sábado, 23 de maio de 2009

"Ciciollina e o libertinismo como «comédia ontológica e existencial»"

Cicciollina ou o apogeu do kitsch.
Pronto!
Não vou negar!
Chamem-me o que quiserem mas a verdade é que tenho mesmo, confesso, um fraquinho muuuito especial por ela...
Aquela ideia de concorrer a um parlamento político (numa sociedade e num país que geraram, por exemplo e entre muitos outros, um Andreotti, um Craxi, um Bossi ou um Berlusconi é (ninguém poderá honestamente contestá-lo!...) uma provocação e um sarcasmo--uma forma de intervenção, queiramo-lo ou não, política!--de autêntico génio!
Chamar, na prática, àqueles figurões todos reunidos uma cambada de prostitutas e ao areópago onde escandalosamente campeiam um autêntico filme pornográfico não é para todos!
Pessoalmente, tenho de admitir que não resisto a uma boa provocação.
Mas há também um aspecto mais sério no "cicciollinismo" e esse envolve o corpo e as suas 'funções' assim como a, sem dúvida necessária--essencial e, sobretudo, urgente!--des-mistificação da estúpida atitude cultu(r)al obsessivamente auto-repressiva e auto-punitiva--auto-escamoteadora--relativamente a ele, comum nas sociedades latinas e designadamente mediterrânicas e/ou peri-mediterrânicas.
Nestas, com efeito, um absurdo dualismo de incidência fortemente maniqueizada em cujo contexto o corpo (que é, todavia, a nossa porta de entrada no grande universo material original que começamos--e acabamos...--por ser) faz com que o vejamos invariavelmente como um intruso e um estorvo importuno à experiência única e irrepetível de um suposto meta-ser que o transcende, antecede e deve, tão forçosa quanto arbitariamente, subjugar.
A prevalência e a persistência de uma fortíssima tradição dual e dualista judaico-cristã, "mutada" em inúmeras representações de natureza existencial, genericamente cultu(r)al e algumas até com expressão civilizacional própria têm constituido um pesado obstáculo a uma cultura de verdadeiro Conhecimento e de idónea valorização da condição humana como tal.
Queiramo-lo ou não, as provocações do tipo da que Cicciollina soube meter numa operação de marketing pessoal particularmente subtil e astuciosa contribuem (idealmente, de modo decisivo) para a reabertura do debate imediatamente político, é verdade (quem é mais indecoroso?
Uma Cicciollina que vende o corpo ou um Berlusconi que vende... uma sociedade e um país--admirável--inteiro?...) mas também e sobretudo cultu(r)al que é essencial fazer em torno do modo estável, característico, como nos relacionamos com o nosso próprio Eu e de uma perspectiva mais ampla e ecoforme com a materia e o real, em geral.
Uma ampla e correcta re/leitura de Sade começa, de algum modo, na voluntária ou involuntária 'actualização' ou "aggiornamento" que dela fez esta astuta ninfa húngara de silhueta diáfana e hábitos libertinos que faria, seguramente, as delícias cosmovisionais--talvez mesmo uma causa e matéria para uma nova "Justine"...--do autor da original para já não falar das de um Genêt ou até de um, apesar de tudo, mais comedido Vaillant...

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