmente de Direita quando acreditamos que entre ela e uma suposta "Esquerda" que só ela é capaz de reconhecer deixou de haver quaisquer barreiras dignas de relevo.

A verdade é que, volto a dizer, a diferença existe e constitui hoje tarefa histórica central da Esquerda---da verdadeira, não dessa pseudo-esquerda 'bernsteiniana e funcional' onde se integram os diversos "pê-ésses" de hoje pelo mundo fora cuja missão histórica é, exactamente ao contrário da verdadeira Esquerda; da Esquerda genuína onde quer que ela esteja já ou venha, um dia, a estar, "argumentar " e "justificar" politicamente um status quo económico [geo-económico] e financeiro [geo-financeiro] que ele tem por "dever" teórico, chamemos-lhe assim, apresentar à História tão completamente "limpo de máculas" de ordem económica, social e política quanto possível ou, na pior das hipóteses, como o tal sistema político "pior de todos tirando todos os restantes" de que falava Churchill...

Aquilo a que chamo, "o formato político último e natural da História", em qualquer caso.

Ora, a verdade é que tudo isso não passa, na realidade, de ficção.

O papel histórico e político da Democracia não é, em caso algum, o de "aparafusar" um modelo ou modo de produção à História mas, precisamente ao invés, criar as condições básicas para que seja a História a encontrar o modelo ou o modo de produção que mais convém às pessoas que a "habitam", se assim posso dizer.

O papel da Democracia, nunca será de mais repeti-lo, não é o de "fechar" a História e entregá-la inteirinha, assim artificialmente "fechada", nas mãos de um modelo de exploração económica da realidade mas, pelo contrário, o de abrir incondicionalmente essa mesma História no sentido de tornar primária e autonomamente acessível às pessoas que a "usam" e, como disse, "habitam" a ciência necessária para mudá-la---os mecanismos sociais, políticos, mentais, etc. essenciais da mudança histórica onde e quando ela se revele em si mesma necessária.

Esse, um primeiro equívoco---e uma primeira diferença: a Direita quer gerir o que há sem sair do que há; a Esquerda, pelo contrário, admite todas as hipóteses---todas as formas possíveis de História desde que respeitando princípios básicos de humanidade e dignidade pessoal e política---achando, todavia, sempre que a História não é 'propriedade da Economia', i.e. que a Economia não é a proprietária legítima da História mas sim as pessoas, os indivíduos e as suas comunidades humanas, as sociedades por eles formadas.

Outro ponto de separação e até---por que não dizê-lo?---de ruptura entre a Esquerda e a Direita prende-se com a questão-chave da propriedade.

Na natureza, a propriedade é algo de funcionalmente infixo e gerador ou opossibilitador de vida.

A propriedade animal coincide, em muitos casos, rigorosamente com o território e obviamente com aquilo que ele contém em matéria de produtos necessários à sobrevivência.

Todas as funções animais secundárias [e, mesmo, em meu entender, "terciárias"...] têm, em tese, o seu fundamento último e real nessa funcionalidade nuclear da matéria de onde deriva, aliás, nos animais superiores, muito [a base determinante, seguramente!] ]do que chamamos "consciência", "identidade", "inteligência" e até as diversas formas de "moral".

O que eu quero dizer é que, entre os animais vivendo em liberdade, a propriedade dos territórios de caça nunca é "teoricamente separável" de uma função básica de possibilitação da vida que torna, por sua vez, não apenas estáveis como, sobretudo, inextricáveis---e 'lógicos', necessários---os laços lógicos que ligam essa mesma propriedade e a Vida.

A força animal é o elemento que "justifica" no concreto a "propriedade da propriedade sendo essa força ela mesma uma função que não pode dissociar-se das ideias básicas, essenciais mas também 'essenciantes' de Vida e de defesa da vida.

