Aproveitando o ensejo oferecido pelo jornal "Expresso" que, como se sabe, em articulação com a revista semanal "Visão", decidiu recentemente distribuir com a sua edição regular dos sábados um pequeno acervo de versões-DVD de películas do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, pude ver (ou, em alguns casos, rever) um razoável núcleo destas, algumas das quais, confesso, desconhecia por completo.
Por estranho que possa parecer tratando-se de um dos grandes sucessos do realizador de "Kika" (até ao presente, claramente a minha preferida...) encontra-se neste caso o oscarizado "Habla Con Ella" de 1999.
Ver ("visionar", como decididamente prefiro dizer) o filme permitiu-me, devo desde já dizer, confirmar a veracidade pontual de um velho aforismo popular que se refere a determinadas coisas ou até mesmo pessoas (que até um dado momento das nossas vidas, ignorámos ou simplesmente, por uma razão ou por outra, desconhecemos) dizendo do facto que não sabíamos verdadeiramente o que estávamos com isso a perder...
Com efeito, o filme é, é preciso desde já dizê-lo, um objecto absolutamente único e fascinante perante o qual, diria, é muito difícil--senão mesmo materialmente impossível--permanecer, em última instância, indiferente.
É, desde logo, um daqueles "objectos narrativos" e/ou, de um modo mais lato, "estéticos" insólitos (não especificamente cinematográficos, aliás) e completamente inclassificáveis cuja relação com quem deles se acerca para frui-los possui a rara (e num certo sentido: ideal) característica de situar-se sempre num plano crítico, de um modo ou de outro, colocado para além do domínio da pura e limitada Estética.
Ou seja: trata-se de "objectos" dos quais é (volto a dizer: sempre!) necessário dizer mais alguma coisa para além do normal apuramento ('normal', obviamente tratando-se de obras ditas 'de Arte') do respectivo conteúdo específico em "beleza" ou até, no limite, em "perfeição".
É, diria eu, uma espécie de muito lata "categoria" mais ou menos 'existencial' ou 'de episteme' onde se incluem "coisas" como o que de mais pessoal e característicamente "baconiano" nos chegou saído dos pincéis de Francis Bacon (ou, noutro exemplo, de Paula Rêgo); o que de mais retintamente "gaudiano" saíu da mão de Gaudì ou até (por que não?) o que de mais especificamente "profoffiefiano" saíu da de Prokofieff e de "scönberguiano" da de Schönberg, para citar apenas alguns "casos" e exemplos.
Alguns "casos" exemplares.
Obra sempre tendencialmente sanguínea e labirinticamente seminal--sempre latentemente escatológica e visceral...--"Habla Con Ella" resulta ser, no limite, um "cross" verdadeiramente fascinante e pessoal, entre a "estória" «de fantasmas», a alegoria abstracta (o "conto moral" ou "com uma moral") e a narrativa infantil ideal, isto é, aquela em que se encontra tessitariamente plasmada essa característica perfeita e única das crianças que consiste em serem elas completamente cegas perante as implicações, categórica e categorialmente, "morais" dos adultos e, em geral, das pessoas que, adultas ou não, perderam já, de um modo ou de outro, a inocência original com que possivelmente cada um de nós chega a este mundo...
"Estória" de fantasmas porque, no filme, ironicamente apenas se fala (e até se namora!) com fantasmas, com espectros ou mortos.
Que o mesmo é dizer: no filme, apenas com os mortos a comunicação e o Amor são possíveis...
Dito de outro modo, ainda: vivemos num tempo em que apenas os mortos e os espectros nos ouvem ou em que apenas nos chegam, quer aos sentidos, quer, noutro plano mais íntimo e pessoal, aos próprios sentimentos como tal, as vozes silenciosas e únicas, impossíveis, irreais, dos mortos e dos fantasmas.
...O que nos coloca, diria eu, directamente no âmbito da segunda componente ou ângulo do "cross" atrás citado: o da alegoria moral "abstracta".
Grafo "abstracta" com aspas exactamente porque, graças ao seu modo muito pessoal ou muito... "almodovariano" de encenar a... "tese" em causa", Almodóvar consegue sempre contornar com evidente sucesso, com brilho e uma discreta, notável "inteligência narrativa", o perigo da contaminação do filme pela retórica e pelo indesejável didacticismo ou simplismo--senão mesmo aberto moralismo--em que não seria, em última análise, muito difícil que outro cineasta ou outro narrador, em geral, menos hábil e esclarecido, caísse.
