Tenho, confesso, uma certa saudade do tempo em que imagens como a que junto constituíam uma referência de ousadia e, inclusive, uma marca das mais inquietantes tendências de lascívia e pecado...
Era o tempo em que os professores de Moral (disciplina de frequência obrigatória nos liceus públicos...) chamavam regularmente os alunos "de parte" para lhes perguntar se "tinham feito coisas feias" ou "coisas más" "com as mãos" e nos prometiam toda a sorte de sofrimentos do (e no Inferno) caso o tivéssemos admitido mesmo se apenas por meio do mais cabisbaixo e e angustiado silêncio...
Os tempos em que o "Hipólito dos livros" (que tinha um sócio coxo, verdadeiramente sinistro!...) nos vedava terminantemente o acesso aos da Grove Press (com o Henry Miller e as edições em inglês do empolgante Sade à cabeça...) e em que apenas as capas da "Playboy" nos eram visualmente acessíveis--isto, se a sorte permitise que um fulano qualquer estivesse a folheá-las no preciso momento em que entrássemos na lojinha dfa calçada da Glória...
Para se ter hoje uma ideia do fascínio que o "Playboy" exercia sobre mim, refiro que, em relação ao que conto no parágrafo imediatamente anterior, se se desse conta dos nossos olhares "de esguelha" demasiado insistentes, o Hipólito nunca deixava de fazer um aceno discreto ao fulano a fim de que este ocultasse a revista dos nosso (literalmente extasiado!) olhar e fosse acabar de consultá-la para o "cantinho reservado" que era todo o nosso sonho podermos vir, um dia, a frequentar...
Podia-se nessa altura ser preso por ler a revista e tê-la ao alcance (mesmo apenas visual!) de menores era um delito grave que podia, no limite, conduzir ao encerramento da mesma.
No nosso confuso e reprimido espírito dolescente, "política" e "sexo" confundiam-se na "perversidade" intrínseca e num comum estatuto de "coisa" [naturalmente] má"...
Os filmes chegavam (quando chegavam!) a Portugal profusamente amputados, alguns literalmente "assassinados" e, certa vez, até a "sonsa" "Paris Match" foi proibida...
Os filmes chegavam (quando chegavam!) a Portugal profusamente amputados, alguns literalmente "assassinados" e, certa vez, até a "sonsa" "Paris Match" foi proibida...
Andou a PIDE a recolhê-la pelas livrarias do Chiado e da Av. de Roma...
Voltemos, porém, à foto que ilustra esta 'entrada': há nela, se repararem bem, tudo quanto pode (eu diria: legalmente) haver de excitantemente sugerido ou obliquamente insinuado, prometido mesmo (constitui um erro crasso imaginar que, nos E.U.A., ainda hoje aliás; nos E.U.A. onde se originaram estas "pin-ups" que têm o nome derivado da prática de pendurar as suas sugestivas imagens--to "pin them up"--nas paredes casernas e "bachelors' dens", a liberdade sexual era, no fundo, maior do que entre nós--assim como supor que seria menor do que entre nós, em pleno salazarismo, a "espessa" carga de Culpa que a sua posse ou o seu... "convívio" por qualquer outra forma ou modo envolviam e subentendiam.
É Simone de Beauvoir que, nas suas visitas aos States para se encontrar com Algren, nos fala, em "L' Amérique Au Jour Le Jour", da sua perplexidade e do seu desconforto perante a omnipresença, verdadeiramente obsessiva, da ideia (e, mesmo, a outro nível mais subtil e mais mediatamente subconsciente, da impressão !) de Culpa na Cultura (e na... "Kultura" do país), uma visão que, devo dizer, partilho por inteiro, sem conhecer este de outro modo do que através precisamente dessa Cultura (e dessa "Kultura"), designadamene da Literatura e do Cinema onde tal impressão é raro que, de um modo ou de outro, não marque inquieta e inquietante presença.
Mas, voltando, então, à imagem: se repararmos bem, dizia, está lá "tudo"--desde um certo ideal de beleza muito marcado, muito "anos 50" e parte de 60: a cintura finíssima--"de vespa", como na altura se dizia--as feições e o penteado muito... "Elizabeth Taylor", Elizabeth Taylor cujos tóridos e fugazes "romances", confundindo comummente a sua "persona" real com a sensualidade supostamente caprichosa e "abundante" de uma Cleópatra, cujo papel re/fez, como se sabe no Cinema, no filme do, na altura já decadente, Mankiewicz); mas, dizia, na imagem está, no fundo, tudo.
Já referi o ideal de beleza física muito paradigmático e cinematográfico: trata-se de uma mulher que (obviamente!) não se ocupa dos trabalhos da casa (o sonho de muitas... Será uma estrela ou, no mínimo, uma "starlet" de Cinema? Mantê-la-á algum milionário rico?); uma mulher das que faziam o deliciado escândalo das recatadíssimas e oprimidíssimas "donas de casa" da época assim como, já agora, a fascinada tentação dos maridos...).
