Ontem, na RTP2, houve "sessão dupla" de cinema português com um Paulo Rocha ["Vanitas", de 2004] e um Manuel de Oliveira ["O Espelho Mágico", 2005].
E houve, "do lado de cá" do écrã um desconforto íntimo e uma perplexidade que ainda estão longe de se ter extinguido....
Com efeito, se o Oliveira consegue ser razoavelmente estimulante ["geométrico" e rodando, como sempre, em espiral, embora, na sua aparente a-geometria e distintiva natureza sempre algo rígida e rectilínia, ele é, de uma forma algo contraditoriamente labiríntica, barroca e sempre muito idiossincrática, "pure Oliveira pós-"Aniki-Bóbó"/"Douro, Faina Fluvial"...]; se assim é, dizia, o Paulo Rocha é, sobretudo, "inquietante".
Cultural e cinematograficamente inquietante.
Há, definitivamente, um grave e profundo problema com o cinema nacional!
Falta----de forma gritante, clamorosa, arrasadora!---'uma indústria', claro.
Mas 'uma indústria' [como---deixem-me lá que, mais uma vez, puxe a 'brasa' à minha 'sardinha profissional': por alguma razão os meus "quistos" são todos ou quase todos... "didácticos"...]; 'uma indústria', como a autoridade perdida nas escolas, não se decreta nem se impõe por qualquer outra forma oficial.
É um dado de cultura, um "fact of life", como outro qualquer.
A verdade é que 'uma indústria' possibilitaria aos cineastas nacionais ["whatever that means---which is open to debate"...] pararem, de vez de, substituir, nas coisas que fazem, a prática do cinema [do Cinema] por uma outra, adventícia e completamente espúria, de "reflexão fílmica e filmada sobre ele" que está longe de ser a mesma coisa e configura uma realidade que não pára de gerar [e multiplicar!] equívocos e resistências que, em última análise, o inviabilizam.
Uma 'indústria' que pusesse os pontos nos ii em certas questões básicas, primárias, de linguagem [que diabo! A linguagem do cinema não tem de ser reinventada do zero a cada novo objecto: uma 'indústria'---mesmo implicando necessariamente a emergência de coisas horrorosas de todo o tipo, traz consigo uma certa "tranquilidade semântica" e "sintáctica" geral que falta, de todo, a um cinema, no fundo, completamente por re/inventar como é o cinema português de hoje].
A linguagem do cinema tão pouco é o fim de si própria e um fim em si própria.
Não pode ser!
Quando isso aconteceu na literatura, por exemplo, estava por trás uma forma de civilização para acabar---o que está longe de ser animador, como se compreende.
Sintomático, talvez, mas animador, seguramente que não!
Eu diria que, antes de uma indústria faltou [e continua a faltar? É uma pergunta que faço sem ter objectivamente elementos que me permitam dar-lhe resposta] uma Escola [uma Escola e uma escola, "if you get my drift"]...
Ou seja, uma Escola [instituição pedagógica com um corpo docente e uma filosofia e uma epistemologia próprias] que pudesse gerar e fixar uma... escola [um 'hábito' genérico, amplo, colectivo e estabilizado de cinematizar a realidade] onde alguém ensinasse, a partir de uma visão estável, consistente da Arte, a organicidade intrínseca do objecto artístico-filme, no mínimo dos mínimos.
O Cinema nacional tem uma 'arqueologia' própria onde esse saber chegou a estar já globalmente definido e a plasmar-se mesmo num acervo concreto de "meia-dúzia" de "coisas" cinematograficamente boas [politicamente boas é uma coisa diferente, entendamo-nos!...] mas esse saber, é de todo evidente, perdeu-se completamente nesse súbito "vértice" da nossa História política [e, para alguns, também mental] recente que foi o 25 de Abril.
Mas há uma coisa que é preciso ter presente: esse que foi o cinema 'da ditadura' [o cinema 'do Portuga que levou a ditadura "ao colo" até ao poder material e a man/teve lá, quarenta-e-não-sei-quantos anos]; até esse cinema nasceu, como todos nós sabemos, em última análise, inteiramente... por acaso.
Por acaso e contra a vontade e os projectos, o programa estético, estético-político, de António Ferro e Salazar---se é que Salazar teve algum mas enfim....
