sexta-feira, 1 de maio de 2009

O 25 de Abril quer houve e o que DEVIA ter havido..."


Esta 'entrada' do "Quisto" é especialmente dedicada a Otelo Saraiva de Carvalho


Duas observações, duas avaliações altamente "significadas" sobre a realidade nacional vão hoje, aqui, servir-nos, por absurdo, de ponto de partida para umas quantas reflexões pessoais sobre aquela mesma realidade: sobre, em todo o caso, uma certa realidade nacional ainda recente, origem (sob inúmeros aspectos, frustre) de muito do que (não!) somos hoje como sociedade.

Refiro-me especificamente a duas das muitas que vejo continuamente expendidas na imprensa burguesa actual; duas avaliações, no fundo análogas, na (chamar-lhe-ia eu:) brutal incompreensão que partilham relativamente ao que considero serem os nossos naturais interesses como sociedade e como nação: uma dessas 'coisas' é uma observação de José Miguel Júdice (uma observação que, sendo uma única frase, é, apesar disso, todo um modo de "ver" o mundo e até, sem grande esforço, todo um "programa" social e político que lhe está, queiramo-lo ou não, lá subtentendido); outra um dificilmente qualificável (dificilmente entendível, lhe chamei, num protesto formal que enviei ao director do jornal onde foi publicado) texto de Rui Moreira, inserto no "Público" de 27.04.09 sob o título de "Tudo bons rapazes

Vale a pena acrescentar que todo o texto, vindo a lume dois dias apenas sobre o completamento de três décadas e meia sobre o 25 de Abril de '74 (e inserido, suponho, nas respectivas... comemorações) é uma longa e ácida objurgatória contra duas das figuras (outra vez: queiramo-lo ou não) emblemáticas desse momento marcante da nossa História colectiva recente: Rosa Coutinho (o ódio de estimação da comunidade "pied noir" portuguesa da década de '70...) e, sobretudo, Otelo Saraiva de Carvalho, de uma forma ou de outra, a alma do próprio 25 de Abril.

Bom mas comecemos a nossa própria análise (não tanto, esclareço desde já, das frases e das opiniões ou avaliações citadas mas realmente da circunstância económica, social e política a que elas, uma em particular, para--sejamos benévolos!...--para a criticarem, se reportam); mas comecemos, dizia, a nossa análise pela frase de Júdice: frase seca, lacónica, "conclusiva" (um inglês diria a propósito: "matter-of-factly final") supostamente doutoral, deixada cair "comme par hasard" no contexto de uma série de reflexões que não vêm, aliás, aqui ao caso: deixada cair, pois, dizia, como se fosse algo de definitivo e inquestionável--e para quê, com efeito, deter-nos sobre coisas inquestionáveis?).

A frase a que me reporto fala de um determinado político, ex-comunista que, como seria de esperar, Júdice acha hoje "curado" do (e cito) "esquerdismo institucional e bacoco que dominou os muitos anos (?) que se seguiram ao 25 de Abril".

Contraponhamos-lhe o texto de Moreira.

Um texto, no mínimo, curioso onde, como digo, todos os males de "Abril" aparecem (vá-se lá saber por quê!) centrados nas duas figuras históricas atrás citadas: um, hoje-por-hoje quase esquecido, Rosa Coutinho (experimentem, por exemplo, perguntar às gerações mais jovens quem foi e o que fez...

É certo que essa experiênciaque, nada diz em si mesma de verdadeiramente essencial sobre o bem ou o mal a que a figura do Almirante Rosa Coutinho possa estar, directa e causalmente, associada mas a verdade é que também não ajuda minimamente a perceber por quê o Almirante e não outro qualquer...); o outro, Otelo, Otelo Saraiva de Carvalho, uma das mais desconcertantes (que não mais in-significantes nem--longe disso!--para o--muito!--bem e, com certeza, para o--algum--mal dispensáveis e ignoráveis) figuras, primeiro do golpe propriamente (sabemos hoje que, sem Otelo, não teria havido "Abril" e é isso o que provavelmente incomoda muita gente ainda hoje...) e, em seguida, da própria Revolução: interessantíssima figura de homem contraditoriamente activo e politicamente ingénuo--ele próprio por diversas vezes, o admitiu--generoso, cândido, corajoso, impulsivo, interventor, a dado passo central, "sem mapas", como diria Graham Greene, numa História que lhe chegou "às mãos" de repente, literalmente em processo de ser feita e de ser feita "sem manual de instruções") Otelo despertou, como se sabe, reacções e sentimentos radicalmente opostos, numa sociedade onde o esclarecimento político e uma consistente cultura cívica eram--e continuam a ser!--autênticas raridades.

