segunda-feira, 25 de maio de 2009

"Le Chancellor" de Jules Verne

As leituras conduzidas (com a mais deliciosamente aleatória--e deliberadamente caótica!--das autonomias e das liberdades) ao sabor destes longamente aguardados tempos de reforma levaram-me desta vez, de forma, aliás, muito pouco provável e até escassamente previsível a Júlio Verne.

A um Júlio Verne francamente pouco conhecido e 'menor', em todo o caso--o Verne de uma "coisa" para mim até hoje completamente desconhecida intitulada "Le Chancellor".

Ora, a obra em causa é, como disse, claramente "um Verne" 'menor'.

É também "um Verne" sem argumento, sem propriamente aquilo a que, no Cinema, se designa por um 'script ': é, na realidade, uma longa crónica diarística de um naufrágio e a obra arrasta-se, desigual e sempre, na realidade, completamente incapaz de consolidar-se e definir-se como ficção, com personagens que, de todo, não se destacam, não se individualizam, não "vivem", "entrando" e "saindo" da narrativa ao sabor das circunstâncias, imaginando talvez o autor que, tendo optado por recorrer ao (aliás, em si mersmo, legitimíssimo) expediente de contar a "estória" em forma de "Diário", estaria dispensado do imperativo de ter de conferir estrutura efectivamente orgânica ao seu conto.

Se foi esse o caso, é preciso dizer que o intento não se concretizou.

De todo.

"Le Chancellor" é, na realidade, uma claramente deficitária e, no fundo, desajeitada para-ficção em que nada efectivamente acontece ainda quando... "tudo" acontece; em que não há verdadeiras 'pessoas ficcionais' e que--pior ainda!--coisa alguma, na realidade, em última instância, justifica como livro.

Eu diria, enquanto leitor, que é uma excelente ideia (ou um conjunto de excelentes possíveis mensagens e ideias: o tópico do canibalismo, no fim, é aterradoramente actual e/porque fortemente simbológico) a que falta, contudo, de forma gritante, uma "estória", isto é, um suporte ficcional específico (lá está!) orgânico que, como disse, a legitime realmente em termos narrativos, digamos assim.

Tratar-se-á, assim, de uma obra sem interesse, cvompletamente inútil?
Não iria ao ponto de afirmá-lo. A obra tem, para mais tratando-se de Verne, um autor consagrado (embora excessivamente "tipificado" e conotado: "é" um autor de livros "para a juventude"...), diversos aspectos interessantes, relevantes mesmo a mais de um título, ainda mesmo quando não é, realmente, possível dizer que se trate de um grande momento de literatura e/ou ficcção--o que pode não ser, aliás, diga-se de passagem, exactamente a mesma coisa...
O interesse da obra reside, a meu ver, sobretudo, em dois pontos:

-primeiro, desde logo tendo em vista os inúmeros amantes e admiradores da obra de Verne, na possibilidade de conhecê-lo melhor através de uma das suas obras secundárias por meio das quais é possível a esse olhar em maior ou menor escala, exegético perspectivar e enquadrar mais completa e mais adequadamente o objecto da respectiva admiração.

De certo modo, com efeito, é possível observar a "opus" de Verne (ou, em tese, a de qualquer outro autor seja de que literatura ou tempo for) "in the making" fazendo o olhar crítico e analítico que sobre ela(s) intentemos lançar, incidir sobre a própria "carpintaria textual" aqui imperfeitamente recoberta pelos necessários "acabamentos textuais", ou seja, fazendo esse mesmo 'olhar crítico e analítico' incidir sobre aquelas circunstâncias narrativas ou narracionais sobre as quais o "dedo composicional" do Autor não pôde, não conseguiu (ou, em alternativa, não terá querido) por uma razão ou por outra, actuar do mesmo modo eficaz e definitivo pelo qual interveio nas obras mais conhecidas: naquelas, digamos assm, referenciais.

Esse, pois, um universo no seio da qual a obra tem tudo para revelar-se relevante: o dos "vernistas" e dos críticos ou historiadores--dos exegetas--"vernianos" mas também literários, em geral.

-um outro constituído pelos antropólogos, sociólogos e historiadores (mas não necessariamente apenas dos da literatura: dos historiadores 'tout court') que aqui acharão seguramente matéria(s) de particular interesse.

Cito algumas:

a) É sabido que verno foi, em mais de um sentido, foi um precursor senão mesmo uma espécie de "áugure" ou mesmo, para alguns, de 'profeta'.

É costume afirmar que o foi de algumas invenções e descobertas mais ou menos científicas e/ou industriais hoje comuns.

Ora, eu penso (e o livro, de algum modo--a meu ver, pelo menos--confirma-o) que, se o foi especificamente disso, ele o foi também de um certo desconforto e de uma certa inquietação epistemológica e especificamente humanista subliminar que eu diria que correu, de algum modo, paralelamnte ao próprio positivismo de expressão materialista e especificamente tecnocrata ou potencialmente tecnocrata cuja glorificação não é menos comum associar, com razão ou sem ela, ao seu nome.

Há, designadamente na última obra sua conhecida, a visão, de algum modo, premonitória e até alegórica ou alegorizadora de um mundo em regressão até ao caos original, na forma da dissolução material do próprio planeta numa imensa massa líquida que tudo (cidades, países, continentes, espécies animais, humanidade) cobre--e anula.