Será, pois, talvez, uma mulher com todo o tempo do mundo para adquirir roupa interior (lingerie) ousadíssima (pecaminosa, claro!... Repare-se na sugestão de vermelho que pontua essa mesma lingerie!) e ostensiva, femininíssima, provocante, vagamente fetichizada ou fetichizante--assim como a clara sensualidade (e, a partir dela?) o dinheiro bastantes para poder permitir-se todo o tipo de jóias (como os brincos que ostenta).
Está (certamente não por acaso!) "tão deitada quanto a decência permite", rendida (notem-se, por exemplo, os olhos fechados, a boca aberta...) feliz por está-lo mas, de facto, não só: há, para além disso, uma evidente sugestão de convite marcadamente erótico (dado pelas mãos masculinas que a puxam e ameaçam retirar por completo da nossa vista: a fim de arrastá-la para uma câmara confidencial, secreta, deliciosamente "proibida" onde todas as promessas contidas na imagem se hão-de finalmente consumar?...).
Por outro lado ainda, atente-se numa certa violência latente (sofisticada ou "cabalisticamente" sadista?) dada, por seu turno, pela ideia de que ela vai ceder mas arrastada, numa espécie de complexificação subtil do jogo amoroso onde de podem, agora, também constar, todo um conjunto de excitantes e incomuns componentes que a cinzenta e invariavelmente muito funcional "sexulidade... média" do português e da portuguesa (ou do americano e da americana, pois claro!...) de então não sonha sequer (a não ser im/precisamente em "sonhos" deste tipo e através da mediação "moralmente reconfortante" de arquétipos simbologicamente libertadores mas encriptados como este) experimentar e chegar, alguma vez, a fruir.
É, no fundo, toda uma época (uma "época interior" mas também, "exterior" objectiva, objectual ) que está, pois, aqui, neste belo boneco tão emblemático , tão... "mitológico", diria Barthes e tão fascinantemente dinâmico e "kitsch" .
É todo um jogo complexo jogado "à distância" (a uma prudente "distância representacional") com os nossos tabus cultu(r)ais e com a maneira de contorná-los através da sua delicada, muito subtil "simbologização" (falo da "ecranização idealmente deculpabilizadora dos símbolos", de toda uma "simbólica" própria onde a sexualidade reprimida é cuidadosamente "traduzida" e negociada" em modelos e formulações tão tranquilizadora quanto distanciadoramente "estéticos" ou estetiformes"); é todo esse jogo que aqui temos nesta bela imagem de uma mulher que se "presta talvez a tudo" e o faz com uma vibrante, seminal alegria onde a ruptura está (em código) expressa a toda a largura da "página" (visual mas também cultural) onde está "escrita".
[Com muita pena minha, perdi por completo o rasto ao site ou blog de onde ela saíu para vir, um dia, pousar no meu...]
9 comentários:
Sabe que des de que eu fiz esse desenho do Arabe eu não tinha parado pra pensar nisso...
e realmente este é o mais interessante dos desenhos que eu fiz porque pegou bem a expressão do homem no deserto...to postando mais desenhos hoje hehehe!!!
Boa!
Eu tenho um amigo dramaturgo que está sempre a dizer que os dramas que ele escreve sabem mais do que ele que, às vezes, tem dificuldade em acompanhar-lhes o raciocínio.
Os raciocínios.
Talvez com os desenhos suceda outro tanto...
Bom trabalho!
E como foi sentida a morte do Augusto Boal, aí no Brasil?
Ou melhor: foi sentida?
Aqui, dada a sua personalidade e militância teatral de esquerda, foi genericamente ignorada...
Triste...
...e significativo!
Pois é bem isso que acontece...as vezes eu desenho ou escrevo algo mas não reparo
na força ou expressão que tem! é estranho isso huaauhauh!!!
E sobre o Boal eu nem sabia que ele tinha morrido,fiquei sabendo agora pelo seu blog e pelo visto aqui também ele é ignorado pela midia...se algum canal deu a noticia,provavelmente foi tv cultura!
Então... é aprender com eles, com os desenhos...
Eu acho que desenhar ou pintar é um pouco (ou um muito!) como treinar a voz.
É aquilo que eu chamo "solfejo manual": você "liga" a mão e deixa ela treinar sozinha...
Ela sabe o que fazer...
Sobre o Boal: pena mesmo, heim?...
tem razão é ligar a mão e os olhos...A mão para que o traço fique perfeito e os olhos
para não perder nenhum detalhe...!!
É uma pena dupla: pela morte (que é a principal) e pelo descaso...
Mas vale a pena, "Anita"!
Mas vale a pena!
Quando se acaba um «objecto» plástico (desenho, colagem, texto etc.) em que consideramos ter dito EXACTAMENTE aquilo que queríamos dizer, é fabuloso!...
Não é?...
A morte de Vasco Granja penso que também foi um pouco esquecida.Mas é a televisão pública que temos hoje em horário nobre lá vamos levar com mais um Hamburgo-Werder Bremen...
Amigo Gonçalo: isto é como dizia "o outro", ou seja: pois...
Felizmente, vai havendo os blogs para se veicular uma espécie de "underground informativo" que, mais ou menos, numa tolerada, tácita, "semi-clandestinidade", vai resistindo.
É, globalmente, um "maquis cultu(r)al" que lá vai, "tant bien que mal", fazendo a parede que pode (quando pode--e quer) ao... "invasor"...
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