Começo por registar um curiosíssimo texto de José Vítor Milheiros constante do "Público" de 29.04.09 intitulado "A frescura do franchising" e que é, um pouco, o "retrato" muito entendivelmente melancólico e desencantado de uma certa realidade cultu(r)al (eu chamar-lhe, por analogia... "pós-urbana") do País e, se calhar, também do resto do mundo de hoje.
Eu gosto de dizer que "sou do tempo de" (há já algum... tempo que entrei nisto de achar que sou decididamente de... "outro" tempo, daquele "em que...", como se, recordando voluntária ou involuntariamente a admirável figura do Cristo e da sua subtilíssima experiência de deliberada extra-mundialicidade, me fosse já gradualmente preparando para a despedida final deste--que me parece, aliás, cada vez mais baço, improvável e, por isso, inimaginavelmente difícil de habitar e, sobretudo, de... protagonizar); bom, mas eu gosto, então, dizia, de me referir a mim próprio como alguém "do tempo de" que, obviamente, não tem nada ou muito pouco em comum com este.
Sou, desde logo, do tempo dos cafés ou das... "cidades-café", das "vilas-café", dos anos '50 e '60 em Lisboa.
Pelos vistos (e ouvidos. E lidos!) a fundação destas cidades ou vilas é muito anterior à minha própria experiência delas.
António Ferro, (o "semanticamente amplo, febril e difuso, descentral Ferro", como gosto--julgo que com alguma propriedade e razão...-- de designá-lo) refere-se-lhes numa das poucas coisas verdadeiramente consideráveis que escreveu (*) traçando, num rasgo de imprevista inspiração, o retrato das respectivos "grandeurs et misères" numa Lisboa doentiamente salazarusca, baça e cataléptica onde eles luziam, "malgré tout" como "as close to making sense and possessing any form of an intelligence of reality as we as a nation might aspire to get"...
Nessa narcotizada Lisboa de '50 (que era, ainda, muito a Lisboa de Brun e de Lobato, a Lisboa das 'botas' e dos ardinas, dos marçanos e dos "ratos-de-repartição", a Lisboa sonsa e ridícula que fez de um certo parisismo meticulosamente filtrado--e severamente vigiado!--um parisismo com batatas e grelos, uma caricatura de Bordalo e, nesse sentido, uma espécie de peça de 'louça mental'... das Caldas permanentemente exposta no aparador carunchoso do Dr. António...); nessa Lisboa bolorenta, ressumando a "bafio mental" por todos os poros os cafés num vai-e-vem ensonado entre o Chiado e o Alto do Pina, o café--o "caféismo"--impunha-se como uma autêntica necessidade... fisiológica num povo proibido de juntar-se a si próprio para pensar.
Havia (julgo já ter por aí algures falado nisto) o "Lisboa" (um mundo proibido em cujas "costas marítimas" havia o Parque Mayer--o lugar propriamente dito e o... "conceito"--e bares "fantasticamente dissolutos", segundo os padrões de... "dissolução" e marialvismo dessa Lisboa "sacrista" e paroquial do ainda muito estremunhado pós-guerra peninsular); o "Lisboa" que era o café dos parolos novos-ricos de samarra e anéis nos dedos que iam lá gastar o dinheiro que não lhes custava a arrecadar, acabadinho de chegar das herdades do Alentejo onde os outros suavam por--e para!--eles...); havia o "Avis" (que era o dos sportinguistas e, dizia-se, também o dos pides e que ficava perto do "Pirata" que não era café mas bar e servia umas "bebidas maricas" castanhas, gasosas e geladas, que eu adorava sem poder obviamente admiti-lo exactamente por serem "bebidas maricas" num país onde só não era bebida "maricas", no fundo, o fumegante hirto e crespo carrascão servido nas saudosas carvoarias da Mouraria e arredores); havia o meu preferido, o "Gelo" onde vi, pela primeira vez o O' Neill, esse genial e genioso, bonómico, "Prévert da Rua Nova do Almada" ou "Cesário Verde da Politécnica" que, um dia, me ofereceria--quem havia de dizer, ham?...