segunda-feira, 18 de maio de 2009

"Pois! Vai Mas É Pregar Para A Tua!..."


Já por mais de uma vez aqui me insurgi contra a insuportável praga dos "comentadores" nos mídia.

'Vendedores ambulantes da opinião' (em muitos casos, da mera convicção: "creed or dogma peddlers", lhes chamaria com a eloquência própria do respectivo idioma um falante anglófono que partilhasse, mesmo só em termos genéricos, a minha própria opinião a respeito deles) o único vínculo que os prende, diria eu, ainda, também muito genérica e muito vagamente, à realidade é o imperativo (im!) puramente comercial de "dizer diferente" dos diversos outros que, ombro a ombro com eles, numa absurda concorrência pela fácil popularidade televisiva, pululam como uma espécie de (altamente discutível, aliás e a mais de um título) "comércio intelectual de luxo" diário da imprensa "pós-moderna".

Do caricato e inverosímil, previsibilíssimo, Rebelo de Sousa ao indigesto e absolutamente imastigável Sousa Tavares passando pelo "utilitário" Vitorino, "temos" de tudo na TV portuguesa, incluindo um António Peres Metelo que, para variar, até parece saber o que diz...

Ora, da segunda destas notabilíssimas figuras, espécie de 'ornato intelectivo' do verdadeiro "deserto dos tártaros" em que parece ter-se definitivamente convertido o mercado da informação entre nós, quero muito em especial registar aqui um texto publicado no "Expresso" de 16.05.09 e intitulado "A Liberdade Começa na Minha Rua".

O tema da peça em questão, diga-se desde já, são os recentes "acontecimentos" ocorridos no Bairro da Bela Vista em Setúbal, onde a morte de um jovem habitante e a consequente revolta de parte da população mais jovem do bairro contra a polícia que o abateu terão sido (foram!) a causa imediata de uma série de incidentes de enorme violência social que duraram, como é sabido, de resto, vários dias.

Sobre este tipo de "bairro", espécie de versão atlântica do "slum" ianque e/ou da 'favela' brasileira (de onde, de resto, ao que parece já terão imigrado para o lado de cá do Atlântico, alguns "embaixadores" mais ou menos 'selectos'...) muito haveria seguramente, desde logo, a dizer.

É lá onde, como também se sabe (como sabe quem, nestas coisas de problemáticas sociais não anda a dormir nem está, sobretudo, preocupado com a necessidade "comercial" ou "industrial" de dizer "qualquer coisa que soe bem" a essa acéfala e epidermicamente bem-pensante 'Suburbânia nacional' que compra usualmente o "Expresso"; é lá onde, dizia, o desenrascado empresariato (o "lumpen empresariato" do cimento que, entre nós, passa por classe empresarial) nacional "arruma" (ou pretende ver "arrumado") o "parque laboral humano" a baixísimo preço (e escassa educação!) sobre a qual assenta, como é também sabido, na base, a política de mão-de-obra ao preço da chuva (e naturalmente muito baixa produtividade...) que, para o poder político "pê-ésse" vigente, que é o seu "braço armado governamental", passa por "política económica moderna" (?), "de forte incidência tecnológica" (!) e (ainda por cima!) "socialmente civilizad(or)a" (!!)...

Numa economia em larguíssima medida assente no uso mais do que... parcimonioso e caracteristicamente discreto quer da técnica quer da tecnologia--uma "economia de pato bravo" cuja "maquinaria essencial" são sempre, em última análise, os braços e, de uma maneira geral os corpos (quando não, num sentido muito concreto, as próprias vidas!) dos imigrantes africanos, brasileiros e eslavos--bairros como essa Bela Vista setubalense (ou, mais a norte, as Brandoas, as inúmeras Quintas "disto-e-daquilo" onde se amontoam as reservas e os excedentes do 'capital humano' de que a "pato-bravada" omnipotente e omnipresente (que dispõe, como também não se ignorará, de poderes para "chutar" ministros para Bruxelas e autarcas para o desemprego...) se serve para enriquecer depressa e poder ir, em seguida, a correr "comprar" a escandalosa influência política de que dispõe junto de câmaras e até de governos centrais--influência essa que todos denunciam e nenhum parece realmente interessado em eliminar--a que lhe permite, aliás, acrescentar sempre mais poder ao indecoroso poder de que já hoje goza; numa economia assim (des!) estruturada e "funcionalmente desregulada", dizia, o papel desempenhado pelas Belas Vistas (ou pelas Quintas) é algo de absoluta (mas também obscenamente!) capital.

...E só um cego ou um imbecil não percebe como essas "Quintas" são verdadeiros barris de pólvora e bombas sociais ao retardador onde um mais do que compreensível generalizado ressentimento e uma mais do que legítima e consistente frustração, resultado da ausência total de perspectivas profisionais, existenciais, etc. de cada um, ocupam o lugar que, numa sociedade de "gente séria e a sério"--uma sociedade efectivamente moderna, civilizada e regendo-se por valores de genuíno humanismo e autêntico decoro social--seria naturalmente ocupado pelo direito natural ao que Marx talvez chamasse "os meios de produção social do próprio futuro" ou coisa parecida e que hoje, pura e simplesmente, se acham reféns de um modelo de "desenvolvimento" onde só os espertos e os completamente desonestos parecem ter hipóteses de prosperar e triunfar.