Há, em meu entender, uma espécie de "propriedade continuacional nuclear e básica da matéria", de toda a matéria ["propriedade" essa entendível como uma mutação do próprio movimento de expansão e dissipação básicos do real tal como decorre do próprio modo como esse mesmo real e a matéria que o compõe se originaram e] que vai "mutando" continuamente e dando, desse modo, origem à maior parte do que existe [a causalidade, por exemplo, mais não é, tal como a entendo, do que uma mutação muito secundarizada ou terciarizada daquele movimento puramente físico de expansão da matéria impedida pela própria estrutura física, pela dinâmica, da matéria como tal de organizar-se autonomamente noutra direcção e noutro sentido daí resultando a aparência de "atributo" que é a causalidade].

Tal como teoricamente a entendo, a matéria está, diria eu, "obrigada" pela sua própria natureza e estrutura, a continuar o que na origem era apenas um movimento expansional e vai, em seguida, integrando continuamente e conferindo estrutura material própria adequada a essa "ciência nuclear" que foi buscar ao próprio movimento como tal nos sucessivos modos ulterior e continuamente "mutados" como protagoniza pontualmente, ela mesma, na forma de "espécie", a realidade.

Aquilo a que chamamos, por exemplo, nos animais, o 'instinto de sobrevivência' mais não é, em tese, do que precisamente uma mutação secundária do movimento integrado à própria destrutura atómica do ser e adaptado às condições específicas do universo em que se desloca o ser.

O que eu pretendo dizer com esta tentativa de contextuar objectualmente a realidade---aspectos específicos que dela que, enquanto espécie, herdámos como a "propriedade", é que, na natureza, essa mesma propriedade e a possibilitação pontual de vida são, tal como atrás dizia, componentes inter-indissociáveis e, a seu modo, lógicas, filosófica e/ou teoreticamente necessárias, no contexto do que chamo "os paradigmas vitacionais" específicos e concretos.

É, ao passar, dessas formas ou "paradigmas vitacionais" pré-conscienciais para o domínio terciário da "cultura" que o "erro" no que respeita à representação objectiva da componente "propriedade" tem lugar.

Na realidade, nesta passagem, ela, propriedade, perde a sua natureza possibilitadora intrínseca original; perde a capacidade para adaptar-se formal e pontualmente à função e passa a determinar a partir de uma forma já completamente extra-contextual e, por isso, já objectivamente disfuncional de si mesma os "paradigmas vitacionais" subsequentes.

Naquela passagem, ela perde a natureza 'funcional', o essencial da sua "lógica" e o carácter infixo de necessidade que lhe estava originalmente associados; perde, numa palavra, a sua natureza ideal de "variável nuclear de vitação"---o seu fundamento "de episteme"---e passa a constituir supra-funcionalmente uma "constante objectual pura de vitação" em si desenvolvendo no processo uma espécie de "gravidade epistemológica" própria e específica que atrai a si o conjunto da realidade, vinculando todas as formas ulteriores de "volução" desta a determinantes que se ligam a si como objecto mas já não a si como função.

É a percepção deste "erro" e da lógica que, na natureza, preside à definição concreta de propriedade que subjaz ao projecto de Esquerda de "reoperativizar" integralmente a propriedade, devolvendo-a à sua condição natural original de "variável cde vitação" queb perdeu ao fixar-se num modelo disfuncional artificialmente subtraído à lógica global de funcionamento da realidade e da Vida.

É esse fundamento teorético natural e lógico ['naturalmente lógico'] que preside à ideia de Esquerda de que a "propriedade"; as formas existentes de propriedade podem [de facto, devem!] legitimamente ser redistribuídas sempre que se encontrar em crise a sua vocação natural para possibilitar global e funcionalmente a Vida, como sucede, de forma, aliás, muito aguda, hoje quando o Conhecimento necessário para transformar objectivamente a realidade se tornou já, ele mesmo, numa propriedade e num proto-capital usado para gerar mais capital e não a vida como tal.

Aquilo que a Esquerda faz ao colocar-se nesta perspectiva precisa de "mobilicização estrutural" e/ou "reoperativização integral"---de "refuncionalização objeciva"---da propriedade é desmodelar aquilo a que poderíamos chamar os próprios "paradigmas naturais de proprietação", entregando-os à "cultura" e às "culturas" com a sua estrutura lógica e funcional integralmente restaurada, através da substituição, chamemos-lhe: angular ou verticial do factor "força física" [que constituía, num dado passo, a componente operativa básica no contexto da conservação da proprietação como entidade 'lógica' no contexto de todo o processo de vitação] pela componente "inteligência" que é suposto constituir um aperfeiçoamento estrutural e estruturante daquela.

