quarta-feira, 6 de maio de 2009

"Aspectos da «questão democrática»"

O editorial de hoje, dia 06.05.09, do "Público" incide sobre o nacionalismo basco e a derrota, por ele sofrida, nas recentes eleições espanholas em que perdeu, como se sabe, para um dos partidos nacionais, a saber: o famigerado P.S.O.E. que já foi "de González" e que hoje é "de Zapatero".
Relativamente à vitória eleitoral dos "socialistas" (versão basca) espanhóis, congratula-se o editorialista do "Público", acrescendando que a possibilidade de governar, por fim, também no País Basco, forçou a uma "responsável" colaboração entre os ditos "socialistas" e os chamados "populares", obrigados pela conjuntura saída das eleições a justificar o voto (ou o... anti-voto) que lhes foi agora outorgado pelo eleitorado basco, desencantado, ao que parece, pelas políticas dos anteriores governos nacionalistas .
É curioso, digo eu, que o "Público" pela boca do seu director, ponha, deste modo, a tónica na formação de uma espécie de Bloco Central, versão basca, saído, segundo ele, da maturidade dos dois partidos.

Ora, aquilo que eu acho é que, primeiro, como disse, há a relevar o modo como, também na circunstância, se terá, ao que tudo indica, operado a completa inversão da democracia que é comum nos restantes países e sociedades onde vigora um modelo de funcionamento político basicamente análogo.

Ou seja: também, ao que tudo indica (e o editorialista, aliás, implicitamente confirma) no caso basco, muito mais do que votar P.S.O.E. o eleritorado local terá des-votado nacionalista--que é uma coisa, na realidade, muuuuuito mas muito diferente.

Reside aí, de resto, como tantas vezes, tenho afirmado o grande problma, o problema nuclear, daquilo a que, no "Ocidente", é comum designar pelo termo "democracia", a saber: o facto de, na base ou na essência institucional desta se situar a substituição de facto mas, de igual modo, de direito, dos mecanismos próprios da democracia directa (definida pelo facto de nela a componente fundamental de decisionalidade que contém--que qualquer modelo político tem por definição de conter--encontrar expressão material concreta em tempo real) pelos da democracia representativa (cujo desenho temporal implica necessariamente a existência de dois tempos, um efectivo e um outro que é, no imediato, simplesmente crítico) se não se fizer acompanhar por dispositivos e institutos muito precisos capazes de preencher o (não!) espaço entre ambas de modo suficiente para evitar que haja difunção, no sentido de conduzir a uma "esquizofrenia" ou "processo de esquizofrenização funcional" do todo) ; o facto de, dizia, na base do desenho institucional assim como do funcionamento concreto dos sistemas ditos democráticos parlamentares "ocidentais" se achar a troca atrás referida, pode conduzir, repito: na ausência de tais mecanismos correctores (porque funcionalmente reintrodutores da algum do tempo real perdido no próprio funcionamento da democracia) à conversão prática desta num outro sistema originalmente não-previsto em que, em lugar da cedência do exercício funcional poder pelos cidadãos ao Estado, se verifique a cedência efectiva do próprio poder, estando às populações apenas reservada a possibilidade de, em tempo real, criticarem o poder (democracia opinativa, crítica ou democracia moral) e, numa segunda fase, des-optarem mas apenas depois de objectivamente exercido o poder que, em tempo real, o eleitorado, porém, já tinha concluído (estando, porém, impedido de agir em conformidade por razões de estrita e absoluta necessidade sistémica) não servirem os seus legítimos interesses.

Ou seja, quando, o poder se divide, num tempo real que é o das decisões, cometido ao Estado, coexistindo com um segundo tempo, simplesmentre crítico ou, como também lhe chamei, moral, que é o dos cidadãos, voltando à posse destes um terceiro tempo que é o que é aquele que é destinado a des-optar o poder (a estrutura concreta, particular, de poder) o qual antes se exerceu e materializou em decisões; quando assim sucede, dizia, é realmente errado falar, em bom rigor, já de um sistema realmente democrático.

