A tragédia de que hoje mesmo foi vítima a cidade do Funchal prova-o à saciedade: em Portugal continua-se com uma escandalosa e irresponsável impunidade a brincar às cidades e aos urbanismos, a brincar aos ambientes e à respectiva gestão política [a mandar, para dar um único---escandaloso---"exemplo", receber os respectivos fiscais à pedrada] a designar autênticos incompetentes e simples comissários políticos sem a mínima qualificação para tanto para tutelar o ambiente, a troçar dos ambientalistas e a classificá-los invariavelmente de "chatos" e intrometidos, a construir a trouxe-mouxe em cima de linhas de água e/ou falésias [como teerá sido, agora, o caso na Madeira] a deixar, em geral, na prática, a condução das políticas locais ligadas ao urbanismo aos interesses poderosíssimos da construção civil, etc. etc.
O que aconteceu no Funchal hoje não é um mero episódio circunstancial e fortuito.
Não é seguramente, como o recente terramoto do Haiti, para só citar uma referência ainda fresca na memória de todos nós, uma daquelas "catástrofes que ninguém podia prever e que não podiam, em qualquer casdo, ser evitadas" [ainda e quando muitos dos seus trágicos efeitos pudessem ser atenuados com políticas certas e responsáveis...].
Esta [e não sou eu quem o diz: ainda não há assim tanto tempo como isso, especialistas como o Arq. Ribeiro Telles se cansavam de repeti-lo] recente catástrofe é simplesmente um dos muitos sintomas que são inevitáveis sim, mas do modelo de "desenvolvimento" seguido, em geral, pelo "Ocidente" nos nossos dias.
É, na realidade, todo esse modelo que está em causa, não esta ou aquela das suas inevitáveis decorências circunstanciais, individualmente consideradas---porque está errado e quem o lidera sabe-o, de resto, bem----embora se recuse, em geral, a admiti-lo e, mais ainda, a decidir-se a lutar contra ele.
Desgraçadamente, com efeito, está criado um paradigma histórico e civilizacional de exploração e gestão económico-política dos recursos naturais que, visando apenas e somente na [in] essência o lucro---i.e. a transformação contínua dos meios essenciais de subsistência do ecossistema global [e designadamente da sua componente humana] em "valor" de mercado---que é uma verdadeira armadilha global operando por ondas de choque a que, no fundo, ninguém [economia alguma] de dentro do sistema dispõe da possibilidade real de a ele autonomamente se furtar sem ser pura e simplesmente tragada, devorada, pela própria dinâmica global do modelo, como o provam, de resto, no limite, a ineficácia relativa do protocolo de Quioto e o evidente falhanço da cimeira do clima que se lhe seguiu.
É por isso que eu digo: não há defesas apolíticas do ambiente.
Qualquer posição minimamente consistente nessa área e com esse propósito específico tem, inevitavelmente, de começar por pôr nuclearmente em causa o modelo económico-político---a economocracia reinante; o sistema de organização económica, social e política que coloca a produção de capital no centro do quadro de objectivos de qualquer modelo estável e tópico de relacionamento dos indivíduos e das sociedades em geral com o mundo e especificamente, com os outros homens e o próprio planeta.
Qualquer paradigma civilizacional que apresente assumida ou camufladamente um tal quadro limitado de objectivos específicos [converter continuamente a própria realidade em "valor" independentemente dos respectivos usos sociais que deviam, todavia, ser a referência nuclear de qualquer paradigma de exploração da realidade]; qualquer "civilização" que tais objectivos tenha no âmbito da sua passagem pela História, dizia, apenas pode caminhar cada vez mais irreversivelmente para o seu própio suicídio colectivo através do esgotamento inevitável final do planeta.
É preciso que comecemos [e já!] a delinear e a encontrar modos de consolidar as linhas mestras de um mundo novo em que exista, de forma natural, uma economia para as pessoas e não mais pessoas para a economia; em que a política não seja mais um mero "argumento-pretexto" para evitar que a História se liberte da tutela absurda, completamente disfuncional, da economia e siga caminhos autónomos traçados em estrita função dos interesses legítimos das pessoas e das sociedades por elas formadas; em que a propriedade sirva a vida e não se constitua em obstáculo objectivo a essa mesma vida como acontece no actual modelo democapitalista em vigor cujo paradigma de produção de riqueza, tantas vezes cantada em "hinos" triunfais, assenta nuclearmente, a montante, na produção prévia essencial de quantidades exponenciais de "carencialidade significada" e/ou "estratégica", sem a qual não há, por definição, emergência final de "valor".