Esta questão da "recientificização cuidada da Política"; este problema da"filosofia da proprietação" e da sua consideração num quadro amplo que visa "recolá-la" pontualmente à própria estrutura específica---física, material---do real é algo que apenas a Esquerda faz---algo que apenas ela pode fazer na medida em que apenas ela admite, como comecei precisamente por dizer, que a realidade é móvel e, em mais de um sentido, completamente aberta; que ela, não sendo algo que propriamente "evolui" num sentido horizontalista e finalista, é, com certeza, alguma 'coisa' que "volui" em resultado do movimento que lhe foi originalmente imprimido pelo próprio modo como se originou e que faz com que, muito mais do que dirigir-se para um futuro alvo qualquer situado diante de si e daí retirar qualquer fundamento epistemologicamente fiável---e demonstrável---ela tem todo o essencial do seu próprio 'futuro' concentrado num ponto teórico preciso do passado que a explica e, em última [mas real] instância, determina em todas as formas e circunstâncias que vai continuamente assumindo; que ela nesse sentido, é "orgânica" e está, enquanto, no fundo, único fundamento determinante ou determinacional de si própria, sempre toda ela presente naquelas sucessivas formas ou mutações que vai tendo de assumir a fim de se ajustar ao seu próprio movimento e às formas materiais objectivas que ele determina que ela vá possuindo; que ela, porque naquele sentido preciso atrás referido, possui, como disse, uma espécie de organicidade global própria continuamente ajustável a si mesma, possui "leis" próprias de funcionamento que não são gratuitas mas operam, ao invés, num quadro operativo muito amplo que transcende a mera "política" antes remontando [esta é que é a questão chave, o pressuposto epistemeoforme básico de uma Esquerda verdadeira, em meu entender, pelo menos!] à própria essência material última da realidade situada toda ela, volto a dizer, naquele ponto teórico---e suimultaneamente fundamento objectual da realidade---situado no passado desta.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

"Sociedades orgânicas e sociedades pretextuais: uma reflexão pessoal sobre a portugalidade contemporânea" [T.i.P., text in Progress]


Se me perguntassem qual é, em meu entender, a característica dominante da "era civilizacional" que atravessamos, diria provavelmente que é o facto de nos termos, como país, transformado numa sociedade topicamente "descentral" e inorgânica a partir da qual deixou de ser objectivamente possível produzir uma História única comum a todos.

Sempre pensei, com efeito, que uma sociedade estruturalmente desigual como sempre foi a portuguesa; uma sociedade caracterizada por uma profunda desigualdade económica, social e política e gerando, naturalmente, doses maciças de agnosia entre as camadas ditas "inferiores" seria naturalmente (seria fatalmente!) incapaz de, a prazo, gerar não apenas uma História verdadeiramente orgânica (reconhecivelmente orgânica) como, sobretudo, a partir daí, de dar origem ou, no mínimo, integrar harmonicamente paradigmas de "civilizacionalidade" reconhecíveis e reconhecidos por todos.

É verdade que o fascismo garantiu, entre nós, níveis de organicidade aparente que (passe a redundância!) pareceram manter-se estáveis e operantes durante várias décadas.

A verdade, porém, é que o fascismo caíu e, quando ele caíu, pôs a descoberto um país 'objectiva e subjectivamente inexistente'---uma sociedade incapaz de agregar-se num corpo e, sobretudo, numa ideia desejavelmente consistentes e únicas.

Naturalmente únicas.

Espontaneamente consistentes.

Orgânicas ou a caminho de uma possível organicidade, portanto.

O fascismo, porém, como disse, logrou durante várias décadas iludir a impossibilidade de organicidade que nasce da desigualdade tornada hábito civilizacional e político.