Isto é, a intuição consciente ou inconsciente (e, acrescentaria eu: cada vez mais clara à medida que a idade e a observação de Verne vão aumentando) de uma espécie de círculo completo traçado no curso da própria História humana a qual, após ter sido por si própria conduzida a um pico de sucessos e triunfos materiais (lá está: científicos, tecnológicos, etc.) parece apostada (ou condenada?) a trazer-se a si mesma de volta ao início de "tudo"--ao nada, no caso sa citada derradeira obfra conhecida de Verne--ideia que fica, aliás, muito claramente induzida neste "Le Chancellor", designadamente nas sequências finais em que Verne faz uma descrição verdadeiramente arrepiante da humanidade deixada entregue a si própria e aos seus instintos mais elementares e primários.

b) A ideia de que a um progresso técnico e científico global pode não corresponder necessária e automaticamente um igual (ou equivalente) progresso de natureza realmente civilizacional e especificamente humana, humanista.

Esta ideia ou este motivo não serão, como se sabe, propriamente em si mesmos algo de efectivamente novo na História da Cultura e das Representações Cultu(r)ais Humanas.

De facto, ela prende-se com um outro anterior motivo cultu(r)al ou (como costumo dizer:) "filo-bio-representema" e/ou "filo-bio-cognema" humano ligado, por sua vez, directamente à ideia primitiva de "tabu"--uma das mais primitivas formas de "conhecimento" e reorganização crítica da realidade que, como é sabido, se... conhecem.

Do tema ou motivo bíblico da expulsão do paraíso (ou da mulher de Lot ou de tantos outros lugares selectos do temário ou mitário bíblico) a Mary Shelley e ao seu ultra-famoso "Frankenstein" são sempre versões num certo sentido "concêntricas" ou "mutações" de um mesmo "bio-filo-cognema" básico que, a meu ver, continuamente se recria a si mesmo indo, por exemplo, desembocar directamente no "representema" antropológico clássico do "aprendiz de feiticeiro", por sua vez, claramente ecoado naquela "impressão" subtil que da obra de Verne, neste caso, em tese, se desprende e que já atrás citei: a que diz (ou insinua--e neste caso com uma ferocidade inaudita...) como já atrás avancei, que muita técnica--muito progresso material e tecnológico--e autêntico Progresso civilizacional em termos globais não têm obrigatoriamente de coincidir entre si, sendo mesmo que o desencontro objectivo de ambos pode até, no limite, conduzir a uma regressão radical da Humanidade, recolocando-a no exacto ponto em que a evolução filogénica e biológica se encontrava quando o Homem emergiu finalmente de entre as restantes espécies animais.

c) A ideia, complementar da anterior, de que, por muito que se avance cientificamente, é essencial não negar, no limite, o papel não-racionalmente "significador" global de Deus conferindo ao universo uma "ordem" meta-física final que a Ciência não explica (que ela não tem propriamente de explicar) ou sequer obrigatoriamente de entender.

É este, diria eu, o papel, em maior ou menor escala "simbólico" ou "simbológico" preciso, das personagens dos Letourneur, pai e filho, assim como de Miss Herbey, uma espécie de (e não o digo de forma completamente "inocente" nem gratuita, entenda-se...) Pai, Filho e... Espírito Santo no contexto simbológico latente possível da "estória"...
Qualquer uma destas ideias é obviamente algo de, ainda hoje, no essencial, actual e moderníssimo--hoje que o positivismo oitocentista deixou marcas poderosíssimas na própria configuração global de um mundo onde a espiritualidade e, especificamente, os valores de puro humanismo estão longe de constituir referências ou "âncoras cosmovisionais" básicas ou, seja de que modo for, efectivamente centrais e, ainda muito menos, essenciais, ao próprio paradigma ou paradigmas primários de "progresso" e/ou "desenvolvimento".

Comprovando a actualidade desta visão subliminar do livro de Verne, este pode dizer-se que, curiosamente, antecipa muito claramente "coisas ficcionais" cuja actualidade ninguém poderá questionar como, para não irmos mais longe o clássico "Deliverance" do cineasta norte-americano John Boorman cuja "mensagem" final está tão próxima daquela que entendo ser, no limite, a do próprio Verne que é, no mínimo, extremamente difícil não pensar imediatamente num no momento de pensarmos e enquadramos temática e historicamente o outro.

Para terminar: mau grado as óbvias fragilidades intrínsecas, designadamente ficcionais, de "Le Chancellor" (fragilidades envolvendo, desde logo, também já o disse, a--imperfeitíssima--construção/articulação das personagens; a--rígida e repetitiva--estruturação do edifício narrativo e especificamente textual, também) a indisputável modernidade da Obra de Verne pode, afinal, ser algo de teticamente mais rico e complexo do que a mera antecipação de alguns dos "gadgets" por meio do recurso acrítico intensivo (de facto, num certo sentido, exclusivo e até obsessivo) dos quais se passou, em termos civilizacionais globais, do ideal ou ideais "gnoseotópicos" oitocentistas lighados à ideia do triunfo final da Ciência como fundamento da príopria vida social e política dos povos ao mundo aterrador completamente descarnado e desumanizado de "1984" de Orwell e do "Brave New World" de Huxley...

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