sexta-feira, 22 de maio de 2009

"O Bom, Velho 'Gil'"

O "velho" Gil, na rua da Verónica à Graça!...
Quantas (e que!) memórias guardo deste lugar hoje, finalmente, ao que parece (como quase tudo o mais, aliás!) dessacralizado e... "domesticado"!...
'Andei' no "Gil" no tempo em que, para o bem e para o mal, as instituições, dos liceus aos cinemas passando pelos cafés, tinham uma identidade e quase sempre uma alma próprias.
Nem sempre seria aquela que desejávamos que fosse: o "Gil", por exemplo, tinha um reitor tenebroso, um corpo docente escolhido que fazia da vida escolar uma espécie de "nau dos condenados" sempre que "havia" Física (com uma beirã 'de meter medo', de seu nome próprio Maria Augusta, um nome que me habituei, aliás, desde aí, a associar a torturas chinesas literalmente inomináveis...); Desenho (com um indescritível Pereira Martins, um fulano alto e magro, sempre vestido de preto, verdadeiramente medonho e com uma vocação inata verdadeiramente notável para interrogador da Pide) ou Português (com uma Ana Rosa Monteiro em tudo digna de qualquer um dos anteriores) e uma disciplina que, embora comparativamente tolerante (do "Camões", por exemplo, se dizia que era um "Tarrrafal educativo" sobre o qual pairava a figura referencial/reverencial e, de algum modo, também tutelar de Vergílio Ferreira, o "assustoso Vergílio" que havia, pouco antes, publicado o seu "Cântico Final" e a "Aparição" e do qual se dizia que nem valia a pena tentar porque "ninguém" humano o entendia...); pois, o "bom" do "Gil" era, apesar disso, ainda assim "menino" para converter cada manhã dos infelizes que o frequentavam numa espécie de agonia permanente, antecâmara do quartel e propedêutica do batalhão e da própria guerra que apenas se atenuava ligeiramente ao sábado quando as aulas, cansadas talvez de torturar e exacerbar angústias em botão, se limitavam, momentaneamente molificadas, ao inócuo "Canto Coral"...
E, no entanto...
...E, no entanto, apesar do "terror", havia as faltas dos professores (e não estou a ironizar, ham?...) passadas obrigatória mas também, no meu caso pessoal, gostosamente na Biblioteca do liceu lendo o Marryat, a Seyton e o Stevenson; os amigos (os maços de "Aviz pequeno" comprados a meias e as fugas para o Castelo e para o Vale Escuro--"para fumar"); havia a Feira da Ladra e os livros comprados, desde muito cedo, aos sacos cheios com o dinheiro poupado no eléctrico que foram cinco, sete e, por fim, oito tostões; havia esse soberbo bairro da Graça a toda a volta (que era um fabuloso universo cheio de recantos mágicos "bêbados de sombra" como dizia o Machado e que se estendiam, eternamente por explorar e por descobrir, da própria "Verónica" a Sapadores e à Paiva Couceiro (com o prodigioso "Royal", o torpíssimo "Cinório" e o enigmático, insondável, "Bairro Estrela de Ouro", à mistura uns com os outros, pelo meio); havia a Damasceno Monteiro e o homem dos jornais onde ao sábado era possível comprar o (caríssimo!) "Cine-Mistério" (quinze tostões, duas viagens de eléctrico!...) com as "novelizações" dos filmes "para maiores de 18 anos" que a inflexível e institucionalizada pudicícia oficial do "regime" de todo nos vedava, deixando-nos desoladoramente entregues à ingenuidade desajeitada, dificilmente descritível, dos "Abbott and Costellos" e dos "westerns" do "Olympia" com o John Payne (Payne, não Wayne!) e a belíssima Rhonda Fleming; havia a clara separação entre a noção abstracta de dever e a ideia libertadora, catártica (às vezes literalmente orgástica!) do prazer; havia S. Vicente, Alfama e o rio; havia as iniciáticas errâncias após as aulas pelas estreitas ruas que ligavam mais do que separavam via S. Tomé a Lisboa autêntica dos gatos, da roupa estendida e do sol gritando interminavelmente com uma inimitável e branca preguiça mediterrânica nas soleiras à Lisboa aristocrática, calculista e distante, incomparavelmente mais reservada e fria, de Pombal.
E tudo isso a partir do velho "'Gil'" e, no fundo, graças também a ele...
"Bom, velho 'Gil'": como o Tempo e a Liberdade te trataram mal!...

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