No capitalismo, vale a pena insistir neste aspecto básico do modelo, aquilo que "faz" o "valor" é a carência.
Desde a Revolução Industrial que o paradigma económico-político vigente nas economias e nas sociedades ocidentais em geral assenta no modelo de "enclosure" e de "enclosing" que gera o referido pressuposto essencial da carência ou, como a designei tendo em conta justamente essa sua condição de pressuposto essencial, de "carencialidade estratégica"---um priocesso que se iniciou, como é sabido, na propriedade material, agrícola, na origem mas que a própria dinâmica específica do modelo fez com que, a breve trecho, se tivesse alargado à propriedade do conhecimento e da própria inteligência humana, como muito claramente está a acontecer na fase actual de desenvolvimento do capitalismo global pós-industrial dos nossos dias.
A pobreza 'global' de hoje [essencial à definição de fluxos de transferência internacional de "valor" mas causa inevitável de ignorância e irresponsabilidade também ambiental] é, com efeito, topicamente definível como uma "indigência tecnológica sistémica", i.e. "uma pobreza estratégica significada" determinada pela necessidade característica sentida centralmente pelo sistema no sentido de bloquear qualquer processo concorrencial de produção de capital, sobretudo, nos países exportadores de matérias-primas, que foi uma das decorrências incontornáveis e básicas do colonialismo 'clássico'.
Não-desenvolver para afunilar e significar economicamente o fluxo das importanções e definir as regras da concorrencialidade internacional e intercontinental foi, com efeito, uma das chaves mestras do modelo colonial clássico: fazer com que as matérias-primas permaneçam matéria-primas porque [i] uma matéria-prima é, por definição mais barata do que um produto localmente transformado ao mesmo tempo que [ii] não concorre com aparelhos industriais centrais, permitindo, assim [iii] controlar globalmente os preços da produção.
Este modelo sofreu obviamente mutações de forma mas [é a minha tese] não, em caso algum, de essência com o fim do sistema colonial.
As modificações ou "mutações instrumentais possibilitantes" introduzidas no seu próprio curso pela capitalismo pós- ou neo-colonial foram, repito, apenas de superfície e de mera possibilitação ulterior porque na base do modelo nada se pode alterar de essencial em matéria de modelo de re/produção de "valor" e de "riqueza".
A produção de "valor" exigirá sempre, com efeito, nunca será demais repeti-lo, que, a montante, num área ou domínio qualquer "significados" do sistema, se gere, como pressuposto básico incontornável, a 'carência estratégica' sem a qual toda a mecânica nuclearmente associada à produção de "valor"---todo o 'edifício funcionante' do capitalismo, hoje como ontem, não pode, pura e simplesmente, arrancar.
Na verdade, o sistema económico-político, assentando na produção maciça de carências "significadas" de todo o tipo, é, por natureza, antidemocrático e genericamente [e isto inclui, obviamente, o ambiente] multi-disfuncional.
O ambiente é, de facto, apenas uma das suas vítimas---ainda que seja aquela que, a prazo, pode vir a desempenhar-se um papel-charneira no processo global de destruição [ou de impossibilitação objectiva, material] da própria vida na Terra: mesmo os povos que são consistentemente [que são estrategicamente] mantidos à margem do modelo e não possuem, por exemplo, fábricas que possam imediatamente poluir, precisamente porque as não possuem [com o que elas implicam em matéria da possibilidade de alguma autonomia relativa "par rapport" aos grandes centros de poder económico-financeiro] vêem-se compelidos, devido à pobreza em que são mantidos, ou a comprar as matérias e subprodutos poluentes que estão impedidos de gerar ou a devastarem-se literalmente a si mesmos explorando intensivamente matérias-primas [minerais, vegetais ou animais, como peixe, por exemplo] a fim de sobreviverem da sua exportação, contribuindo, desse modo, inevitavelmente para o desequilíbrio ambiental global.
Grandes multinacionais da desinformação tecem continuamente loas ao modelo de [sub] desenvolvimento assim genericamente descrito, contribuindo, de forma decisiva, para perpetuar equívocos e más práticas ambientais [mas também sociais e políticas] de todo o tipo para que nada mude de essencial no modelo.
Cabe a quantos se vão dando ou já deram conta da sua natureza intrínseca e necessariamente disfuncional e objectivamente suicidária fazer tudo o que estiver ao seu alcance para que falhem por completo os perversos planos de... "suicídio civilizacional" colectivo astuciosamente disfasrlçados de "progresso", "desenvolvimento" e mesmo até de "democracia": a luta pelo ambiente é política mas [não tenhamos ilusões!] é, também cada vez mais, um combate especificamente revolucionário.
