sábado, 9 de maio de 2009

"Aspectos antropológicos e históricos da questão linguística"

Muitas vezes (ainda que, seguramente, não as bastantes e não por parte das pessoas certas, na maior parte dos casos) se discute entre nós a questão da qualidade do ensino, de uma maneira geral e da do português, em particular.
Do ministério da educação, pouco há a esperarnestas (pelo menos, nestas...) matérias: o seu modo de trabalhar é, ao que tudo indica, legislar sem reflectir e, nas escassas vezes em que o fará, não legislar...

Mas não é, de facto, certo que o faça: nada há, com efeito, que nos dê a mínima prova (ou sequer indicação reconhecível) que o faça, pelo menos.

É, pelo contrário e por via de regra, uma tutela que não promove a reflexão de episteme sobre as diversas ciências ou ciencialidades constantes do conjunto do processo educacional; que não congrega a das pessoas que podiam efectivamente dar um contributo relevante para ela: não é, numa palavra, um órgão de tutela que se posicione social, histórica e até, de algum modo, civilizacionalmente (como seria, aliás, desejável que sucedesse numa verdadeira sociedade do conhecimento, numa gnoseotopia como a tão propalada e nunca seriamente considerada que este "veio ao mundo" prometendo patrocinar); não é, dizia, um ministério que desse mostras de entender que o seu papel na sociedade portuguesa e hoje deveria naturalmente ser o de se constituir como o "expressor" funcionalmente político de um conjunto de saberes mais ou menos autónomos mas idealmente complementares que, congregados todos num corpo orgânico verdadeiramente actualizado e idóneo de saberes, pudesse, então, gerar um paradigma ou um projecto realmente necessários e realmente modernos de "educatividade" para Portugal e para o século XXI.

Pelo menos...

É preciso dizer isto, penso eu, para enquadrar adequadamente as breves considerações que se seguem.

Para abordá-las, retomo, então, a ideia inicial: aquela que diz que, hoje, em Portugal se fala muito (embora também se fale mal...) de algumas das debilidades-chave do ensino em Portugal, designadamente do do Português.

E digo que se fala "mal" por quê?

Bom, exactamente porque, com demasiada frequência, quem fala o faz de uma perspectiva que é, sobreudo, administrativa e/ou legislativa, raramente epistemológica , mas sobretudo, porque geralmente quem o faz o faz desenquadrando o problema da natureza particular do "mal" de um quadro de objectivos à luz do qual as noções de "bem" e de "mal, de "certo" e de "errado" possam efectivamente fazer sentido estrutural, digamos assim.

Ou seja: o "bem" e o "mal" são (com excepção de um número reduzidíssimo de circunstâncias--estamos a falar de circunstâncias de ordem filosófica, existencial e especificamente ética que nada têm que ver, a não muuuito indirectamente com o universo linguístico como tal); o "bem" e o "mal" dizia são, pois, noções ou ideações estritamente contextuais, puramente modais, que derivam realmente do uso social que damos à língua não de qualquer atributo ínsito à matéria linguística pré-existenta às referidas circunstancias ou circunstanciações envolvendo o uso específico e concreto da mesma.

Vejamos: quando se diz, por exemplo, que hoje se fala em geral "pior" do que há trinta, quarenta anos aquilo que muitas vezes ocorre é que, porque não utilizamos a perspectiva objectualmente circunstanciante do historiador, formulamos uma conclusão que é realmente baseada na comparação de duas realidades distintas.

Até há trinta/quarenta anos, com efeito, o paradigma cultu(r)al de erudição (porque o uso dado ao conhecimento até, digamos, ao 25 de Abril--datação referencial--era em larga medida ainda visto como dispensando o teste validatório do investimento objectual imediato: directa ou indirectamente no próprio processo produtivo); até há trinta/quarenta anos, dizia, o paradigma cultu(r)al de erudição assentava, em larga medida, num conjunto de referências onde as ideias de "bom" e/ou de "bem", assim como as de "mau" e "mal" se mediam afuncionalmente na essência por si próprias, digamos assim.

