Concebi esta colagem como tributo ao prazer, cada vez menos comum, de ler. Uma das coisas que mais me horrorizam é o modo como usamos ("we don't use: we misuse!") a tecnologia: literalmente fetichizando-a.
A tecnologia, para nós, como sociedade no tempo, digamos assim, perdeu, com efeito, já e já há muito (a pós-modernidade tem, diria eu, tudo a ver com esse modo supostamente funcional mas, na realidade, des/estruturalmente disfuncional e inteleccional, humanisticamente perverso, para onde se deu a deriva consistente que observo nos nossos modelos tópicos de nos relacionarmos estavelmente com o real...); a tecnologia, dizia, perdeu já há muito o seu carácter de "objecto" no contexto dos paradigmas civilizacionais de operarmos--e (auto) representarmos!--essa relação tópica, tendo-se tornado, sim, o seu verdadeiro sujeito estando-nos reservado, pois, a nós, o de 'objecto' ou "objeito" (falso sujeito) da referida relação tópica.
Um exemplo dessa deriva tem a ver com o modo como deixámos de integrar a leitura por prazer, a leitura (verdadeiramente) cultural e cultual entre as nossas práticas educacionais básicas.
Ler é, antes de mais, aprender a mediar criativamente o nosso rapport pessoal com o real, ou seja, é aprender a alimentar a presença de uma "almofada criacional" entre nós e a realidade onde depositamos (a fim de usarmos consistente e também conscientemente sempre que se imponha restabelecer circunstancialmente o dito rapport) aquilo que em nós pensa e (realmente) conhece.
Aquilo que em nós verdadeiramente pensa, isto é, faz operações de conhecimento e, sobretudo, cognição.
Ver, na realidade, dispensa-me quase invariavelmente de pensar.
É, num certo sentido dialéctico (e auto-criacional) profundo o oposto objectual de pensar. É por isso que a televisão inevitavelmente embrutece enquanto a rádio fascina ou está, pelo menos, muito mais naturalmente vocacionada para fazê-lo; é por isso que um cineasta como Oliveira diz (ou disse, a dado passo da sua vida como cineasta--e nisso ecoava, por exemplo, o que, por sua vez, afirmava Chaplin) achar que o Cinema é (deve ser "sempre"!) mudo e a preto-e-branco.
Que o verdadeiro, o genuíno, Cinema está no mudo e no preto-e-branco. Não pensará hoje já assim mas disse-o e realizou, em qualquer caso, os seus primeiros (e melhores?...) filmes nesse registo cinético "puro", digamos assim.
Quando se usam calculadoras, por outro lado, esquece-se a outra ginástica essencial do espírito que é a que está intimamente associada ao próprio cálculo como pressuposto autónomo de apropriação matemática do real.
As "minhas" heroinas nesta colagem são atípicas hoje exactamente porque tiveram a felicidade de não terem perdido essa aptidão educável ideal para ver que não se situa automaticamente no próprio ver mas no modo como aprendemos (como somos estimulados e educados) a usar inteligente, civilizada, humanisticamente, a aptidão natural para ver.
Que é uma coisa muuuuito distinta de saber realmente usá-la.
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