quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

"Le Déserteur" de Boris Vian


Foi um texto que acabou, algures no tempo, por se me 'colar' definitivamente à memória, o poema que mais vezes declamei, sobretudo em voz baixa, para mim [às vezes sem ter sequer a noção clara de que o tinha começado a fazer] em tempos---num tempo particular e íntimo que, por uma razão qualquer, estes últimos dias me trouxeram, de novo, quase integralmente revivido, ao espírito.

Recordo-me de ter chegado a Amsterdão num dia gélido de inverno, completamente desorientado pela visão ominipresente, obsessiva, da neve e pela sucessão de escalas e imediatas repartidas sem destino, inteiramente ao sabor de um verdadeiro caos de informações contraditórias de pura circunstância ["Não pares em França, tenta a Holanda!" "Aqui na Bélgica é difícil que te legalizes: tenta a Suécia!" ou até: "Eu, se fosse a ti, tentava mas era o Chile!"---um Chile onde, aliás, escassos meses mais tarde, conduzida por uma sinistra personagem de Inquisidor "doublé de" "Mussolini Subtropical" cujo nome é indigno de ser expressamente mencionado, uma verdadeira tempestade de crimes e abjecções indizíveis, havia de seguir-se ao sangrento derrube de Allende e do metódico assassínio de quantos tiveram a veleidade de segui-lo na utópica aventura por ele, pouco antes, esperançosamente iniciada].

Recordo-me de ir de porta em porta numa Amsterdão completamente gelada e persistentemente 'crepuscular'---levei um dias inteiro a deambular por ali, planta da cidade em punho, procurando o contacto cujo nome levava, no meio de uma babel de vozes cujo sentido---pela primeira vez, desde que partira uma semana antes, de Portugal---me escapava por completo---e de, de repente, uma porta se ter aberto na velha Atjejstraat [só "Atjejstraats eram duas, a "eerste" e a "tweede"...] e alguém me ter finalmente acolhido com algo mais do que a fria e polida indiferença germânica que fora até aí presença constante desde que desembarcara, para me dizer: "É aqui, sim! Podes entrar!"

Recordo-me de uma casa enorme, um de caos indescritível de livros, discos e cartazes [cartazes da China de Mao, do MPLA---"Koffee voor Nederland, bloed van Angola", dizia um deles]---um comunitário de jovens estudantes e trabalhadores---da Catherine, da Irene, do Engelhardt e de um modo muito particular, do Mark, que, com uma guitarra e uma boa vontade verdadeiramente comovente pela genuína marca de obstinadamente muda cumplicidade mas, também, de pura humanidade que trazia consigo e me era especialmente dirigida, entoava as palavras arrepiantemente belas deste "Le Déserteur" de Vian cujas últimas palavras eu aguardava sempre com uma assustadora expectativa de que tivesssem, por miraculosa intercessão de um qualquer deus da poesia, entretanto deixado de estar lá e que pareciam---mas sobretudo porque pareciam---ecoar de forma verdadeiramente ominosa as sinistras palavras de gélida advertência daquele comissário fronteiriço em Port Bout que pouco antes me havia dito: "Oui! Vous pouvez passer par là. Mais dêpechez-vous quand-même, ham? Je vous donne cinq minutes pour en fair parce qu' après ça je fais sortir une patrouille. Ja la commanderai moi-même et... je tire bien, hein?..."



"LE DESERTEUR"

de Boris Vian

Monsieur le président
Je vous fais une lettre
Que vous lirez peut-être
Si vous avez le temps
Je viens de recevoir
Mes papiers militaires
Pour aller à la guerre
Avant mercredi soir
Monsieur le président
Je ne veux pas la faire
Je ne suis pas sur terre
Pour tuer des pauvres gens
C'est pas pour vous fâcher
Il faut que je vous dise
Ma décision est prise
Je m'en vais déserter
Depuis que je suis né
J'ai vu mourir mon père
J'ai vu partir mes frères
Et pleurer mes enfants
Ma mère a tant souffert
Elle est dedans sa tombe
Et se moque des bombes
Et se moque des vers
Quand j'étais prisonnier
On m'a volé ma femme
On m'a volé mon âme
Et tout mon cher passé
Demain de bon matin
Je fermerai ma porte
Au nez des années mortes
J'irai sur les chemins
Je mendierai ma vie
Sur les routes de France
De Bretagne en Provence
Et je dirai aux gens:
"Refusez d'obéir
Refusez de la faire
N'allez pas à la guerre
Refusez de partir
"S'il faut donner son sang
Allez donner le vôtre
Vous êtes bon apôtre
Monsieur le président
Si vous me poursuivez
Prévenez vos gendarmes
Que je n'aurai pas d'armes
Et qu'ils pourront tirer!"


Boris Vian

2 comentários:

São disse...

Interessante que, na minha primeira visita aqui, encontre "O DEsertor". que coloquei há pouco tempo no meu espaço.

Fique bem.

Carlos Machado Acabado disse...

Uma coincidência interessante, sem dúvida!
É um texto que, há anos, me acompanha e cuja versão cantada, pelo Reggiani, ouço regularmente.
É uma das 'canções da minha vida' e um texto "de cabeceira" pelas razões que refiro no texto.
Espero que volte e que reencontre aqui outros textos e imagens com as quais, de igual modo, se identifique!

Carlos