Nunca chegavam a sair de si próprias para se avali(z)arem.

Pessoalmente, não separo este modo de considerar a "correcção" linguística da "questão dos universais".

Cultu(r)almente, vive-se entre nós numa sociedade que "acredita no universal", que crê que, para usar o jargão existencialista francês tópico, a essência das coisas precede (e determina, explica, fundamenta) a rerspectiva existência.

Quanto a esta em termos abstractos ou abstraccionais não se faz, não é feita--seguramente não de forma autónoma por cada um, segundo o projecto ou desígnio de natureza autonomamente individual: a existência des-modela-se a partir do arquétipo e traz-se gradualmente ao concreto.

Na realidade, de acordo com este padrão conhecer é, de algum modo, recordar.

O "bem" neste contexto, tem tudo que ver com a exactidão com que o processo configura a passagem do universal ao particular, da "potência", como diria S. Tomãs, ao "acto".

Considerei que a principal operação cognitiva, no contexto deste paradigma específico de aprendizagem se liga à ideia de "recordar" exactamente porque, nele, o principal motor é o passado.

Está no passado.

Das sociedades e dos indivíduos.

Está, diria, numa espécie de "Éden linguístico" (não fatalmente, embora: para isso, se aprende) perdido ao qual é necessário, em última instância, remontar.

Regressar.

Não será necessário ser especialmente arguto para entender onde se acha a "chave epistemológica e cultu(r)al" que abre este conceito de erudição e de aprendizagem.

Sempre disse que um modo assim estruturado de ver a "correcção" linguística tem tudo a ver com a "Moral" (os "bens" de uma e outra possuem uma estrutura identitária cultu(r)al comum, isso é evidente).

A partir, porém, do timidíssimo processo de "industrialização" da sociedade portuguesa iniciado por volta dos anos '70 (fins, talvez de '60) com a Reforma Veiga Simão começa a desenhar-se muito lentamente um outro modo de conceber o função social da Educação e, com ele, uma outra tipologia de "bem" e "mal" associado no outro extremo do 'arco', à função.

É, na didáctica das línguas estrangeiras, designadamente do inglês, o ascenso do "functional".

Aqui, a componente "moral" dilui-se, no limite, por inteiro.

Não é, note-se, que a questão da iniciativa e da criação linguística, no in/essencial, se altere, na passagem de um arquétipo educacional para outro: passa é a existir toda uma outra maneira (muito menos ligada à matemática--à álgebra--da re/produção pontual de pensamento) de conceber a des-modelação idiomática (associada esta de um modo muito claro à geometria da re/produção do mesmo pensamento, digamos assim).

"Des-modelam-se" agora verdadeiros "sólidos linguísticos", "cones", "formações piramidais", etc.: as famosas "estruturas" que é preciso arrumar no discurso de acordo com "padrões" ou "chaves" de significacionalidade tão pré-existentes à consciência pessoal como os anteriores.

Mas a questão base é: para que "serve cultu(r)almente" a língua?

No paradigma tradicional, ela não serve, propriamente: afirma-se.

Como o seu uso não determina a não ser muito episódica e muito marginalmente a sua forma (uma vez que o padrão é conservado rigorosamente estável novas formas só entram com autorização expressa de uma espécie de lato colégio, informal embora, de linguistas «reconhecidos» e autores com Camilo à cabeça) a aferição da 'qualidade' ou da "correcção" do material linguístico permanece, ela mesma, relativamente estável e fácil de fazer: na realidade é só remontar ao cânone.

O problema (a dúvida!) só começa verdadeiramente a pôr-se a partir do momento em que a idiomaticidade no País (e do País) se "funcionaliza".

Se "funcionaliza" ela e se "funcionalizam", a montante, os seus usos.