[Na imagem: cartaz de propaganda anti-ambientalista associando, de forma mais ou menos subtilmente perversa e acintosa a defesa do ambiente ao fascismo, por um lado, e ao eterno "papão comunista" por outro...]
4 comentários:
Sem dúvida! Mas agora, perante as imagens que vi nos poucos minutos que tive para almoçar, só consigo pensar nas pessoas que conheci e nos colegas de curso e de trabalho que por lá continuam. Que é feito daquela gente das povoações de Oeste, encurraladas entre o mar e as escarpas? É difícil ver os locais que conhecemos e onde vivemos devastados por uma fúria incontrolável. Não, agora não quero mesmo saber dos erros humanos, só penso nas pessoas de quem não guardei o contacto já que, durante a tarde, com a ajuda de amigos, lá conseguimos receber notícias dos colegas de curso.
Pois, essa perspectiva é essencial!
Concordo incondicionalmente consigo.
É dela, de resto, que tudo parte; é ela que está [ou devia estar!] sempre presente no espírito das pessoas que mandam, que têm poder e a quem compete, por isso mesmo, evitar tanto quanto estiver ao seu alcance as calamidades e assumir a responsabilidade pela parte que lhes cabe nelas quando elas ocorrem e é ela que explica, naturalmente a preocupação a ter com a outra, mais objectiva e mais causal, mais mediata e menos emocionalmente envolvida, de forma directa, chamemos-lhe assim.
São, insisto, coisas completamente indissociáveis uma da outra.
Aliás, eu sei bem o que é uma situação destas e a percepção amarga da vulnerabilidade dos cidadãos perante a desgraça assim como a noção que, de imediato, se forma, muito nítida, da irresponsabilidade e da falta de sensibilidade cívica E POLÍTICA do poder, quando as desgraças ocorrem.
Quando construíram a Escola Básica Vieira da Silva, em Carnaxide, a pequeníssima distância da minha casa, obstruíram o curso de uma das muitas ribeiras que por aqui correm, remexeram irresponsavelmente a serra em vários sítios, construíram um bairro no caminho das águas e deixaram todo o tipo de detritos a meia cota do monte.
Numa noite, em que choveu copiosamente, de súbito acordei com o tilintar do prato dos cães a boiar num palmo de água na cozinha, a casa toda alagada, um autêntico rio a correr onde antes estava a rua.
Fiquei com o soalho estragado, as paredes danificadas, a biblioteca estragada [as estantes junto ao chão e os livros irremediavelmente perdidos] e, se a meio da noite a chuva não pára, teria sido o fim.
Houve pessoas em lugares mais baixos situados no caminho da torrente que tiveram de rebentar as marquises para a água não se acumular dentro das respectivas casas [Carnaxide desce para o mar: é uma antiga cratera de vulcão] foi um pandemónio.
A Câmara e a empresa construtora da escola escudaram-se no estafado "argumento" da imprevisibilidade e da excepcionalidade do tempo, a autarquia fez o seu show "humanitário" completamente platónico---a "volta de honra da desgraça" pelo local do desastre---a empresa construtora era uma daquelas 'coisas' convenientemente anónimas e inatingíveis [resultante da subcontratação de um subcontratado a um subcontrato que...] e cada um ficou com os estragos e a rezar para que não volte a chover vdaquela maneira e não se construa mais na serra...
É por saber na pele que assim é que eu sofro ainda mais agudamente de cada vez que "isto" acontece.
E o mais trágico é que, com o país que temos, a gente do poder e a gente que põe gente daquela no poder, "isto" está sempre a acontecer...
TEM DE acontecer.
É uma verdadeira tragédia recorrente a da menoridade cívica crónica associada à infantilidade política persistente!...
Em cada imagem desse Funchal destruído, reencontro os lugares por onde passei, semana após semana, os ambientes, as lembranças de um modo de vida e das pessoas: a esplanada do Apolo, o Centro Comercial, a zona da Marina, o Mercado dos Lavradores, a ribeira de S. João… No primeiro ano, quando estive no lado Oeste, durante as viagens de três horas até à capital, quase sempre me distraía a observar a paisagem e a admirar-me da forma como as casas se implantavam em pequenas plataformas de terra, aproveitando-se milimetricamente qualquer espaço plano, ainda que fosse à beira do precipício. De que forma, se assim não fosse? E como plantariam a terra, se não a tivessem roubado, degrau a degrau, à montanha?