Gerou algo que é essencial à organicidade consistente das sociedades: uma classe "sacerdotal" (professores, sacerdotes strictu sensu, as "elites" em geral incluindo por absurdo as que se opunham ao 'regime', etc.) que foi, por seu turno, capaz de recolher (algumas, por absurdo ou por reaccção, repito) um conjunto de características de natureza mais ou menos cultu(r)al comum e reprojectá-las (quase sempre à força e pela força, é verdade) sobre a "sua" própria sociedade, assegurando-lhe, desse modo, alguma razoável durabilidade e alguma considerável (se não consistência pelo menos) objectiva persistência.

Hoje é impossível que, entre nós, se gere uma classe sacerdotal do mesmo tipo e com as mesmas aptidões materiais para assegurar a sobrevivência de uma sociedade mental a partir da qual fosse possível criar o Portugal moderno que, é preciso reconhecê-lo corajosamente, permance por existir.

Independentemente dos valores (sociais, económicos, políticos, etc.) com que a preencheu o fascismo esteve até dado momento da sua própria História associado a uma "identicidade" que foi, depois, capaz de negociar socialmente com o conjunto da sociedade portuguesa.

É claro que todos quantos dispusemos do privilégio altamente questionável de ter vivido sob ele, conhecemos exactamente aquilo que, para a ditadura, significou "negociar"---desde logo, social e politicamente.

A verdade é que (descontando esse... detalhe "menor") o fascismo conseguiu gerar um conjunto de valores de ordem genericamente cultu(r)al que, uma vez "negociados", pois, com o conjunto da sociedade portuguesa de então, as suas, dele fascismo, instituições ficaram encarregadas de assegurar no concreto.

Bom ou mau, o fascismo teve, pois, um 'rosto civilizacional' que lhe foi possível ir conservando e continuamente reprojectando sobre o "seu" próprio social assegurando, desse modo, que uma certa História, pelo menos, seguia sendo possível durante algum (longo de várias décadas) tempo.

Não havia desigualdades, desde logo, económicas mas também sociais e, sobretudo, políticas durante o fascismo?

Não havia desigualdades: o fascismo é a própria desigualdade convertida em paradigma político e civilizacional estável e organizado.

Sistémico.

Mas a questão, aqui, passados estes anos todos sobre o fim da ditadura, já não é exactamente essa de denunciar a extrema e gélida crueldade económico-financeira, social e (obviamente) política do fascismo.

A questão é perceber como fascismo, exactamente ao contrário, sem resolver as agudas dissimetrias da sociedade portuguesa (parte da qual ficou, como se sabe... "retida na História"---onde, de resto, permanece ainda hoje mas enfim...---vários séculos atrás) as conseguiu artificialmente (pela força bruta da sua componente jurídica e da sua componente policial férrea e impiedosamente aplicadas sobre o conjunto da sociedade portuguesa da época) "contornar", nunca deixando que fossem, com um mínimo de consistência, projectadas para fora da "experiência pura e/ou absoluta" de si a fim de poderem ser reflectidas e convertidas "à la longue" num saber e/ou numa inteligência estável de si.

A verdade é que, repito, nunca a sociedade portuguesa terá podido ser orgânica: grandes massas populacionais ignorantes e miseráveis não são possíveis de gerar uma ideia minimamente clara e sólida de si e, consequentemente, integrar-se de forma espontânea e natural, num qualquer projecto global onde lhes esteja distribuído e assegurado qualquer papel realmente activo e determinante.

A minha própria tese de uma tanatopia ou pensar tanatópico nacional tenta ler contextualmente essa realidade: incapaz de ser mobilizada para ajudar a formar uma verdadeira sociedade, a "portugalidade mais baixa" refugia-se naturalmente na glorificação da in-acção da qual o modelo perfeito, ideal (ainda por cima "cristicamente induzido") é obviamente a Morte.

A morte vista à maneira crística e ressurreccional como um pressuposto ideal (iniciático) de felicidade civilizacional (e, por arrasto, também evidentemente política).

Um péssimo e disfuncionalíssimo (des) entendimento do que seja "liberdade" (a liberdade é uma teoria da realidade ou não é, pura e simplesmente: não existe histórica e politicamente) levou-nos, como sociedade, ultrapassado o fascismo, a perder (ou a não chegar a ganhar) essa percepção crucial do carácter objectivamente ciencial ou mesmo científico da liberdade.