O texto de Moreira é, de resto, a prova talvez mais recente de que, trinta e cinco anos (!) após o 25 de Abril não se esgotaram ainda as reacções de intolerância e de puro ressentimento que a sua participação no complexíssimo processo revolucionário (que, não por acaso, aliás, ficou até hoje asociado à expressão "em curso", sublinhando o modo como, na circunstância, a História ia "brotando tão torrencial quanto imprevisivelmente... da própria História" e em, tempo real) não deixou de despertar.

Mas o que me interessava aqui relevar, citando as duas (negativíssimas!) apreciações do 25 de Abril que ficam atrás... exaradas é o modo como efectivamente (chamemos-lhe:) "um certo Portugal" nunca percebeu "what April was all about", como diria, outra vez, um inglês.

Ou tê-lo-á percebido até bem demais, também pode ser isso...

Terá, nesse caso, percebido bem demais aquilo que foi mas, sobretudo, terá temido (e nunca perdoado o temor sentido--parece-me francamente que o problema é, sobretudo, esse!) aquilo que poderia ter sido esse crucial momento da nossa História recente.

É que se, com efeito, para aquele "certo Portugal" o 25 de Abril poderia ter sido a tal maneira radicalmente nova de recomeçar a portugalidade ou refundar a nacionalidade com que muitos de nós sonhámos mas isso (que pareceu, a dado passo, estar prestes a ocorrer) não correspondia ao "25 de Abril" daquele tal "certo Portugal"; é que, dizia, se ameaçou poder sê-lo, nunca efectivamente o foi.

Lamentam-no os que sonharam que pudesse tê-lo sido; não o lamenta o "tal Portugal" que se assustou quando a "História pareceu, num dado momento, ir atrever-se a mudar sem "pedir licença" àqueles que até aí (de facto até hoje) se tinham e têm na conta de seus legítimos... "proprietários".

E o que podia a História ter sido--ter começado a ser-em '74 que não chegou, porém, a ser?

'74 é o ano das "comissões". Por toda a parte, a toda a hora, elas surgiram--das de moradores (algumas das quais, ainda hoje, mais ou menos formalmente existem) às de utentes dos serviços, por exemplo, de saúde; das de estudantes às de inquilinos ao ritmo das necessidades da intervenção cívica, determinadas pela aspiração dos grupos sociais a formas operativas e realmente intervenientes e autónomas de organização.

Qualquer actividade, a dado momento, gerou a sua ou as suas.

"Sovietes" para muitos (lá está o tal medo do tal "certo Portugal" de que atrás falávamos perante a imperdoável ameaça da refundação da sociedade que nunca chegou a haver...) elas foram, entre muitas outras coisas, uma fugacíssima mas potencialmente inestimável escola de organização popular e, cumulativamente uma não menos inestimável (e essa menos gorada) de líderes cívicos contrariando o absurdo "mito" de que hoje temos, como nação bons políticos (!) aos quais temos de pagar bem exactamente porque são bons (?) e, ainda por cima, escassos (??).

Mas, o "Portugal das comissões" foi, sobretudo (não o "soviete" que o "Portugal caviar e reformista" sempre temeu) mas o embrião vivo de um Portugal socialmente desperto e civicamente estruturado que é como quem diz: o germe de uma opinião pública e de uma Cidadania efectivamente actuantes e verdadeiramente nacionais, isto é, envolvendo (comprometendo, "engaging") activamente a totalidade do corpo nacional.

O núcleo de uma organização que não se substituísse ao poder (e que, por isso, nada tinha de "soviético" ou "leninista") mas que dialogasse organizada (eu diria mesmo: que dialogasse organicamente) com o poder tendo antes gerado responsavelmente esse mesmo poder.

Foi isso que faltou--foi isso que foi, de facto, cortado cerce de entre as diversas hipóteses que a História tinha de se resolver a si própria em '74 e parte de '75 em Novembro deste último ano--a Portugal na circunstância: a capacidade ou o esclarecimento para consolidar, primeiro, social e, em seguida, politicamente o difícil parto desse Portugal--e aqui eu devo dizer que pessoalmente penso que, com todas as suas contradições e limitações e com toda a sua (de resto, confessa!) candura ideológica e política, Otelo Saraiva de Carvalho fez, conscientemente ou ser ter tido a completa noção do que estava a tentar fazer, quanto pôde para que tal desiderato; para que tal projecto nacional se concretizasse e daí o lugar que ocupa no meu respeito pessoal, sem dúvida mas, também e sobretudo, na própria História (na real como na que nunca chegou a existir) de um Portugal contemporâneo que as elites económico-políticas desejavam que se "reformasse" numa série de aspectos inessencialmente "funcionais" mas, em caso algum, que mudasse efectivamente.

