segunda-feira, 25 de maio de 2009

"Outbreak"/"Fora de Controlo", filme de Wolfgang Peterson

Por mero acaso, "zappeando" como de costume... "por aí", fui ter ao Canal Hollywood onde estava, no preciso instante em que por lá passei, a iniciar-se a exibição do filme "Outbreak"/"Fora de Controlo", de Wolfgang Peterson que preencheu, a partir desse momento, o meu serão televisivo de anteontem.
O filme é, diria eu, para utilizar um lugar-comum muito útil, um típico "produto industrial" norte-americano fazendo concretamente parte de uma espécie ou categoria de filme cada vez mais estabilizada e mesmo cada vez mais tipificada (devido, essencialmente, à multiplicação contínua, em condições de praticamente invariável mera replicação industrial, de um temário básico essencial sobre o qual mudam apenas circunstancialmente os rostos e o exterior imediato das próprias circunstâncias); categoria essa cujo propósito fundamental é, devo acrescentar, supostamente a crítica de um conjunto de aspectos particulares do "American way", designadamente, no caso vertente específico, do famosíssimo ou do famigerado "complexo militar-industrial" ao qual se deve, como é sabido, desde há muitas décadas, tanta desgraça (tanta miséria, tanta desigualdade, tanta repressão e opressão) globais mas sobre o qual se repetem, afinal, apenas, neste tipo ou nesta tipologia de filme em este "Outbreak" se integra, em última análise, meras vulgaridades a que a própria repetição automática, mecânica, retirou já qualquer verificável eficácia real.

Nem de outro modo seria, aliás, possível que tantas coisas, em si mesmas de uma inaudita gravidade, fossem ditas num espectáculo literalmente "para todos", levado a cabo dentro mas, de igual modo, fora dos Estados Unidos e ainda por cima levado às pessoas por uma máquina industrial à qual se ligam, em última instância, afinal, tantos interesses com óbvias e conhecidas afinidades com os que alimentam o (e se alimentam, na realidade, de um modo ou de outro, da) acção do tal "complexo" imediatamente atrás recordado...

Aqui, é um vírus cultivado secretamente pelos militares norte-americanos cuja acção, imprevistamente libertada em África, no então Zaire, desencadeia uma horrorosa pandemia que, numa primeira fase pelo menos, literalmente ninguém sabe exactamente como (e alguns não querem...) deter ou, no mínimo, circunscrever e conter.

Ora, bastará ouvir reproduzir este (chamemos-lhe) "núcleo témico" básico do filme para se perceber, imediatamente, as evidentes analogias de fundo que ele evidencia com "coisas" famosíssimas e ultra-populares envolvendo autênticos "blockbusters" cinematográficos como "Jaws" e/ou, sobretudo, "Jurassic Park" de Spielberg (de algum modo, o "pai" e inspirador deste tipo de "coisa fílmica" específica) razão pela qual este último, em particular, me veio, de imediato, irresistivelmente ao espírito após o visionamento das sequências iniciais de "Outbreak".

Onde, no filme de Spielberg, com efeito, havia um conselho de administração cúpido, ganancioso e irresponsável (em "Jaws" eram as autoridades locais com interesses directos na indústria do turismo) que desencadeava a invasão dos dinossauros e a quase regressão do quadro real da própria evolução biológica natural a paradigmas literalmente... jurássicos e, depois, por cobardia e para proteger o investimento realizado no parque que dá o título ao filme, se atrasa criminosamente na acção correctora do seu erro/falta original; onde, dizia, existia isso, no filme de Spielberg, há aqui o próprio exército (ou uma qualquer exclusivíssima "comissão secreta" dentro dele) que cultiva, por imperativos de ordem militar particularmente pouco ética e, especificamente, pouco humanista, o vírus--sendo que o resto do filme segue, em termos de tema, praticamente ao pormenor o antecessor ou antecessores aqui citados, entre inúmeros outros cujos títulos poderiam, de igual modo, ser citados a propósito...