Não somos hoje capazes de tornar-nos orgânicos por entendermos que as "leis da realidade" em geral não se aplicam à liberdade e que esta não obedece a imperativos de estrita (embora não estreita...) necessidade como qualquer ciência ou ciencialidade particular.

O nosso próprio atraso nos conduz nesse sentido: o atraso de que falo não é, com efeito, "apenas" económico: é económico mas é também (falo disto com maios detalhe noutro ponto destas notas quando me reporto especificamente à análise da questão do Conhecimento como propriedade, proto-capital e/ou matéria prima de capital) cognicional e intelectivo ou inteleccional.

Tendo-nos, como sociedade (e paradigma civilizacional) sido negado o acesso directo aos (a propriedade efectiva dos) "meios de produção social de Conhecimento", é fácil que do funcionamente preciso da realidade percamos final---e colectivmente---a noção.

Em termos globais, com um «povo» e uma classe média que desconhecem, pois, por completo como funciona, de facto, a realidade e largos sectores da população que o estádio de "desenvolvimento" do capitalismo deixou de conseguir envolver e mobilizar (deixou de ser capaz e, sobretudo, de ter necessidade de usar) e aos quais é, também por isso impossível envolver num projecto comum, tornou-se materialmente impossível definir também valores comuns minimamente reconhecíveis que seja possível negociar, primeiro, social e, em seguida, civilizacionalmente e que as instituições no concreto possam mediar.

É-nos, como sociedade, por exemplo, criar paradigmas comuns de "Cultura", por um lado e de "Educação", por outro.

Tradicionalmente (durante a ditadura, inclusive) a "Cultura" e a "Educação", a "Escola" dialogavam---e interagiam---(a seu modo, organicamente, volto a dizer) de forma contínua entre si.

Não estão, volto também a referir, em causa os conteúdos específicos, concretos, de uma e outra (e de todas) aquelas realidades.

Está em causa (aqui, pelo menos: neste prexciso contexto), sim, o modo como todas elas se articulavam organicamente entre si.

A sociedade portuguesa (forçada previamente a isso, é inteiramente verdade) encomendava à Educação que "fixasse" uma certa ideia, um certo paradigma de "Cultura" especificamente à História, isto é, possuía um padrão global comum de "Cultura" e negociava, por um lado, com a sociedade, por outro, com a Escola como sua "intérprete" e/ou mediadora material a sua retransmissão contínua na História.

Hoje, ninguém sabe verdadeiramente o que é "Cultura" (valores em geral incluídos): cada um tem a sua e, tendo-a pelas razões que apontei, por seu turno, des-articulado, des-integrado por inteiro de uma leitura organizada, sistémica, epistemológica (ou, como prefiro, em casos como este dizer: epistemeoformemente) necessária do real não é, depois, capaz de voltar a trazê-la harmoniosamente ao contacto com esse mesmo real no sentido de articular ambos de forma integrante e equilibrada, necessária e orgânica, entre si.

Ora, não possuindo nós, como sociedade uma Cultura nem sequer um projecto (que até podia ser como no caso da ditadura, por absurdo, por rejeição, por dialéctica interpelação e mesmo aberto questionamento) deixámos já, na prática e para todos os efeitos, de ter verdadeira utilidade social, civilizacional e política para a Educação e naturalmente para a Escola.

Na realidade (como titulava Saramago numa obra muito conhecida) deixámos como sociedade de saber "o que fazer com" a Escola ou com a "escolicidade" tópica que herdámos de um passado ainda recente.

Como sociedade inorgânica (que, repito, por razões históricas, sociais e políticas, civilizacionais, de desigualdade e subdesenvolvimento crónico nos tornámos) não temos condições objectivas nem subjectivas para continuar a fazer com que as instituições no concreto medeiem articuladamente programas teóricas de sociedade e até de História ou historicidade.

Um trajecto de inevitável agudização das contradições do capitalismo pós-industrial apenas pode (e já está, de resto, a fazê-lo!) agudizar as condições objectivas e subjectivas ou subjeccionais de desigualicidade económica, social e política que impedem (e agora, por quanto acabo de dizer, cada vez mais clara e, ao que tudo indica, mais irreversivelmente) as sociedades de encontrarem formas concretas de organicidade que expliquem e fundamentem as suas próprias intituições.

