A propósito da chamada "questão das touradas", ocorreu-me (como poderão, facilmente, constatar na 'entrada' que imediatamente se segue a esta) ilustrar a minha visão pessoal do problema com uma imagem representando o famigerado Hannibal Lecter, a tenebrosa e mortal criatura do filme de Jonathan Demme, "Silence of the Lambs".
Dispenso-me de explicar porquê...
Em qualquer caso, a figura canibal de Lecter suscita-me (independentemente das que estão subentendidas na opção pela ilustração em causa no contexto da 'entrada' referida...) algumas reflexões de natureza, eu diria: antropológica e cultu(r)al específica.
No filme (que vale, sobretudo, pelo modo eficazmente inquietante como Anthony Hopkins constrói a personagem de Lecter) está, desde logo, diria eu, plasmada uma certa visão ou um certo (des?) entendimento recíproco entre a Europa e os Estados Unidos.
É um (volto a dizer: des) entendimento que remonta, obviamente, à guerra da Independência americana (é claramente um exemplo de ressentimento colectivo (entretanto já muito secundária ou terciariamente sofisticado: culturalizado) mas em (des) entendimento em cuja génese se situa uma relação de índole colonial tipo que se desfez de forma conflituosa, violenta.
Dela ficaram, acredito eu, marcas profundas.
Uma dessas marcas--a ideia de que guerra foi uma guerra de libertação--desempenha, em meu entender pelo menos, um papel absolutamente dominante no que seriam as relações colectivas posteriores entre os dois povos.
Dela em diante, o anterior colonizado tende naturalmente a identificar o seu anterior colonizador como aquele que queria evitar que, não apenas a estrutura de regência política mas a príopria cultura daquele se autonomizassem.
Naturalmente, vai ser tentado a produzir formas e representações cultu(r)ais não apenas distintas como mesmo opostas às do ex-colonizador.
Reside aí, com efeito, nessa eventual capacidade específica para re/afirmar consistentemente a sua diferença muito da sua capacidade para romper, mais depressa e de um modo mais seguro, mais sólido, mais consistente, comos laços que manteve com o colonizador por um lado mas também para afirmar o seu direito cultu(r)al natural (subjacente a todo o projecto individual e colectivo de rompê-los) à própria in-dependência, por outro.
É minha tese que, apresentando a colonização inglesa, aspectos de particular supremacismo relativamente às suas colónias; um supremacisno que se fez acompanhar, na prática, da definição concreta, específica, de um modelo não-integrador (muito pelo contrário!) de colonização em cujo contexto a cultura do colonizador e a do colonizado permaneciam, na essência, estruturalmente distintas (sendo que a do primeiro, levada com este numa série de modelos precisos, até em termos da habitualidade quotidiana, funcionava sempre reconhecivelmente não só como padrão mass, sobretudo, como um privilégio reservado naturalmente ao colonizador, ao inglês); é minha tese, dizia, que esse associado a uma série de outros elementos deu à cultura americana a forma particular que tem hoje.
Falo, por exemplo, daquela ideia de que a América foi fundada como país a partir do esforço denodado de todo um povo, é verdade, mas também (porque objectivamente esse povo não existia na origem como unidade orgânica minimamente reconhecível--sendo, aliás, duvidoso que ainda hoje efectivamente exista mas, enfim, essa é outra questão que não vem agora ao caso) de cada indivíduo per se.
Há, com efeito, naquilo que os próprios americanos designam pela expressão latina "Americana" ("as coisas da América") uma fortíssima componente de individualismo que vem, a meu ver, precisamente daí, da circunstância particular de um país com as dimensões dos E.U.A. ter-se de algum modo consolidado na sua forma básica e primária antes de haver propriamente uma consciência nacional minimamente consolidada.
Muitos dos "americanos" são, com efeito, ainda por cima europeus, são indivíduos, de um modo ou de outro, excluídos cultu(r)almente situados entre duas realidades, entre dois mundos, engtre, no fundo, duas identidades: a "americanicidade" resulta muito mais de um esforço de vontade ou de uma opção consciente do que de um imperarivo espontâneo, natural ou naturalmente sentido.
É por outro lado ainda, algo que tem de ser construído, em larga medida sobre um projecto colectivo mais ou menos consciente de revaloriaão secundária de uma condição real ou supostamente inferior que está, no fundo, na base da formação do país com a formaou o aspecto--a silhueta, a arquitectura identitária--que tem hoje.
O modelo cultu(r)al americano herda, claro, da Inglaterra ou da Holanda o espírito mercantil que as celebrizou enquanto potências coloniais.
Mas vai-lhe, em meu entender, juntar potenciando-o valores e móbeis de acção muito específicos, de natureza muito mais circunstancial criados e impostos pelas próprias circunstâncias: quem é mandado para a América são ladrões e prostitutas, não são exactamente, pelo menos em número relevante, intelectuais e homens de letras.
São também indivíduos ressentidos com a pobreza que os levou muitas vezes directamente ao crime, no caso dos que chegaram à América degredados: para eles enriquecer não é, por toda uma série de razões, pois, tanto uma questão ou mesmo um problema abstractamente filosófico e/ou moral como uma questão prática, na origem estruturalmente associada à própria sobrevivência imediata.
Em ética própria o vai, aliás, a prazo, ser!) a partir da fusão de todas essas componentes entre as que foram voluntária ou involuntariamente herdadas e aquelas que surgiram natural ou espontaneamente impostas pela realidade imediata, muito concreta.
Tudo isto junto não acabou por gerar uma cultura de comtemplaão e de reflexão.