É verdadeiramente indecoroso perante a realidade social portuguesa actual falar de gente para quem a ideia de "sucesso" está tragicamente circunscrita a arranjar um emprego temporário "numas obras quaisquer" ou a tirar o 12º ano e ir trabalhar na caixa dos supermercado ou no "call centre" de uma empresa qualquer cujo proprietário e patrão tem Jaguar à porta e um "balúrdio" na Suiça porque soube achar os "amigos políticos" certos e decidir-se pelo ramo da... "produção" onde lhe era mais fácil e rápido colher os frutos do seu... "trabalho", rentabilizado, aliás, à custa da desgraça social, aliás, já "perfeitamente" institucionalizada e "passada à História" como catastrófico "way of life" nacional (pós) moderno estável e típico...

É, dizia, verdadeiramente obsceno falar de gente para quem a vida é errar eternamente entre "empreguinhos" e "empregotes", vendo constantemente uns quantos "espertos de carreira" prosperarem à custa do seu próprio desenraizamento e da frustração que dele apenas pode gerar-se para dizer verdadeiras monstruosidades como a que se segue e que diz que "não é porque alguém está desempregado [itálico meu] ou se sente marginalizado [de novo, itálico meu] que tem o direito de rebentar com o elevador do prédio, pintar e sujar as paredes, vandalizar os espaços verdes ou ficar meses [imagine-se! Comentário--irreprimível...--meu] sem mudar uma lâmpada fundida".

"Estar desempregado"??!!

Para inúmeros destes indivíduos a questão não é a de... "estarem" desempregados: é a de "serem" crónica e fatalmente desempregados.

É a de saberem para que serve, afinal, estar empregado num trabalho qualquer que, quando chega, serve apenas para maquilhar exteriormente a trágica realidade que é a da miséria crónica vivida fisicamente no ghetto e existencialmente na ausência total de perspectivas de vida, de segurança, de estabilidade ou de qualquer (outra) forma de futuro.

Existências pardas e vazias (como eu próprio conheci tantas, algumas ainda "em botão", entre aquele pessoal marginal, "naturalmente" condenado ao desencanto, da Brandoa, da Falagueira, de Miratejo, de Corroios, da Cruz de Pau e por aí fora quando nesses locais, social e existencialmente tenebrosos, dei, num total de seis anos, aulas); existências baças e desérticas, vividas numa espécie de sinistra pendularidade entre a barraca e o bairro "social" ou, de uma forma mais lata e tragicamente "abstracta" (parafraseando um título célebre de Masson) entre "o pavor e a [completa] sem esperança".

"Sentir-se marginalizado??!!

Mas eles não se sentem marginalizados: eles são marginalizados!

São os "chatos" que "não querem trabalhar", que "pedem subsídios", que estão sempre a "pedir casas", que vivem, numa palavra, na permanente e fatal lateralidade relativamente a um sistema económico e político (económico-político!) que assenta precisamente na... "política" de investir na sua abjecção (económica, educacional, sanitária, jurídica, social, etc.); gente cronicamente "periférica" que, todavia (vejam só que escândalo!) "nunca está contente com coisa alguma", "vive de parasitar a enorme generosidade da gente operosa e séria" e que (imagine-se só a "lata" que é precisa!...) ainda por cima, nem se preocupa em "mudar uma lâmpada quando se funde"!!...


Espanta (fere!) tanta insensibilidade, tanto obsceno "botar faladura" de cátedra, tanto disparate atirado do cimo de uma sinecura ou tribuneca paga a "peso de ouro"!
Espanta, fere e levanta dúvidas!
Levanta-mas--a mim, seguramente e com isto termino--este verdadeiramente indecoroso estendal de brutalidades argumentativas que é o tal "A Liberdade Começa na Minha Rua" com que o "Expresso" entendeu desacreditar-se um pouco mais social e políticamente no dia 16.05.09, desde logo, pelo seguinte:
Como é que alguém que a si mesmo se designa por artista e se reclama escritor pode realmente sê-lo dando mostras de uma tal incapacidade, ao que tudo indica, natural para perceber, mesmo apenas remota; mesmo muito primariamente, como operam, de facto, os mecanismos de reactividade social e de formação da consciência individual e colectiva?
Como é que alguém que dá mostras de um primarismo destes na sua percepção, digamos: típica, da realidade pode, um instante só que seja, alimentar a ficção de possuir uma qualquer, mesmo longínqua, "inteligência da realidade" que é o pressuposto essencial da Inteligência tout court a qual, por sua vez, não é dissociável da postura artística genuína e (minimamente!) credível...

A resposta é fácil: não pode!...

Ponto final!

E, dê-lhe a gente as voltas que der, tudo o resto é: presunção, pedanteria e (im) pura--escandalosa!--insensibilidade pessoal, social, política e/ou cultural.
Nada mais!

[Na imagem: "Bairro Social", acrílico sobre tela de Victor Costa, 80X90, Coimbra, 2008]

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