As "elites" em causa tinham, para Portugal, um projecto (o que chamo um "25 de Abril funcional") que a Revolução interrompeu durante mais de um ano.

Durante não mais do que um ano.

É preciso dizê-lo com toda a clareza: as elites económico-financeiras internas, os chamados "liberais", em '74 estão fartos de salazarismo.

Querem mudanças mas mudanças, insisto, meramente funcionais: querem mercados abertos; querem, por isso, que o corporativismo, que lhes veda o acesso efectivo ao mercado (e porque lho veda) seja formalmente extinto e (não hesito um instante em dizê-lo!) substituído por formas não-juridicamente impostas , por foramas... "democráticas" de controlo económico-financeiro e social-político objectivamente decorrentes da sua capacidade para se apropriarem na prática desse mesmo mercado e de conservá-lo, a partir daí, sólida mas de modo não juridicamente imposto dele; querem, pois, que a sociedade portuguesa adopte como "as outras" formas incomparavelmente mais sofisticadas de (porém em nada menos firme do que o anterior!) controlo no âmbito da redistribuição social da riqueza assim como dos mecanismos políticos que impedem que essa situação se altere no essencial; querem, numa palavra, que a organização social não se altere embora a política possa mudar exteriormente mas, precisamente, apenas para obstar a que a 'outra', a que lhes interessa, mude.

Querem uma "democracia" que mantenha o paradigma económico-financeiro e social (as relações de produção) "solidamente ligadas à História", "firmemente atarrachadas a ela"; uma "democracia" que seja o instrumento político electivo da "economia" (uma economia com uma "democracia" a toda a volta), a "justificação" política definitiva de ela não mudar--sendo que (supremo sofisma) sonham, pois, com uma "democracia" que seja, afinal, o argumento supremo da "economia" que ela pode invocar para que tudo se mantenha, no (in) essencial, como essa economia deseja e para que a História não mude.

Uma "democracia" que explique sempre de forma genericamente acreditável à comunidade por que "exacta" razão a História NÃO pode, em caso algum, mudar...

Por isso, esta visão da "democracia" como um "entrave ideal" à mudança (que triufa em Novembro de '75) se dá tão mal com aqueles que, bem ou mal, habilmente ou de forma, por vezes, canhestra e irrealista sonharam para "Abril" com mudanças reais.

São dois paradigmas radical, polarmente, opostos, esses o dos que pretendiam (com grande dose de idealismo, inocência e alguma--óbvia!--falta de "jeito") mudar a Histórias e os que apenas pretendiam (como dizer?) "limpar as paredes exteriores a essa mesma História" conservando, todavia, os compartimentos interiores (onde agora inham assento) intactos.

Por isso, se permitem hoje vingar-se do medo que tiveram e por isso Abril lhes parece "bacoco"...

Pois...


[Imagem representando "La Liberté Guidant Le Peuple" de Eugene Delacroix, extraída com vénia de picasa.google.com]

3 comentários:

Gonçalo disse...

Mesmo valorizando o esforço de mudança social dessas comissões dificilmente as coisas poderiam ter outro desfecho já que grande parte dos partidos com os seus aparelhos ou pelo menos os principais já estavam criados antes do 25/4.As eleições legislativas é que acho que talvez tenham sido demasiado cedo um ano depois julgo, também não possso afirmar que se fossem as presidenciais primeiro como julgo que queria Costa Gomes tivesse sido melhor.Ou haveria outra maneira de consolidar uma verdadeira democracia se não se fizessem eleições?

Carlos Machado Acabado disse...