Já do Funchal, a cidade dos Jacarandás, nunca poderia supor que a conquista da montanha e os limites impostos à ribeira fossem uma triste condenação. Uma vez subi a pé toda a Rochinha e “caminhei”, à boa maneira madeirense, até ao Jardim Botânico. No regresso, a vista do casario, do mar, das flores e das buganvílias que espreitavam por todo o lado era verdadeiramente impressionante. Essas eram as imagens que abafavam um “outro lado” da realidade, que era menos bonito, nada bonito, e que se podia resumir tão bem com a expressão: “A Madeira é o Funchal e tudo o resto é paisagem”. Suponho que as novas estradas e os viadutos terão possibilitado maior circulação das ideias e, talvez, uma maior abertura das mentalidades. Não sei se permitiu calar os medos primários que tão bem foram sendo incutidos em muitos espíritos. Mas sei que tanta daquela gente simples, centrada num pequeno espaço de horizontes cansados não merecia tal inferno. Já bastavam as derrocadas sobre as estradas, a chaga do alcoolismo, de certos “predadores”, as ribeiras que já iam engolindo pessoas em cada Inverno mais rigoroso, as lágrimas do bordado rejeitado por causa de uma simples e quase invisível imperfeição…
A acção humana não soube olhar para o futuro, convencida de que os seus erros iriam sendo perdoados por um clima ameno (em Dezembro, os turistas estrangeiros bronzeavam-se nas ruas do Funchal e eu vinha constipar-me no Alentejo, esquecida que, por cá, a temperatura era diferente). E agora, como corrigir os erros de modo a enfrentar a realidade das mudanças climáticas? Nascerá um novo Funchal, à semelhança da Lisboa Pombalina?
Que triste ironia, este ano eu queria voltar àquela ilha para avaliar as transformações!
Vivemos, infelizmente, num mundo em que ninguém consegue perceber a relação constante [e necessária!] que existe entre uma causa e um efeito,
Resulta isso do facto de a ciência, como tantas vezes tenho dito, estar na posse de uma camada limitada de multinacionais para onde 'emigram' regularmente os cérebros que [se houvesse Estado e funcionasse!] podiam pôr os conhecimentos que têm ao serviço da construção de uma sociedade minimamente esclarecida e consciente.
O que sucede é o inverso: logo que um desses "cérebros" emerge é "raptado" pelas multinacionais e é nelas e para elas que ele vai investir o seu conhecimento e com ele todo um modo rigoroso e científico de ver o mundo.
Cá "em baixo", onde o verdadeiro saber não chega, continua a viver-se de slogans e títulos de jornal.
Patacoadas, generalidades, mitos, superstições.
Sempre me horrorizou aquela situação de uma sociedade acabar de eleger com o seu voto um patife qualquer e, logo a seguir, desatar a queixar-se amargamente e a choramingar como se o patife em causa tivesse chegado ao poder por... 'obra-e-graça-do divino-espírito-santo' e não em resultado daquilo que as pessoas que, agora, choramingam depuseram numa caixinha, algures, num local de voto perto de si...
No clima sucede o mesmo: vem um fulano e diz que o aquecimento global vai desequilibrar todos os mecanismos ecológicos mas vem logo outro a seguir que diz que não é bem assim, que "até é bom" porque, por exemplo, a fusão das calotes polares vai pôr a descoberto prodigiosas riquezas minerais e por aí fora...
Para as pessoas, é um jogo, um espectáculo, uma diversão, esse choque opiniões em matérias tão graves como a da nossa sobrevivência material e a dos nossos filhos...
E como o que importa, realmente, é saber se o Vanderlei sempre casa com a Gerusa e se o Ivan matou ou não o primo ou o tio ou se sempre posso trocar de carro por um maior que o meu vizinho de cima já tem um, continuamos, na Madeira ou fora dela, a "ver passar os combóios" em matéria climática, em matéria política, em matéria cultural---nas... matérias todas, completamente à mercê de uma coisa "destas" e, desgraçadamente, de muitas outras...
É uma questão de educação cívica, política ou ambiental mas é sobretudom, uma questão de EDUCAÇÃO.
Que não há!
E daí, isto.
Hoje foi na Madeira, amanhã em Coimbra, depois no Vale do Zêzere
e, depois, não se sabe...
Trágico?
Não!
Como dizia o outro: 'isto, na Madeira não é acidente: é condição'.
Como se dissesse: "sempre houve pobres e ricos", "que é que a gente há-de fazer? Os políticos são todos iguais" e patacoadas do mesmo jaez, próprias de quem não pensa, não intervém nem age, nem sequer para se defender e objectivamente SOBREVIVER.
Enviar um comentário