O filme joga ainda (é outro aspecto--eu quase diria: involuntariamente...--interessante pela tipicidade de que, na realidade, se reveste) com terrores e fantasmas em maior ou menor escala (geralmente em... maior mas enfim!...) estavelmente implantados no subconsciente colectivo da sociedade norte-americana: nele baila, com efeito, a meu ver (e não só meu, aliás!...) a ideia/terror de saber como seria se, depois de levar a guerra a tantos pontos e lugares do globo, os norte-americanos pudessem, um dia, vê-la instalada, com a ferocidade de que ela tantas vezes se revestiu nesses pontos e lugares externos, fosse declarada na sua própria terra conduzida por esses mesmos que, em nome do povo norte-americano, a levam a todo o mundo da Somália ao Vietname, do Chile ao Iraque e ao Afeganistão.

Ora, também isto já "vimos" em "ene" filmes antes de "Outbreak" e nem é preciso chegar às wellesianas mas muito recentes "Guerras dos Mundos" cinematográficas ou (claro!) a determinados episódios do mega-clássico televisivo "Twilight Zone" no qual, sobretudo, na primeira série ainda a preto-e-branco, os terrores da guerra fria nuclear eram óbvios e, em alguns casos, gritantes senão mesmo evidentemente já para-neuróticos.
Não é, como digo, necessário remontar a qualquer dos casos referidos: basta pensar, por exemplo, em algumas sequências de "Village Of The Damned" de Carpenter (1995), por exemplo...

Outro aspecto ainda (este ligado a "coisas" como "Aracnophobia" de Frank Marshall, uma espécie de "western simbológico" disfarçado de filme "de calamidade/terror" ou a "Poltergeist" de Tobe Hooper, directamente respeito à questão da "culpa civilizacional" associada, sobretudo, ao genocídio índio e ao terror de imaginar ver os povos vítimas desse mesmo genocídio reerguerem-se para o vingarem nos próprios genocidas e que é obviamente um motivo ficcional onde não será difícil ver uma variante do anterior.

É esse, na realidade, o tema de "Poltergeist" (um filme simpático a que pessoalmente até acho, confesso, uma certa... 'graça') e, de algum modo não muito dificilmente demonstrável, aliás, também o de "Aracnophobia" onde as vítimas são agora os povos da América Latina sobre os quais, de igual modo, se fizeram tão continuada como, por vezes, drasticamente, como é sabido, sentir os efeitos do expansionismo comercial ianque que, no plano interno, havia já conduzido, na prática, ao quasi-extermínio das diversas nações índias de norte a sul do "seu" próprio território.

Em "Outbreak", o tema, de algum modo, "actualiza-se" e transfere-se agora para uma África que o "Ocidente" conserva como grande depósito global de matérias-primas essenciais ao seu próprio modelo de "desenvolvimento" para o que tem, como se sabe, constituído elemento absolutamente capital a conservação dos países produtores das mesmas, por evidentes imperativos de concorrencialidade ou, melhor dizendo, de bloqueio desta última, num estado de atraso industrial, por definição, essencial e crónico.

Então, é de África que vem agora a retaliação ou "vingança simbológica" na forma de um vírus que, após ter sido inadvertidamente 'exportado', é involuntaria mas devastadoramente reimportado, em seguida retornando na forma de uma arrasadora catástrofe sobre quem, originalmentre, o criou e exportou...

Para terminar, diria (é, também, uma velha tese minha) é inegável o interesse potencial--o interesse, sobretudo documental e antropológico/político--deste tipo de filme onde a sociedade norte-americana é, pois, posta, com a subtileza e o cuidado necessários, perante um aspecto verdadeiramente nuclear e essencial da sua identidade antropológica e cultu(r)al, digamos assim--aspecto sobre o qual discorre, como se sabe, com a sua característica perspicácia, Simone de Beauvoir no clássico "L' Amérique au Jour le Jour": a culpa.
A culpa individual mas, sobretudo, colectiva da qual a América tem, manifestamente, grande dificuldade em libertar-se--sendo que a sua ficção pop está, obviamente, marcada (e de que maneira!) por ela.

O problema é, volto a dizer, a repetição exaustiva de um temário que, de tantas vezes repetido, deixa objectivamente de operar como denúncia, passando no limite à condição intelectual e politicamente inofensiva de mero "suporte témico" intrumental do "caso de vida" ou "história de amor, renúncia e heroísmo" que constitui, afinal, a verdadeira chave do interesse comercial do "produto industrial" que é o filme--ou que são os filmes do "ciclo" ou "família" témicos aqui representados...

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