As personagens que o cineasta espenhol constrói para dar corpo e rostos à sua "estória" (que é, de facto, em sentido literal sua: para além da realização também o argumento de "Habla Con Ella" é do próprio Almodóvar) a começar pela soberba 'persona' de ficção que é o enfermeiro Benigno (repare-se na ironia do próprio nome muito subtil e muito inteligentemente potenciador de um certo muito disscreto mas também muito "almodovariano" burlesco atrás do qual o realizador esconde, aliás com admirável contenção e/ou discrição, a defesa da ideia bíblica básica de que "o reino dos Céus pertence sempre, em última análise, aos pobres de espírito", na corte dos quais o simpático e indefeso, marginal, Benigno obviamente tem lugar garantido...); as personagens, dizia, que Almodóvar constrói para fornecerem à "estória" rosto e corpo, exactamente porque são seres humanos e não mais ou menos minuciosas "ilustrações" ou tipos permitem-lhe que a enunciação da tal "moral" bíblica final nunca chegue até nós envolta, por outro lado, nas roupagens sempre indesejáveis e sempre narracionalmente importunas e impertinentes (porque menorizadoras, quer da desejável humanidade ideal intrínseca das figuras ficcionais, quer sobretudo da nossa própria humanidade-- e até da nossa inteligência!--de espectadores) do óbvio e do ostensivo.
Benigno não é um ser perfeito (longe disso!): é sim uma criança grande ("subnormal", lhe chama, a dado passo, o que parece ser o director clínico ou o gestor-chefe do hospital...); um ser puro (e, nesse sentido, naturalmente a-social senão mesmo claramente anti-social: um verdadeiro "marginal", um pequeno e discreto 'Charlot andaluz' (curiosamente, uma das filhas deste, Geraldine, figura no elenco do filme...) perdido num mundo completamente àparte do da maioria e/ou da "ordem", fora do qual, aliás, a completa, "perfeita", inocência de que ele é portdor e "exemplo", se confunde perigosamente com crime e baixeza, puros e... "simples").
E é precisamente porque Benigno não é perfeito que o "risco de moralismo" potencialmente contido na 'defesa ficcional' da tal ideia de que apenas os pobres encontrarão um lugar verdadeiramente seu no reino dos céus não consegue entrar no filme.
Mais: a inteligência narrativa de Almodóvar vai ao ponto de introduzir, sim, mas a fortíssima sugestão de uma inteligentemente "encriptada" problematicidade final na formulação dos nossos juízos morais ao relacionar muito subtil mas, de modo algum, gratuitamente a 'violação' de Alícia por Benigno com o despertar físico final--ou seja: com a cura--desta...
Uma variante subtilíssima do velho aforismo anglo-saxónico de que "out of the mouth of babies does the truth produce itself" ou coisa que o valha...
Por fim, vale a pena referir aquilo que Unamuno chamaria o [inteligente!] "casticismo" do filme.
Um "casticismo" onde irrompe, por vezes, irreprimivelmente um certo "kitsch camp" (lá está!) retintamente "almodovariano" mas que ecoa também, para além de uma pós-modernicidade muito fácil de voluntária ou involuntarianente nos chegar a todos... "por via aérea") a "revisitação crítica" (e, todavia, também ela objecto de mais ou menos reconhecível "ambiguicização" de "um certo" cinema espanhol muito anos '50, isto é, muito "Sara Montiel", muito "Paquita Rico" ou muito "Carmen Sevilla" (lembram-se, por exemplo, de "La Mala Educación" do mesmo Almodóvar?...) onde estarão, de resto, muitas das raízes vivenciais e cultu(r)ais, num sentido e noutro: identitárias, do realizador...
Há sem dúvida uma certa tendência persistente quase compulsiva (e, a meu ver, não totalmente bem integrada no todo) no filme que o empurra talvez em excesso para o melodrama (a "estória" de Lydia é, a meu ver, um dos pontos mais contestáveis do filme pelo modo como o abre e até dado passo, conduz mas como, também depois acaba por 'cair' e se perder um pouco no fim, ficando a constituir uma espécie de incidente quase autonoma ou, noutro sentido, paralelamente melodramatizador no contexto global do filme); há, dizia, então esta "tendência" que, em tese, beneficiaria, pois, de um certo "abaixamento" relativo (de ângulo, de personagens) de modo a "encaixá-la" mais harmoniosa e, com certeza, mais organicamente no «objecto» final e global que é o próprio filme.
Resumindo: em "Habla Con Ella" temos todos uma proposta autenticamente única de Cinema de um homem que é também um magnífico e imaginativo escritor e construtor de personagens e situações ("Patty Diphusa", por exemplo, do mesmíssimo Almodóvar, é uma obra particularmente interessante que vale a pena ler pelos méritos intrínsecos de criatividade e domínio da matéria verbal que evidencia!) onde, desde logo e por exemplo, o esteticismo característico de um determinado cinema "de autor" (português, seguramente!) não é decididamente a resposta (em Portugal, com efeito, para o bem e para o mal, o esteticismo constitui, como se sabe, uma saída mais ou menos natural e característica para o problema da inexistência generalizada de capitais e, de uma forma mais geral, de uma "industrialidade" sólida e organizada) mas onde também a frieza e o mecanicismo sempre, de um modo ou de outro, topicamente "industriais" o não são--dela, proposta--podendo dizer-se, para terminar como começámos, que aquilo que a define reside, em última instãncia, de forma paradoxal (ou talvez não...) no facto de ser tão pessoal e inclassificável quanto, no limite (felizmente!) indefinível...
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