Mais: além de ter tido essa espécie de parto imprevisto, ele reduz-se "en fin de partie" a "meia-dúzia" de obras, de facto, cinematograficamente muito eficazes mas girando todas elas em torno de um motivo básico que, a dado passo, fatalmente se esgotou.
Que tinha necessariamente de esgotar-se e, de facto, como digo, se esgotou.
Havia, com efeito, uma "herança" tópica em termos de "estória" que vinha do Teatro, da comédia de boulevard [homens como André Brun ou Félix Bermudes, por exemplo, operaram como uma eepécie de ponte entre ela e o cinema] e que o 'regime' mais ou menos instintivamente adaptou---e "moralizou".
Os trocadilhos e equívocos envolvendo "chapéus de palha de Itália" [que deram de resto directamente cinema, em França com Clair, como se sabe] e bailarinas de cancan ou coisa parecida escondidas em armários de senhores respeitáveis deram pudicamente lugar a um temário onde havia sempre, de um modo ou de outro, um trangressor [que, às vezes, chegava quase "lá", i.e. à brejeirice original, como o "professor de Moral" d' "A Vizinha do Lado" de Brun/Lopes Ribeiro] mas que, em geral, se envolvia mais com questões de dinheiro---e/ou de falta dele.
Na realidade, aquilo que estava, a meu ver, em causa ali, era a ideia de que havia uns quantos "marotos" a quem, ignorando "o seu lugar" no projecto obsessivo de sociedade "socialmente arrumadinha", isto é, obediente, conformada e conformista [lembram-se do filme italiano, do Bertollucci, com esse nome?...] do salazarismo, dava para irem além da "chinela económica e social" que lhes estava destinada.
O que isso tinha de "social e politicamente dessarrumado" [fosse gastar o dinheiro de umas tias idosas ou o de uma outra emigrada no Brasil ou de...] era, também [ou era, sobretudo, era na essência] em abstracto, "traição à ordem estabelecida e, de uma forma ou de outra, à autoridade" [quem dá o seu dinheiro "aos pobres", dando-o generosamente aos mais pobres, não merece ser enganado: dos pobres exige-se que sejam gratos e cumpridores---é assim que funciona toda a pirâmide económico-social e política---a 'lição' de filmes como "A Canção de Lisboa" ou "O Pai Tirano" ou "O Leão da Estrela" é clara e toda a gente no 'Portugal mental, social e político' de então a percebe].
O grande mérito do cinema da época foi o de ter transformado isto que era, no fundo, uma ideia, toda uma retórica moral e, claro, política, num género ou subgénero com "pernas cinematogfráficas" próprias, para andar.
As "pernas" foram um Lopes Ribeiro ou um Arthur Duarte ou ainda um surpreendentemente versátil Cotinnelli Telmo [noutro registo mais 'sério', houve um desigual mas muito intuitivo Leitão de Barros ou um promissor mas, a breve trecho, completamente gorado Brun do Canto] e, enquanto houve maneira de [passe a vulgaridade da imagem!] "cozinhar o bacalhau temático" e homenas de talento para fazê-lo de várias maneiras aparentemente novas, houve cinema em Portugal.
A lição perdeu-se, todavia, por completo esgotado que foi o modelo.
Perdeu-se, aliás, ainda durante a vigência do 'regime' em que a ideia cinematográfica envolvendo o 'bom malandro' a que António Silva e/ou Vassco Santana [mais o primeiro] deram um rosto começou claramente a ser apenas [como dizer? Continuando a usar uma imagética mais ou menos... gastronómica poderíamos dizer] começou a ser, na realidade... "mastigada sem engolir" ["Um marido Solteiro", etc. etc.] e o cinema português visivelmente "encalhou".