--um autógrafo enorme de um poema seu por se ter esquecido de que combinara almoçar comigo algures na Rua dos Correeiros e que partilhva a minha paixão pessoal pelo espanhol, meu homónimo, Machado...-- havia o "Palladium", à esquina da Calçada da Glória e a dois passinhos apenas do "perigoso" "Príncipe Negro" e a quatro do "Augusto dos Livros" lá mais para cima, na rua com o mesmo nome onde estudei noites a fio (no "Palladium", não no Augusto...) e onde senti, pela primeira vez em que fiquei a estudar até à hora do fecho já de madrugada, que já "era crescido" porque, quando saí, tinham acabado os autocarros e eléctricos e a cidade se havia, na minha ausência, convertido misteriosamente numa espécie de imenso e deliciosamente pecaminoso "Intendente de luxo", onde os marujos e os magalas eram alentejanos ricos de táxi e as "velhas meninas" desdentadas do Benformoso se haviam, por sua vez, metamorfoseado em Brigittes Bardots saltitantes e acabadinhas de perfumar...
E por aí fora.
Nada que se parecesse com MacDonalds (Murk Donalds? Muck Donalds?...).
Uma das tragédias da globalização vem precisamente da incapacidade de se perceberem os mecanismos precisos da formação da identidade, individual e colectiva.
A formação da identidade resume-se, na (in) essência, diria eu, a uma pura técnica inscrita nos genes (o próprio Freud começou, como se sabe, a estudar a hipótese de alargar o conceito de "arquitectura", "desmodelação", "duplicação" ou "edificação edípica" aos colectivos humanos i.e. às "culturas" ou "universos cultu(r)ais" como tal) segundo a lógica específica inerente aos processos de re/produção natural da "realidade biomórfica"--triunfo e fixação dos "paradigmas triunfantes" de sobrevivencialidade e respectiva padronicização segundo quadros dotados de expressão biomórfica funcionalmente duplicável.
Ora, a minha própria tese é que, quando se verificam interferências demasiado sensíveis (e, por conseguinte, disfuncionais) a nível das formas encontradas pelas "culturas" humanas para re/produzir-se ou seguir re/produzindo-se, as sociedades como os indivíduos entram em crise identitária mais ou menos profunda, desaparecendo aquilo que neles opera como uma pulsão gravitacional absolutamente determinante: a dimensão (trata-se, efectivamente, de uma verdadeira dimensão essencial aos funcionamento normal dos processos da formação da "identidade") a que atribuo, pessoalmente, a designação comum de habitualicidade que é dada, nos estágios precoces do processo secundário de identitarização, precisamente pela existência de um quadro muito específico de proximidade material mas, sobretudo, funcional ou funcionante dos modelos relativamente aos elementos a modelar.
A "normalidade" (que é a base de toda ou quase toda a ética: daquilo a que consagrámos ou abstraímos e "culturalizámos" secundária ou terciariamente sob essa designação) não passa, no limite efectivo, no limite real, de um elemento agregador ou mecânica (mecanicionalmente) integrador do processo global de duplicação funcional do paradigma biofilomórfico triunfante como tal, isto é, do mecanismo ou mecanismos específicos de «conversão funcionante» do geral em particular.
A normalidade é um património integrador essencial cujo elemento transmissor básico e primário é o modelo próximo--e a proximidade do modelo.
Eu diria: o conteúdo específico deste não é (está longe de ser!) naturalmente essencial: a forma é tudo.
O indivíduo, tal como eu o vejo, limita-se a mediar o processo: não o determina autonomamente nem, no fundo, dispõe de aptidão natural para "significá-lo".
A palavra-chave é, diria eu: mediação.
