segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

"«Eram Duzentos Irmãos» [1952] de Armando Vieira Pinto"


Passou-o a RTP Memória hoje, dia 22, no mês do cinema nacional.

Trata-se de um claro filme "de época" no que respeita, desde logo, à retórica patrioteira, muito ao gosto do 'regime' cujos valores assimila, aliás, e reproduz até, no mínimo, ao limite do francamente desconfortável, digamos assim.

E nem é tanto o lado retoricamente nacionalista: é mais o lado "marialva", quase "fadista" que o filme veicula: há um momento em que a avó ['Branca da Silveira'/Lucília Simões] diz ao neto que não se acha com vocação para a tradição---atenção a esta palavra e à sua óbvia relevância para a compreensão efectiva dos valores cultu[r]ais e políticos do filme!...---marinheira da família: qualquer coisa como [as palavras não são estas, a ideia sim]: "meta-se em sarilhos, arranje umas "estórias de saias" e faça dívidas que eu pago mas cresça, faça-se homem!" ou coisa que o valha para, noutro momento, em que inquire se "se passou alguma coisa" entre o neto e a filha do dispenseiro da Escola Naval ['Maria Rosa'/Alda Aguiar] ao ser-lhe, por esta respondido que não, exclama, indisfarçavelmente decepcionada: "Não se passou nada? Então, esse rapaz não sai ao pai e ao avô!"

O filme é, de facto, muito fraquinho, com um elenco relativamente secundário [há Lucília Simões, há Vasco Santana e Humberto Madeira---de quem o filme não sabe, aliás, claramente tirar partido---há Carlos José Teixeira e há, depois, um elenco de actores francamente menos conhecidos que fazem apenas o que "têm a fazer" sem se lançarem em grandes voos nem parecerem, aliás, propriamente capazes disso, de facto] realizado, com muito pouco jeito e inspiração, por um realizador claramente menor [mas muito dado à retórica, quer de conteúdo, quer de forma: o modo francamente desinspirado e banal como filma o mar [o 'regime' falou mil vezes melhor dele quando Leitão de Barros, com todos os desequilíbrios e maneirismos que caracterizam a sua obra, falou dele...] parece uma coisa feita quase completamente ao acaso ao sabor da falta de ideias para preencher o resto do filme, substituídas, estas, pela sugestão pomposa, muito... salazarista, aliás, de um "mar português", associado a uma suposta vocação histórica nacional [vista aqui "pela rectaguarda": os cadetes mais ou menos aristocráticos de uma Escola Naval] de que o 'regime' seria o recolector ou herdeiro natural] e numa altura em que o cinema nacional entrara já em decadência evidente e, ao que se comprovaria depois, até hoje, irreversível.

Vasco Santana [o mau gosto vai ao ponto de chamar à sua personagem 'Fernão Mendes... Minto', copiando um vulgar trocadilho, muito comum à época, com o autor da "Peregrinação"]; Vasco Santana, como disse, "anda por ali", "entregue à sua sorte", vivendo de improvisos [que, de resto, nem sempre lhe saem muito bem, é preciso dizer] lutando denodadamente com o vazio quase total de uma personagem 'popular' cujo papel para o desenvolvimento da "chetória" nunca se chega, aliás, a perceber muito bem tal como sucede, de resto, com a de Humberto Madeira ['Pato Bravo'] [?] com a qual é suposto fazer "pendant" mas com a qual nunca sai do registo chão de "palhaço rico vs. palhaço pobre"---a que se junta, ainda, nessa pretensão de compor o leque de sub-registos do filme com um elemento de "cómico"---o clássico "comedy relief"---Eugénio Salvador, noutro papel avulso e metido ali verdadeiramente "a martelo", para "fazer rir".

O resto são "chetórias" vulgaríssimas de "homens valentes e patrióticos e mulheres fiéis companheiras"; "chetórias" envolvendo uma clara lição de "cada um saber o seu lugar na sociedade" [há, por exemplo, aquele evidente dualismo sargentos/oficiais a que a personagem de Lucília Simões, no fim, confere com um paternalismo francamente convencional e profundamente retórico, alguma humanidade, lembrando que "oficiais ou sargentos são todos matrinheiros", numa evidente tentativa para condescender e deixar, assim, claramente definido, inequivocamente organizado, descensionalmente, o paradigma de "unidade" e "coesão" nacionais de que o filme se pretende obviamente, à falta de qualquer ideia ou ponto de vista minimamente original, fazer eco e arauto].

Mas "Eram Duzentos Irmãos" sobreviveu até hoje, sobretudo, como uma curiosidade e um documento de época, como disse: de época política, pelos valiores que defende e de época cinematográfica pela gritante vulgaridade e falta de interesse próprio, específico seu.

Um documento eloquente da falta de expressão cultural do 'regime', incapaz, depois do grande "essor" representado pela comédia de Lopes Ribeiro, Cottinelli Telmo ou Arthur Duarte, gerar uma Arte a que pudesse a um tempo, legitimamente chamar exactamente Arte e, ao mesmo tempo, sua.

É curioso [e sintomático] constatar como, de um filme que tinha, de facto, um título francamente brilhante [será mesmo possivelmente a única coisa francamente boa nele e dele...] praticamente não ficaram imagens...

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