Mas há uma coisa que me surpreende e para a qual não tenho, francamente, resposta: por que é que após o fim da I Guerra Mundial [com Antoine e o seu "cinéma libre", por exemplo] res/surge em França, todo um cinema "de ruptura e pobreza técnica" recuperada, sobretudo, esta última numa estética própria de onde vão surgir ou eclodir em triunfo; onde vão impor-se, afirmar-se, os Gance ou os Epstein, os Clair, os Renoir, etc. etc.; por que é que em Itália, após o fim da II Guerra aparece o neo-realismo, outro Cinema 'de crise e de ruptura', outro cinema "pobre", que soube fazer da pobreza um elemento de afirmação e auto-regeneração e abrir caminhos que levaram de "La Terra Trema", "Roma Città Aperta" ou "Sciuscià", por exemplo, aos ulteriores Fellinis ou aos ulteriores Viscontis já incomparavelmente menos políticos ou, no mínimo, de alguma forma menos "militantes"; por que é que assim é na França e na Itália dos põs-guerras mas, em Portugal, após a queda do fascismo e após o fecundo período de 'laboratório social e político' que foi, também em alguma medida, estético e especificamente cinematográfico, nada ou muito pouco de cinematograficamente fecundo, estável e consistente, todavia, emergiu.
Uma explicação possível é que, em Itália ou antes em França existiam bolsas de público culto para as quais a Arte era importante e o Cinema como forma de Arte um meio natural de reflexão sobre a realidade.
De modo que, quando o capitalismo se consolida na sua forma "democrática"--- democrática instrumental----por meio da qual se assegurou de que a 'propriedade e a gestão efectiva da História' [que os autoritarismos tópicos das décadas anteriores tinham deixado de garantir, algo que, em Portugal, fica a cargo de um falsíssimo partido "socialista" neo-bernsteiniano que teve de esperar ainda algum tempo, depois de '74, para... "pegar ao serviço" e re-colar a história do capitalismo nacional onde ela tinha ficado quando as massas populares, tão "inoportunamente" se interpuseram entre ele, capitalismo nacional e a História, em '74]; quando, dizia, se consolida o capitalismo democrático-instrumental em Portugal [ao invés da França ou da Itália onde houve uma classe ou amplo sector do público que continuou a pensar: a pensar a realidade em redor e a pensar-se a si próprio, em Portugal] nada pafrecido com isso aconteceu.
Em Portugal, antes [e infelizmente, no in/essencial, depois de Abril, também...] pensar há muito que se havia tornado um "luxo de ricos" e, de uma forma ou de outra, um hábito perigoso.
Portugal não tinha [eb nunca teve] um proletariado que "animasse" e "desse vida"; que "conferisse movimento" à História mas a verdade é que, tão-pouco, possuía uma intelligentsia que regular e, sobretudo, consistentemente, a pensasse: como se diz no futebol, Portugal... "não tinha extremos"...
E o pior é que "no meio" também acabou---de forma natural, aliás---tendo em vista outras "ausências históricas, sociais e políticas", por existir um vazio, um vazio crítico imenso onde cinematografia alguma poderia, em última análise, consolidar-se e prosperar.
Um ou outro filme, talvez---mas uma cinematografia?...
Seria isso?
Fosse-o ou não, a verdade é que não há hoje, demonstravelmente, um Cinema português---o que, voltando ao início destas notas, força cada realizar a recomeçá-lo [desde logo, no que respeita à linguagem, à gramática e até mesmo ao simples léxico] do nada---o que, não existindo cinema, tem, naturalmente, que se lhe diga...
É aí que falta, a meu ver, a tal Escola, a tal escola-instituição.
Uma escola, uma visão, uma perspectiva cultural mas, de igual modo, algo concreto e concretamente "ensinável" [com currículos, "estudo acompanhado", exercícios escolares, etc.] que permitisse evitar equívocos clamorosos como este "Vanitas", de um importante e consagradíssimo Paulo Rocha.
Que até fez "Verdes Anos", que é um verdadeiro ângulo ou vértice no Cinema português...
Se este existisse, claro mas a verdade é que, a partir daí, até poderia ter [re?] começado a existir.
Porque uma gravíssima falha de Rocha e especificamente de "Vanitas" é ter completamente ignorado que um filme é, antes de mais, um objecto orgânico---ou não é.
Não é filme, quero eu dizer.
É isso que falta, possivelmente, ensinar nas escolas já existentes: transmitir a ideia, o princípio teórico básico, autenticamente primário, de que um filme não é um exercício formal [isso faz-se na escola]; de que ele não é--- sempre, quero eu dizer; obrigatoriamente, quero eu dizer---uma reflexão obsessivamente recomeçada e nunca efectivamente acabada sobre o meio de expressão enquanto tal.