Por ironia, chamo ao sistema que asim cinde longitudinalmente o tempo ou temporicidade democráticos, uma... retrocracia ou, alternativamente, uma democracia funcional ou demomorfia inversional.

É, como também ironicamente, tantas vezes tenho dito e escrito, um sistema à primeira vista susceptível de ser, de facto, confundido com a Democracia (a qual pode, como se sabe, ser muito breve e sumariamente descrita como o sistema que confere expressão institucional ao direito dos povos e das sociedades de escolherem livremente as formas e modalidades concretas do seu próprio futuro) mas que dela difere pela circunstância disfuncional fundamental de conferir aos mesmos povos e sociedades a liberdade de optarem pelas formas que acharem mais correctas mas do seu próprio... passado.

Por tudo isto, é legítimo, penso eu, que utilizemos para nos referirmos a este sistema ou dis-sistema (a este... "distema"?) obtido pela rotação ou pela deriva prática, material, objectiva da Democracia um modelo--ou uma mera "demomorfia" (im!) puramente inversional dela.

É, voltando agora ao editorial do "Público" aquilo que (ressalvando, obviamente, o meu relativo desconhecimento da realidade basca no que ela possui de concreto e mais específico) posso imaginar ter ocorrido no caso basco: parecendo ter-se atingido, de forma democraticamente normal e, até, ideal, uma solução para um problema político, aquilo que se fez, na realidade, foi descartar ou des-optar uma outra opção anteriormente em vigor.

Digo-o porque, não conhecendo, repito, em pormenora realidade basca em concreto, tenho já suficientes anos de vivência no contexto de um sistema ... "demomórfico" no essencial análogo ao espanhol para saber como, na falta dos tais institutos reintegradores ou resgatadores que permitem (que forçam!) o reinvestimento material do tempo real no próprio sistema demoformal, para a minha "suposição" possuir o mínimo de "insight" para credibilizá-la, ao menos como fundamentada "tese".

Um outro aspecto que gostaria de sublinhar a propósito do editorial do "Público" incide no âmbito da minha visão pessoal do modo como opera ou como funciona a Democracia.

Para mim, a democracia é 'o mais anti-sistémico dos sistemas'.

Na realidade, não se trata de um sistema: trata-se (como ilustra a minha tese de que à "demomorfia" portuguesa--pelo menos a essa que a essa conheço eu bem!...--falta um Tribunal de Fiscalização e Controlo de Cumprimento em matéria de compromissos políticos, designadamente de natureza eleitoral, como detalho noutro lugar) de um conjunto ou teoria de dispositivos que visam delimitar, precisar com o rigor e a exactidão possíveis, exercício do poder funcional do Estado ou Estados na forma de "cadernos de encargos políticos" apresentados pelos candidatos a governo e pontualmente fiscalizados por órgão com poderes efectivos de punição dos que forem eventualmente faltosos.

Ora, um anti-sistema mete-se e define-se pelo sucesso que obtém na acção de delimitar e restringir o exercício do poder, não pelo poder ou poderes que positivamente confere. Ou seja: Democtracias vive na essência do modo como é capaz, como está institucionalmente habilitada, a instaslar no próprio núcleo da acção deliberativa a necessidade obrigatória, imprescindível de fazer vencimento pela qualidade dos argumentos que subjazem a essa acção.

É, aliás, isso que ajuda decisivamente a distingui-la de qualquer forma ou modelo autocrático, seja de que matiz ou denominação for.

Os poderes autocráticos impõem, possuem o "direito" intrínseco de impor soluções; as formas e modalidades democráticas de poder estão obrigadas, por definição, a persuadir para poderem ver as respctivas propostas convertidas em deliberações efectivas.

Nas Democracias, a argumentação--a qualidade dos argumentos e a capacidade insita destes para ganharem pelo valor intrínseco que os define, para si os que, à partida possuíam outras ou até nenhumas ideias--não é um pormenor formal: é um pressuposto básico, basilar, da própria democraticidade ou específico democrático da Democracia.

