Percorrendo, recentemente, as "Novelas Eróticas" de M. Teixeira Gomes, surgiu-me no espírito uma espécie de vago projecto de "reflexão alargada" ou de "leituração activa" da célebre 'figura crítica' do "provincianismo" de Pessoa.
Porque Teixeira Gomes o seja?
Exactamente ao contrário, porque Teixeira Gomes, o Teixeira Gomes escritor, cosmopolita e finíssimo epicurista, observador educado e esteta atento; o Teixeira Gomes, ao mesmo tempo, sofisticadamente céptico e subtilmente estóico, pode ser visto como configurando o anti-provinciano nacional, de algum modo, por excelência, i.e., a figura que opera como o polo oposto, ao mernos, simbólica ou teoricamente, do conhecido conceito pessoano.
A reflexão que proponho implica estudo mais atento e consulta/reconsulta directa de textos.
Para designar o objecto da proposta que ele envolve vou, todavia, desde já propondo um termo: o "decadentismo".
Acho, com efeito, que se pode, com alguma substantiva propriedade e justeza, falar de "decadentismo"; numa espécie de "linha" ou "linhagem" decandestista", mais ou menos contínua, nacional ligando, por exemplo, um Cavaleiro de Oliveira a um Teixeira Gomes e este a um Jorge de Senna a partir do que admito, em tese, ser uma circunstância, objectiva mas, sobretudo, subjectiva, comum que é a de terem podido operar relativamente à 'circunstância mental' geral um distanciamento de onde saíu "luz crítica" final sobre esta.
Ou seja: há na 'figura mental crítica' de todos eles, directa ou indirectamente; de forma expressa ou não o resultado da inclusão substantiva discernível nas diversas formulações que, até popr absurdo, fizeram sobre a portugalidade---sobre todos "nós" como "circunstância mental" estável e possvelmente tópica, de um efeito de "Verfremdung" que teve o mérito invulgar de oferecer ao "específico mental" nacional, tal como ficou a partir de dado momento histórico, constituído, um espelho para observar-se, se assim o desejar; um contraponto especular relevantíssimo que ele não terá sabido aproveitar [mas aí ainda há portugalidade, há sedimentação dela; há, se se quiser, reafirmação prática dela...] mas que existiu e poderia, em tese, no limite, ter proporcionado ao Portugal físico um outro Portugal mental completamente novo e diferente.
Melhor?
Mais crítico, mais lúcido, mais esclarecido, com certeza.
Todos esses homens [e mais um José Anastácio da Cunha que foi um emigrante e/ou um "viajante interior" e, num certo sentido um "transfuga mental"] têm em comum, pois, o terem gozado do privilégio de poder ter saído física e, depois, mentalmente da circunstância mental nacional, tendo, a partir daí, gozado do privilégio crítico único de vê-la "de fora".
E, se cada um reagiu crítica e literariamente a seu modo, há uma linha teórica [parafraseando Butor e um esplêndido título seu:] um "génie du lieu literário" ligando todos eles e que se traduz,, entre outras coisas ou traços possivelmente tópicos, no tal sofisticado cepticismo/epicurismo [no caso de Sena e dos seus "Sinais de Fogo", um "The Sun Also Rises" e e, de um modo mais lato, uma marca de "geração perdida"---outro termo óptimo para sinonimizar alternativamente o "decadentismo" tal como eu o vejo...---uma espécie de desesperado e voraz apetite pela multiplicidade das experiências de onde a percepção da impotência própria para mudar a História abre disfarçadamente a porta à presença impendente de uma sugestão 'consumição triunfal' ou mesmo de admissível 'suicídio ritual pela acção' que torna a obra desse cuidado tradutor de Hemingway um curioso "caso" de "hemingwayanismo" ou "fitzgeraldismo" à portuguesa].
Há, insisto, uma marca de fino "disgust" por absurdo na atitude do homem e do escritor que [como Teixeira Gomes nos seus "Contos Eróticos"] vira quase ostensivamente as costas a uma certa realidade portuguesa 'à Júlio Dinis', a uma realidade portuguesa provinciana e exaustivamente 'ordenada' [interna e externamente...] socialmente dócil, conformada, respeitadora dos "valores", temente a Deus e ao pároco ou chefe político ou até "apenas" cultu[r]al e vivencial; turbulenta mas, no fundo, incapaz de disciplina crítica ou justeza estável de auto-análise como em Camilo, brilhante narrador mas fraquíssimo crítico "em profundidade".
Existe, no erotismo das "Novelas" [como em certos "pornógrafos"---e não apenas o fulgurante e torrencial Sade cuja obra é, porém, um verdadeiro "laboratório dos sentidos", um "gabinete de auto/analista" precursor e revolucionário!---do século XVIII, herdeiros existenciais do experimentalismo genuíno, "sério"...] um abrir de portas e janelas potencialmente saneador [volto a dizer: "revolucionário?] subentendidamente crítico dos valores "morais" da tradição, dos limites globalmente aceites do "decoro mental" e/ou "cultu[r]al" [e especificamente literário] que opera [ou poderia operar!] como polo dialéctico à "portugalidade" que não "saíu de casa", que permaneceu externa e internamente; física e mental ou cultu[r]almente "estabelecida" e não teve de [ou quis] "errar" ["errância" é decididamente outro termo-chave do "decadentismo" visto como sublimação estética e experiencial da impotência material]; sair para experimentar, "arriscar", numa espécie de "iluminismo interior" onde surge, então, a figura/sugestão do Cavaleiro de Oliveira ou a desse exilado do espírito que foi Anastácio da Cunha, tudo figuras que se "perderam", forçasda ou espontaneamente, da 'portugalidade estabelecida' figurando assim em múltiplas "gerações perdidas" sucessivas com as quasis desgraçadamente o País como todo parece muito pouco ter afinal, aprendido contribuindo desse modo ulteriormente para maior "perdição" [um "amor" e uma "perdição" completamente diferentes, pois...] ainda.
Fascina-me esse lado "cultu[r]almente sacrílego" e [desesperadamente, sob a aparência ilusória de uma ---irónica?---serenidade ou "nonchalance" e naturalidade exteriores] "profanador" em Teixeira Gomes e não consigo [talvez com excessiva audácia, admito: é um risco "filosófico" que aceito assumidamente correr!] dissociar a circunstância mental, a atitude interior, do Teixeira Gomes das "Novelas" [ou do Cavaleiro de Oliveira, outro 'libertino' que não deixou de chamar a atenção de Cardoso Pires, a dado momento da sua carreira, cronista---nada inocente!---de vários "libertinismos" nacionais] da obra cinematográfica [da obra... política?] de um Marco Ferreri ou até da personagem adfmissivelmente metafórica de um Hannibal Lecter, o intelectual e esteta-limite que devora a sociedade estabelecida e normal em orgias de requintado e irónico devorismo; um Lecter [um "lector" numa sociedade que apenas "vê"---e mal?] que o "Ocidente livre" [sempre tão pronto a "denunciar" o concentracionismo repressional-mental dos "outros"] encerrou significativamente numa prisão/asilo psiquiátrico [onde não deixa, apesaer disso, de acorrer quando precisa de quem pense...] numa demostração, subconsciente ou não, de medo do seu próprio ['seu' dele, Ocidente] lado inteligente, auto-crítico, lúcido, esclarecido e, por isso mesmo, inevitavelmente solitário, perigoso e, claro, transgressor...
Sem comentários:
Enviar um comentário