Ou seja: a identitarização, nos indivíduos como nas suas comunidades, é uma cadeia desmodelacional secundária contínua e funcionalmente "orgânica" que não pode, devido justamente à sua conformidade muito concreta e muito precisa com os mecanismos naturais de re/produção funcional de realicidade de que o Édipo freudiano representa, a meu ver e em tese, uma mera fracção" do todo, que não pode ser impunemente quebrada.
Nas formas não-conscienciais ou não-conscienciadas de vida, o problema, por se encontrar num estádio mais primário (no sentido de se achar, em muito maior medida, genetizado, isto é, de não depender tão centralmente de uma interpretação secundária ou terciariamente refocalizada numa "consciência" exterior ao próprio processo em si) não se põe.
Mas na única espécie conscienciada que é o Homem, o problema põe-se mesmo.
Tendo todo o processo de desmodelação identitária sido já trazido pela "consciência" para o âmbito secundário ou terciário do social e do cultu(r)al, passou a depender, de modo absolutamente capital, da forma que à identidade (e, muito particular e muito relevantemente, aos mecanismos que permitem re/produzi-la) assim como à "cultura" especificamente atribuímos.
Quando o desenho básico das "culturas" não é capaz de conservar os modelos suficientemente próximo daqueles que eles devem influenciar e, em úlima instância, determinar (por mimetismo ou "rejeição significada", como no caso do surrealismo); isto é, quando o "horror ao demasiado grande" (que é uma lei básica do real ao lado da que se refere a um outro "horror", "ao vazio", nesse caso, o que ocorre é que toda a organicidade ecológica do processo se desune e a crise sobrevém, em tese, inevitavelmente.
Regressando ao concreto: por exemplo (entre inúmeros outros exemplos possíveis) os nossos antigos cafés (como os liceus, cada um deles, à época, portador de marcas identitárias específicas que os colocavam num lugar cultu(r)al-funcional ou funcionante privilegiado) situavam-se numa espécie de "lugar geométrico", a seu modo, verdadeiramente determinante ou determinacional no contexto de um processo cultu(r)al global (ecologicamente global) de identitarização onde os modelos (os adultos, todo um conjunto de práticas e condutas precisas a eles cultu(r)almente associadas) eram estrategicamente colocados à disposição--naturalmente acessibilizados--aos restantes elementos do todo antropológico e cultu(r)al.
Estamos, repito, a falar de processos filomórficos latos--não a falar dos conteúdos sociais e políticos que permitiam a sua realização ou concretação específica.
Esse é outro problema a que, de resto, não fujo.
Mas é, de facto, outro problema ou, se assim preferirmos dizer: outro aspecto do problema.
Aqui interessa-me, sobretudo, incidir as minhas reflexões no âmbito filomórfico e antropológico.
A grande questão que se levanta hoje nestes últimos campos particulares é o de evitar que o "demasiado grande" venha interferir disfuncionalmente com os mecanismos naturais de formação da identidade--das nossas identidades individuais e colectivas, europeias e até mundiais.
É essencial que percebamos que só se pode chegar naturalmente a... Paris partindo naturalmente da assunção e interiorização do Alto do Pina ou de Arroios e dos Anjos, do mesmo modo que só chegaremos a "Estrasburgo" e a "Bruxelas" ou ao tal "Murk" Donalds quando tivermos "metabolizado" a "experiência" da Rua do Lá vem Um ao Martim Moniz e a do café "Gelo" ou do "Monte Carlo"...
NOTA
(*) Cf. , "Obras de António Ferro", 1º vol. "Intervenção Modernista, Teoria do Gosto ", ed. Verbo, Lisboa, Março de 1987 ("Cartas do Martinho")
[Na imagem: o extinto Café "Monte Carlo", na Fontes Pereira de Melo, durante algum tempo, lugar de encontro dos artistas que, nos anos '50, '60 e parte de '70 actuavam, ali mesmo ao lado, no Teatro Monumental, um dos clássicos do "caféismo social" lisboeta...]
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