No caso português, um caso de doença crónica persistente e nunca verdadeiramente atalhada, servido em geral por uma politicagem invariavelmente medíocre, gulosa, não-raro rapace e (embora muitas vezes mesquinhamente) voraz, incompetente, incapaz (até por objectivas razões de sistema, como vimos) de construir uma sociedade que não seja apenas um paupérrimo pretexto e uma frágilissima desculpa para uma economia (uma economia que, por seu turno, que não vê nunca mais do que um ou dois "metros históricos, sociais, civilizacionais e políticos" à sua frente, a situação apresenta-se, a prazo, no mínimo gravíssima e particularmente inquietante...


[Na imagem: "Fernando, Pessoa, O Caso Mental Português", edição in-libris, fotografia extraída com a devida vénia de in-libris.pt ]

sexta-feira, 17 de julho de 2009

"Sobre os fundamentos bio-filogénicos do que chamamos 'ficção': excurso filosófico"


Revi ontem, a seguir, dois dos 'filmes da minha vida'.

Devo desde já dizer (ou recordar) que os 'filmes da minha vida' não têm de ser todos bons...

Há-os maus e até, num caso ou nourto, horríveis.

Os que revi ontem não são nem uma coisa nem outra destas duas últimas: um ("The Prisoner of Zenda") é um excelente "cloak-and-dagger" com um dos pares cinematográficos que, para mim, durante muito tempo, foram a epítome ou o paradigma último, acabado, da perfeição: Stewart Granger e Deborah Kerr (outro foi Cary Grant/Eva Marie Saint).

Do filme e do deslumbramento adolescente de visioná-lo (no 'velho' Jardim Cinema, numa das muitas matinés roubadas às aulas do não menos 'velho' "Gil"---daquele em que escrever nas carteiras dava, sem apelo nem agravo, bilhete só de ida para uma bela suspensão de não-sei-quantos-dias...) já falei noutro lugar.

Da novela original (que consta, aliás, há muito, numa muito bem cuidadinha edição 'pocket', da minha biblioteca, dificilmente conseguida sabe deus-com-que-sacrifícios e apenas depois de não-sei-quantas visitas à mítica "Barateira" do tempo do Sr. Romana) não valerá a pena falar muito: 'deixa-se ler', como dizia o outro.

É da "escola" dos "39 Degraus" do Buchan (que também tenho, aliás) e por aí fora.

Do filme do Thorpe (que era, vou já acrescentando um "relojoeiro" impressionante da narração: aquilo "encaixava" tudo como um puzzle; recordo-me, por---outro---exemplo, de um "Ivanhoe" dele com a Ava Gardner, a Taylor e o... Taylor, o Robert: um "Ivanhoe" cujos 'racords' podiam ser vistos acompanhados de um cronómetro, de tal modo tudo aquilo funciona organicamente, sem uma falha!); do filme do Thorpe, deste "Prisoner..." de que aqui volto a falar, quero eu dizer, impressiona-me sobremaneira, entre outras coisas (de que que, como digo, já falei) a ambiência, deliciosamente arcaica escolhida, aquela rústica e bucólica "Ruritânia" nebulosamente situada nuns Balcãs em que ainda apenas os "maus", como esse tenebroso "Rupert de Hentzau", matavam (foi antes das chacinas e matanças da recente guerra que resultou da trágica desintegração da Iugoslávia) e em que se podia, além disso, pescar tranquilamente trutas ou outra coisa deliciosamente improvável qualquer, ali mesmo, a dois passos de um palácio real onde, "to top it all" iria muito em breve reinar a Kerr...)

Desde sempre me impressionou (e fascinou!) essa Europa pré-I Guerra Mundial (o Chabrol tem uma espécie de análise interessantíssima da sociedade francesa do período num apenas aparentemente inócuo "Landru", salvo erro com o Charles Denner de barbas, como o original, que vi, há muitos anos no "Império") mas, hoje, a esse fascínio (que, devo acrescentar, nunca desapareceu por completo) veio juntar-se um outro relacionado com o que entendo poder ser considerado um curiosíssimo sinal cultu(r)al (e mais do que cultu(r)al, genericamente antropológico), aspecto em que o filme do Thorpe possui algo em comum com o outro que atrás comecvei por referir ter revisto, ontem, juntamente com ele e que é "The Prize" do Mark Robson, um digníssimo e nada negligenciável... "plágio" de "Torn Curtain" do Hitchcock.