E começa a pôr-se exactamente porque derivando os mecanismos de aferição para o domínio do uso e da eficácia objectiva do uso, desapare a prazo o suporte imediatamente reconhecível estavelmente referenciador do cânone.

Voltando à questão essencial de saber para que servem as línguas: agora, elas (o português) serve ou servem objectivos muito concretos de comunicação ou comunicacionalidade.

É esta e é a eficácia desta que tendem a formular, em última (e nova) análise, a bitola da "correcção".

Agora, a língua (ou o uso específico dela) já não têm necessariamente de estar formalmente "certos" ou "correctos".

Hoje, concretamente, o problema passou a ter de, no limite, pôr-se nestes termos: se temos, como sociedade, um modelo de Educação ou de educatividade que deixou já, no essencial e de uma maneira geral, de estar estruturalmente articulado, para o bem e para o mal, com a realidade concreta, específica, da produção (como esteve ao longo de uma parte significativa do século XX português onde uma sociedade em larguíssima medida, como disse, pré-tecnológica absorve o essencial da produção escolar de quadros, seja qual for o seu nível); se, dizia, o paradigma actual de educatividade deixou de estar em sintonia com a realidade objectiva da produção, a qual deixou já de absorver--longe disso!--a mesma percentagem de quadros); se muitos desses potenciais quadros saem da Escola diplomados e vão, depois, achar emprego em "call centres", caixas de supermercado e por aí fora, a questão que temos de pôr desde logo e cada vez mais é a de saber que relevância estrutural tem um domínio formalmente perfeito da língua que, por um lado, não tem uma utilicidade prática (porque para accionar uma caixa de supermercado ou responder num "call centre" não é exactamente a mesma coisa nem tem necessariamente o mesmo tipo de requisito formal no âmbito da produção de discurso linguístico do que tem para um advogado ou até o clássico gerente de um banco, por exemplo; não o tem seguramente em termos da capacidade para subtilizar muito o discurso, de torná-lo preciso, exacto, rigoroso, matizado em termos do "esmalte" ou da nuance que ele é capaz de gerar e que se adquire "visitando", ano após ano de escolaridade, cuidada e cuidadosamente a língua "por dentro" e por aí fora); e, por outro, deixou já de constituir um "valor" em si em termos sociais o "falar bem" ou "falar correctamente".

A equaconação do problema da "corrctividade" linguística tem, queiramo-lo ou não, de passar, de um modo ou de outro, inevitavelmente por aqui: por determinar que critério vamos adoptar para medir a "qualidade" do discurso linguístico.

Isto é: se esta se fundamenta, como, durante muitas décadas entre nós, no próprio discurso como tal e, de algum modo, como se a "realidade e, concretamente a História, não existissem" ou se é ao uso prático, concreto, que vamos uscar o fundamento estável de "correctividade".

Sendo que, nesse caso, e enquanto todo o paradigma cultu(r)al no sentido mais amplo, mais lato, do termo, não se alterar, não é irrazoável, imaterial nem absurdo pensar que a actual situação em que a língua aparece como algo profundamente degradado e não relevante em si próprio enquanto «objecto» ou até enquanto «indivíduo»; a presente situação, em que a língua (exactamente ao contrário do que sucedeu dantes até um excesso e um limite apenas contextualmente explicáveis) nos aparece completamente desessencializada como «personagem nobre e determinante» do processo comunicacional e de formação de pensamento; assim sendo dizia, não será, pois, nem imaterial nem absurdo pensar que essa degradação objectual (tética, possível?) da língua como componente viva do processo configura, afinal, algo de não apenas "legítimo" e objectivamente fundamentado mas, no limite, de inevitável e fatal.

Concluindo: não basta dizer que a língua "é cultura"; que ela "é História"; que ela é parte integrante da "realidade".

É, diria, essencial prceber o que significa realmente aquilo que estamos, também nesse caso, a dizer...


[Imagem ilustrativa extraída, com a devida vénia de geocities.com]

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