Quando certos políticos reclamam para as suas cores as monstruosas maiorias "absolutas" como condição para introduzirem nas sociedades onde estão inseridos, "reformas" que, dizem, de outro modo , seriam impossíveis, aquilo que estão, de facto, a admitir é que ou os argumentos que são capazes de aspresentar são maus ou (pior ainda!) que são más (e, por conseguinte, de um modo ou de outro, inargumentáveis) as próprias medidas ideadas para sustentar em si mesmas as "reforms".

Nada mais!

O que os políticos em causa estão, na prática, a pedir é autorização para suspender por um período de tempo xis a própria componente nuclearmente democrática da Democracia e a admitir, por outro lado, que Democracia e boas soluções... democráticas podem naturalmente ser, segundo eles, coisas distintas, não necessariamente coincidentes e até, no limite... antagónicas sendo, assim, necessário suspender tão subtil quanto estrategicamente a Democracia a fim de, paradoxalmente, assegurar que... ela permanece viva e que actua!...

Ou estão ainda dizer que a Democracia é óptima para resolver os problemas quando... eles não existem ou quando são fáceis e pacíficos de resolver mas que se revela completamente insuficiente ("bloqueia", dizem) para fazer-lhes face quando, pelo contrário, existem e são verdadeiros problemas...

Por trás desta visão está, implicitamente, a apologia (ou a nostalgia...) do poder autocrático que durante muito tempo existiu em Portugal--e de que o salazarismo foi apenas um... "exemplo" ou um "caso" particular.

A Democracia não "bloqueia" com as maiorias relativas: exerce-se segundo a sua própria essência e cumprindo escrupulosamente o seu "código genético" particular.

No caso basco (regressando ainda uma vez a ele) por muito estranho e maquiavélico que possa parecer é ao facto de existir uma E.T.A. e de ela ter, segundo o editorialista do "Público" desiludido as pessoas que, para lhe fugirem, se aproximaram do P.S.O.E. que a Democracia (alguma democracia e seguramente algum do interesse legítimo do eleitorado, isto é, da Cidadania) puderam, no limite, considerar-se como tendo saído admissivelmente reforçados e reconsolidados ou favorecidos no futuro.

Porquê?

Porque foi a E.T.A. que, desapontando hipotética ou efectivamente, o eleitorado permitiu que o P.S.O.E. fosse poder, aliando-se-lhe, ao que diz o "Público" o P.P.; ora, estes hão-de ter já percebido que ou fazem diferente do que fizeram os governos autonomistas e nacionalistas anteriores (por outras palavras: ou vão, de facto, de encontro aos legítimos anseios da Cidadania basca ou correm o risco de se "queimarem" os dois, vindo, muito provavelmente, a sofrer, num futuro próximo, a mesma sorte que, em tese, terá agora cabido aos nacionalistas, expressão política de um certo suposto ou real pró-E.T.A. ou para-E.T.A.

A nova situação (resultante do facto primário de haver uma E.T.A. e de ela agir de uma certa maneira particular) pode, então, ter dado um contributo importante para reforçar o vínculo democrático desejável entre a Cidadania e os partidos, neste caso, o P.S.O.E. e o P.P. em concreto.

Na base, está, em meu entender, a tal necessidade básica de Democracia de pôr entraves ao poder ou de, se assim se preferir dizer: institucionalizar a resistência funcional ou funcionante ao poder como tal.

De institucionalizá-la como instrumento nuclear de progressão e crescimento democráticos.

O natural, o essencial, "a respiração funcionante" da Democracia é a dialéctica nas suas várias formas.

As maiorias absolutas são a negação da própria essência democrática da Democracia.

Elidem, susoendem, sufocam, impedem a sua "respiração dialéctica essencial", transformam a Democracia numa múmia de si mesma, num corpo de onde está ausente toda a vida e onde a aparente serenidade nada mais é, de facto, do que mero... rigor mortis (mais ou menos habilmente) disfarçado.


[Imagem extraída com a devida vénia de housingrights.org ]

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