Não basta "fazer bonito", que diabo!
Um filme 'é' um argumento [algo que deixou praticamente de haver no cinema português]; são actores [que hoje ou vêm do Teatro ou são meros espontâneos "com jeitinho" mas claramente---lá está!---sem "escola" [um crítico, André Sá, na Net fala a propósito dos actores em "Vanitas" expressamente em "erros crassos [de Paulo Rocha] na direcção de actores" e tem toda a razão: aquela gente mais do que sugerir cinematograficamente, de forma "educada" e consciente, a decadência que se pretende ilustrar, parece, sobretudo, estar a fazer um frete incrível por a terem posto ali a fazer não se sabe bem o quê excepto um esforço hercúleo para conter os bocejos e adormecer de vez, completamente incapazses de vencer a gigantesca falta de convicção que parece ter-se apoderado de todos...].
Mas um filme é também uma visão total e um projecto consciente e consistente de gestão global de um conjunto integrado de elementos que vêm dar corpo a um outro projecto específico envolvendo rostos, posições significadas no espaço, uma estrutura e um fio narrativos, etc. que aqui, se existem, é apenas na forma de uma intenção teórica muito genérica e muito difusa, muito vaga e muito lata: "ir buscar imagens e poética a um género de pintura alegórica que floresce na Europa do século XVI representando a luta das Vaidades deste Mundo contra o Tempo e o triunfo da Morte" [cito da já referida crítica de André Sá].
Pois... o pior é que, não "havendo", como vimos, propriamente filme, bastavam... "a pintura e a poética": já lá estavam, lá ficaram, nada ocorreu, envolvendo-as, que viesse dialecticamente "de diante para trás" i.e. do filme [presente temporal e/ou cultu(r)al] para a pintura [passado, idem], fosse em que aspecto ou plano fosse, que, mesmo remotamente, a tocasse quanto mais que chegasse efectivamente até ela.
Há, de facto, um imenso equívoco de organicidade no filme: ele tem, imagens, enquadramentos, belíssimos mas não arranjou [isso é evidente] contexto efectivamente cinematográfico para elas: desperdiças, esbanja-as ingloriamente, não sabe de todo, o que fazer cinematograficamente com elas.
Falta ali, de uma maneira que quase... "grita" aos ouvidos do espectador, uma marca pessoal distintiva, um sinal, um ponto de vista visual, plástico, consistente e orgânico sobre o que quer que seja: algo que "agarre", que dê mostras de uma determinação efectiva de cinematizar, de pensar já com o Cinema e não simplesmente usando-o.
"Vanitas" é uma "coisa", que, pelo ar de puro enfado e de pura impotência textual, narrativa, que dele a cada plano, a cada sequência se desprende, exaspera, impacienta, irrita mesmo---se pensarmos que é um filme de Paulo Rocha, "do" Paulo Rocha [do cineasta que fez "Os Verdes Anos" e merece, por isso, uma consideração a que o filme está, porém, a quilómetros de fazer jus] mas que simplesmente adormece, se não fizermos ao próprio Paulo Rocha, a justiça de, a cada momento, lembrá-lo...
Diz um texto que consultei que Isabel Ruth está excelente no papel de 'Nela Calheiros'; eu diria que, perante o que a rodeia nessa matéria e com a experiência da própria Isabel Ruth, difícil seria que, mesmo que não estivesse, não perecesse, pelo menos, estar...
Resumindo [e, repito, não há o mínimo de má vontade, nisto!]: "é "Vanitas" [sem exagero] um daqueles filmes que, passe o sarcasmo, é preciso não ver para... gostar; um que serve para se perceber exactamente por que razão, para muitos portugueses [nem sempre pelos melhores motivos, é certo mas essa é outra questão!] o cinema se divide ainda em cinema "bom" e cinema... português.
Talvez tudo ou quase tudo sobre o filme fique dito citando, num ponto particular, o blogue "O Insurgente": segundo este, o filme que custou ao ICAM 645.500 euros, teve ao todo, 493 [!] espectadores, o que dá 1315 euros, nas contas do blogue, por espectador.
Será preciso dizer mais?...
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