O aspecto comum a ambos prende-se com a questão do dualismo identitário, algo que nos chega directamente, diria eu, da nossa condição filogénica, do modo como a "natureza" nos tratou construindo-nos gradualmente como uma espécie de "sistema integrado bilógico" dotado de uma consciência que, por sê-lo, o é também, de todas as múltiplas fissuras de um modelo que a natureza, volto a dizer, em momento algum, concebeu como um verdadeiro «objecto orgânico» (auto) reconhecível.

Se repararmos, com efeito, a duplicação identitária que, diria eu, 'trazemos directamente da natureza' em resultado do modo particular, específico, concreto, como esta nos 'desenhou' como espécie, i.e. , por étapas ou "estações funcionais" capazes de possuirem sempre uma espécie de visão destemporal, fixa, secundária ou terciariamente ulterior e de um modo ou de outro completamente imóvel, senão exactamente do processo como tal, admitidamente das suas formulações objectuais avulsas refractadas nessa mesma visão e, a dado passo, integradas mesmo tessitariamente nela; se repararmos bem, dizia, o único animal conscienciado (e não naturalmente consciencial...) que somos, que é cada um de nós é, está por natureza obrigado a representar-se por oposição ao ser-se (que é, como se sabe, um atributo das outras espécies não-conscienciadas) o que nos obriga, volto a dizer: como espécie, a retirar em todos os casos fatalmente o 'pensar' ao 'ser' e, mais grave ainda, o pensar do ser (pensar é na realidade, para nós, destruir metodicamente o ser reconstituindo-o, no fundo integralmente, do nada ou quase nada, um «pouco mais além»).

O que eu quero dizer é que a nossa desunidade ontológica não pertence primariamente à Filosofia: pertence primariamente à biofilogenia que, em nós, é, em dados momentos e em certas circunstâncias precisas, atravessada funcional (mas também muito superficialmente) por uma "consciência" que, relativamente ao eu próprio conteúdo em filogenia, opera como um espelho que tanto projecta como se reprojecta, tornando, no fundo, o "conhecimento" uma verdadeira 'lotaria'...

Seja como for, quando deixa de pensar directamente (na forma de um discurso formalmente "racional" onde apenas são utilizadas formulações ditas "nobres" e/ou "epistemologicamente fiáveis" da consciência") para fazê-lo indirecta mas, segundo julgo, muito mais genuinamente sob forma ficcional (ou, antes desta, ritual--de que a "ficção" representa, na realidade, uma manifestação objectual), o Homem regressa natural embora, de facto, "simbologicamente", ao contacto também ele, possivelmente natural com as múltiplas formas piossíveis da sua, inda e sempre natural, dualidade.

Pessoalmente, vejo, hoje, confesso, a ficção, sobretudo, como um alívio reflexional relativamente à pressão das formulações demasiado secundárias e redutoras da "razão"---um regresso simbólico às fontes mesmas da identicidade que, embora por definição insusceptíveis de serem efectivamente atingidas, ficam (em tese, pelo menos) desse modo, infinitamente mais próximas e perceptíveis--ou re/experienciáveis.

Não por acaso, duas obras de 'ficção' que vi (nesse caso, sim, coincidentalmente) no mesmo dia falam abundantemente, no fundo, uma e outra, no limite, dessa natureza multipolar ou efectivamente composicional-sucessiva do Homem, abordando-a em triunfo no único veículo de conhecimento que, numa sociedade in/essencialmente laica como a nossa, logra furtar-se à (o) pressão demasiado vigilante da "consciência", levando-nos de volta às nosas raízes filogénicas---ou, volto a dizer, aquilo que delas é hoje material ou possivelmente reconstituível.


[Imagem extraída com a devida vénia de coleccionadordefrases.wordpress.com]