sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

"«The Straight Story» de David Lynch"


Eu sou, confesso, um... "leiturador" devotado deste singularíssimo Lynch!

Porque incomoda, porque inquieta, porque intriga e raramente deixa de perturbar, constituí-me, há muito, "visita" regular das 'coisas' que faz.

Um óptimo exemplo desse pendor caracteristicamente intrigante e idiossincraticamente "inquietador" [a falta que faz em português um equivalente do inglês "disquieting", santo Deus!] é este surpreendente "The Straight Story" com o qual, humildemente o confesso, só muito recentemente travei conhecimento directo.

Porque é, em si mesmo, mais um dos perturbadoramente insondáveis e labirínticos, com frequência, abertamente, não-figurativos "exercícios narrativos" típicos do realizador de "Eraserhead"?

Precisamente ao contrário, porque não é nada que se assemelhe sequer de longe a isso!

Porque é um filme comovidamente linear e delicada [quase pudicamente] crepuscular, onde uma extraordinária [e muito imprevista!] capacidade para deixar-se simplesmente emocionar com as coisas mais singelas e mais humanamente "pequenas" e anónimas da vida---um filme que não se esperaria, em caso algum, do mesmíssimo Lynch que havia já feito o citado "Eraserhead" [um exercício fílmico que é toda uma empolgante incursão por uma fortemente intelectualizada estética "teledisco"] ou o esplendoroso e angustiante [quase beckettiano] "Mullholland Drive".

Tantas vezes se trouxe [a meu ver erradamente mas enfim...] à colação o suposto "minimalismo narracional" do criador de Godot que valeria seguramente a pena a quantos, a propósito de Beckett defendem tal perspectiva, "vir criticamente até aqui", até esta seminal e sanguínea "Story" lyncheana, ver "in loco" o que é realmente o minimalismo de que tanto se fala [volto a dizer: mal] relativamente a Beckett.

O 'minimalism'o é, a meu ver, com efeito, exactamente algo em tudo parecido com isto: algo que está presente [e, no "caso" vetrtente, serve mesmo, em última instância, para "definir"] um filme [ou um quadro, uma peça de teatro o que quer que seja] que torne as palavras não apenas completamente desnecessárias [o que está, aliás, volto a insistir, "a quilómetros" de ser o "caso" de Beckett] como, sobretudo, inoportunas e até completamente impróprias.

Um filme, uma peçaItálico de teatro um quadro capazes de converterem a emoção directa ["alquimicamente"? Há uma "alquimia da textualidade" que intervém aqui em pleno!...] em Conhecimento sem recurso à mediação exógena ou exogenamente terciária [e, não-raro, até um pouco desconfortável---intrusiva? Invasiva?] do "texto" esclarecedor/complementador.

"The Straight Story" é muito simplesmente a "estória" de um homem que não perdeu a esperança de encontrar o sentido para a morte antes da própria morte---algo que pela sua pungente condição de experiência total e limite, dispensa o recurso ao expediente fatal ou invariavelmente redutor das palavras.

É um filme fabulosa---arrepiantemente!---"jogado" na ténue e inquietante [não?] fronteira que separa [ou que, pelo contrário, liga de forma literalmente inextricável] o sublime ou o épico e o grotesco ou patético: "one man's epic is the next man's grotesque", parece ser o lema do filme.

[Um filme... "patépico", poderia chamar-lhe, por exemplo, um Mia Couto...]

Um lema que o descreve, na perfeição, em todo o caso, creio eu.

"A Straight Story" é, numa palavra, um filme que nos leva em puro esplendor ao também puro [e definitivo] vazio do Fim, é verdade, mas que tem, de igual modo, o mérito absolutamente inestimável de, fazendo-o, nos confrontar com a questão verdadeiramente essencial do "sentido"---de um modo tão simples, visceral e directo, porém, que torna a angústia extrema do inatingível num inesquecível, grande momento de vibrante Humanidade assim como da mais intensa e inexprimível Beleza.

2 comentários:

São disse...

Não aprecio muito David, mas adorei este filme!

Bons sonhos.

Carlos Machado Acabado disse...

Eu gosto muito do Lynch, confesso.
Intriga-me, logo gosto...
Não incondicionalmente mas gosto.
Exactamente porque surpreende e raramente deixa de intrigar e perturbar.
O facto de ter feito este surpreendentemente simples, impiedoso, violentíssimo e crepuscular "The Straight Story" confirma-o, aliás: quem poderia antecipadamente esperar "aquilo" do Lynch do labiríntico e obsessivo----do "lynch... sem fundo"...---de "Eraserhead" ou de "Mulholland Drive"?
A Beleza está, também, de algum modo na capacidade de desconcertar e surpreender, acho eu, em suma.
Um grande beijinhjo que, no meu caso, tem de ser... matinal.

Carlos