Com toda a simpatia, Amigo Gonçalo, não posso concordar com a ideia de que em '74 a maioria dos partidos estivesse já criada. De facto, verdadeiramente criado, organizado e estruturalmente consolidado só o estava um: o Partido Comunista.
Isto, mau grado a sua capacidade para influenciar e mobilizar a sociedade portuguesa ter tendido sempre a ser geralmente sobrevalorizada, convenhamos.
O Partido Socialista (que existia desde muito pouco tempo antes na forma de uma Acção Socialista qualquer coisa fundada na Alemanha, embora o respectivo 'núcleo' básico viesse já da C.E.U.D. que concorrera já a eleições durante o fascismo mas era uma coisa, ao que suponho, mais formal do que real (a C.E.U.D. quero eu dizer).
O P.S. era constituído por meia dúzia de intelectuais cuja vida havia decorrido, no essencial, fora de Portugal, no exílio e a sua integração na realidade portuguesa não se fez de imediato.
A verdade é que a tal C.E.U.D. o embrião do P.S. se extinguiu (com esse nome, pelo menos) logo a seguir às eleições de 69, julgo: era apenas uma Comissão Eleitoral).
Os outros (embora possuíssem raízes, o P.P.D na "ala liberal" do anterior regime; o C.D.S. no próprio interior do salazarismo) não existiam, pura e simplesmente.
Quanto à questão das eleições: a opção para os militares progressistas era: ou ter provocado a queda do regime e, depois, lavar daí as mãos como Pilatos ou criar as condições para que pudesse emergir do caos pós-revolucionário (que o foi, no bom e no mau sentidos: o caos pode ser bem criador!...) uma sociedade minimamente esclarecida e consciente.
É preciso não esquecer que Portugal era, à época, uma sociedade pré-urbana com taxas de analfabetismo arrepiantes e modelos de redistribuição da riqueza social quase medievais!
O problema é que havia forças a quem não interessava MUDAR mas apenas DIVIDIR, de um modo mais abrangente, o "bolo" da riqueza colectiva.
O que queria a "ala liberal" (como o próprio P.S., aliás) era, apenas, na essência, chegar onde até aí só se chegava com autorização dos senhores do "mercado".
É preciso não esquecer que havia em Portugal, antes de '74, uma tal Câmara Corporativa, que decidia QUEM podia criar empresas e EM QUE RAMO da actividade económica.
Claro que as 'grandes famílias' económico-financeiras que detinham o poder através do salazarismo vedavam meticulosamente o caminho, por via política legal, à concorrência.
A quem lha pudesse fazer nos nichos de mercado onde agiam monopolisticamente ou a quem pudesse crescer até ao ponto de poder vir a fazê-la, mesmo noutras áreas do processo produtivo.
Havia uma drenagem unidirecccional contínua, consistente e solidamente defendida por lei, da riqueza produzida e só quem não podia de todo concorrer com os Tenreiros, Mellos e por aí fora era autorizado (é o termo! Tinha de se ter permissão expressa e formal da Câmara Corporativa) a entrar NO QUE FICAVA do mercado ou de mercado...
Ora, os "liberais" (de direita e de... "esquerda") o que queriam era "abrir" o mercado a si próprios e nada mais.
Queriam investir, tinham dinheiro mas o salazarismo, as leis salazaristas, não lhes davam hipótese de fazê-lo.
Daí terem apanhado a "boleia" da Revolução para iniciarem um processo que era, de facto, SÓ SEU e mais nada.
Extinguir as leis corporarivas, entrar no mercado, enriquecer também.
Aceitaram a Revolução, adaptaram inclusive a sua própria linguagem a ela (via para a sociedade sem classes, etc.etc.) mas apenas estavam à espera do momento em que o ímpeto revolucionário torrencial, caótico, das massas se esgotasse para "porem a casa em ordem" e esquecer de vez a "perigosa fantasia" do socialismo (a sério) e da sociedade sem classes...
Eu não tenho a mínima dúvida: o P.S. e o P.P.D (hoje P.S.D.) minaram a Revolução, fingindo falar por imperativo democrático puro.
Ajudaram à confusão (sabe, por exemplo, que chegou a haver uma espécie de "marcha sobre Lisboa" a que se juntou o P.S.) para depor o governo de Vasco Gonçalves?
Eu cheguei a estar em barricadas para impedir que da tal "marcha" resultasse, pela força, a queda do governo e lembro-me bem de como esse tipo de provocação ajudou a que as pessoas se cansassem e recomeçassem a sonhar com alguém que acabasse de vez com a "desordem".
Era o que essas forças queriam: que as massas se cansassem e voltassem a ser a população dócil de outros tempos.
Infelizmente, as forças de ESquerda (P.C.P., U.D.P., F.E.C. M.E.S. etc.) não foram capazes de promover a consciencialização popular.
Era, se calhar, impossível no tempo que houve.
Mas cometeram erros gravíssimos: de intolerância recíproca, desde logo.
E o resultado foi o que se sabe: quando as pessoas se cansaram, chegaram os "salvadores", a gente "sensata", "ordeira", "verdadeiramente democrática" que nos conduziu como sociedade até onde hoje nos encontramos porque exactamente não soubemos ou não pudemos aproveitar a (como agora se diz) "janela de oportunidade" que foi o 25 de Abril...
É a minha visão das coisas, em todo o caso.
Um abraço!

Gonçalo disse...

Sim mas se as forças de esquerda se fracturaram demasiado e ao contrário de PS e PSD que em nome dessa tal "acalmia das coisas" ou da "estabilização democrática" se terão unido como no caso de enfrentarem o governo de Vasco Gonçalves ou como no célebre comício da fumaça no Terreiro do Paço pela "Democracia" é natural que o PCP estivesse a governar em minoria.Sem o 25/11 a única saída a meu ver seria a guerra civil.