Há Concorde, há Thoreau, há Emerson mas há, sobretudo, uma identidade que se vai consolidando e que gerou, sobretudo, a partir da chamada "questão" ou "problema" índio (no âmbito do qual se fazem, aliás, sentir já os padrões e móbeis de acção individual e colectiva atrás descritos e em cujo contexto os próprios ex-colonizados operam agora, por sua vez, em relação aos povos índios como os antigos colonizadores em relação a eles próprios...); há, sobretudo, dizia, uma identidade que gerou uma cultura de "culpa", nunca completamente (longe disso!) resolvida.
Isto, para dizer que há, de facto (em tese, pelo menos: é a minha tese, repito) na génese do preenchimento cultu(r)al da "Americana" um fenómeno de inversão cultu(r)al da percepção da inferioridade própria num modelo "positivo" onde muitas das "falhas" e "taras" originais se transformam secundária mas consistentemente em "valores".
A verdade é que não é muito difícil constatar que a Amérrica sempre, de um modo ou de outro, lidou mal com a Cultura abstracta: não deteve o segredo da sua formulação, na origem, como vimos mas a própria relação que estabeleceu (que teve de estabelecer para sobreviver) com a realiade circundante também não lha exigiu.
Exigiu-lhe outros atributos e foi sobre esses que erigiu a sua identidade cultu(r)al nuclear, tópica, digamos assim.
Ora, é neste contexto preciso que eu vejo emergir como arquétipo ou projecção arquetipal inconsciente a figura de Hanibal Lecter.
É que potenciando toda a fenomenologia que temos vindo a considerar (e, embora, obviamente, a América tenha, entretanto, gerado uma elite intelectual própria) uma evidente agudização da distância a que esta se vai progressivamente situando em relação à massa ou às massas (para utilizar um jargão muito... marxista) faz com que a oposição Inglaterra/cultura inglesa/clichés envolvendo a imagem 'popular' desta=memória da opressão, cultura do colonizador, exclusão e percepção da exclusão, complexo de inferioridade vs. Estados Unidos=luta de libertação, anseio de autonomia e de diferença, valorização dos aspectos "práticos" não-moralmente "limitados" da vida e da "energia vital" como fundamento da acção histórica e até política; esse modelo de representação global ou transnacional e transcultu(r)al da realidade acaba sendo importado para o interior da própria sociedade norte-americana quando as condições históricas, sociais, económicas e políticas de infra-estrutura o impõem ou, pelo menos, propiciam.
Lecter (em meu entender, não por acaso) possui uma pronúncia tipicamente britânica (a do actor Anthony Hopkins) mas não só: gosta de ópera, possui um requinte absolutamente extraordinário em matéria culinária só que... só que (alas!) é um canibal, alimenta-se dos outros, dos que não gostam de ópera, não possuem requinte, não têm, numa palavra, a tal cultura que o subconsciente colectivo da sociedade norte-americana identifica, com algum (evidente, historicamente explicável) reserva e desconfiança.
Quer dizer: a cultura, a "tal" cultura em cuja génese está a marca da opressão colonial instalada no subconsciente colectivo norte-americano, é uma emanação da predação colonial que se tornou agora nacional e social.
Isto é, o colonialismo "retornou", agora, sobre 'extractos significados' dessa mesma subconsciência nacional e aí "enquistou" mutando-se, gradualmnte, numa espécie de meta- ou de transfenomenologia (de transfenomenicidade) social e política onde a distância e mesmo a hostilidade (o medo--uma verdadeira constante da cultura norte-americana!) entre as classes sociais é por demais evidente.
É o fenómeno da desconfiança das massas relativamente às élites políticas (um fenómeno, que hoje bem conhecemos, aliás! Um fenómeno cada vez mais generalizado) sociais, culturais e por aí diante.
Eu relevaria estas ideia de que se instalou nas sociedades--estamos a falar aqui da norte-americana mas poderíamos, em tese, generalizar um pouco mais: é obviamente uma questão perfeitamente global ou globalizada, hoje--que diz (ou que não diz mas intui!) que o colonialisnmo mudou (ou "mutou") de forma e que hoje os verdadeiros colonizados ou as verdadeiras colonizadas são as classes sociais que o funcionamento normal do suistema excluiu ou baniu e exilou cultu(r)al e socialmente como o antigo colonizador fez aos seus assassinos, ladrões e prostitutas.
Um mundo em que gostar de ópera e ser canibal são sinónimos ou podem ser ficcionalmente vistos como sendo-o é um mundo doente e dividido que nacionalizou, como já várias vezes sugeri--que naxcionalizou por sistema e até ciomo sistema--os modelos, cjamenos-lhes: clássicos de relaçãao colonial.
O desejo inconciente, por outro lado, de "ter sob prisão", de "conter" e simbolicamente garantir o domínio sobre o opressor (o detentor da cultura, do saber que mete medo exactamente porque possui algo que nós não desejamos, não queremos desejar mas que porque não tenmos também tememos...) opera aqui, diria eu, no fundo, como uma metáfora subconsciente da Revolução, da "prise du pouvoir" utópica pelos excluídos e oprimidos.
Mas é, também, pnso eu ou admito eu, significativa a ambiguidade que emerger da relação de ódio/dependência entre as referências simbólicas ou simbológicas do opressor e do oprimido, do colonizador e do colonizado: é a este que é preciso recorrer quando a propriedade dos meios de produção de conhecimento se torna um elemento simbologicamente vital: mesmo preso (mesmo... dominado) Lecter é essencial para a acção.
Inversa ou inversionalmente, o seu é também um drama: o drama, a tragédia existencial, da prisão, da dependência, do sacrifício, do martírio, do intelectual «puro» num mundo demasiado vulgar que não o entende e de que ele escarnece, afinal... devorando-o, alimentando-se fisicamente dele...
[Na imagem: fotograma do filme de Jonathan Demme, "The Silence of the Lamb", de 1991]
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