Exibiu-o a RTP Memória, hoje, dia 24.
Mal, como é seu apanágio: o filme, escuro como breu---os rostos, as respectivas expressões, enormes áreas do écrã---desaparece quase todo na cópia exibida que ainda por cima passou amputada das extremidades do 'campo'---uma prática absolutamente inimaginável de exibidor manhoso e boçal que a estação pública descaradamente repete filme após filme sem que a S.P.A. a quem compete zelar pela propriedade intelectual dê mostras de se incomodar minimamente.
O filme, dizia, então, passou, então, numas condições verdadeiramente deploráveis [António Macedo, o realizador, tê-lo-á, na circunstância, revisto? Se sim, que terá ele pensado daquele infame "trabalho" de exibição?] e, para agravar ainda mais o que, já por si, é desrespeito absolutamente primário pela Cultura, a dado passo, ainda, como se já não bastasse quanto referi e mais aquele indescrítivel "crachat"---cf. etimologia da palavra...---com o despropositado logotipo da estação obliterando indiscriminadamente rostos, expressões, detalhes, enfim, tudo o que tenha a pouca sorte de lhe aparecer à frente, alguém se lembrou ainda de "decorar" o écrã onde o filme ia passando com uma espécie fita de nastro azul desenrolada na base desse mesmo écrã com um apelo---que, aparentemente não podia esperar uns segundos que o filme acabasse...---à solidariedade do País para com as vítimas da recente tragédia ocorrida na Região Autónoma da Madeira.
Não está obviamente em causa o conteúdo do apelo: está, sim, o escandaloso desrespeito pelo filme que a alarve intromissão do tal "nastro" indiscreto configura, podendo este perfeitamente ter passado uns segundos ou minutos depois sem que ficasse minimamente em causa quer a sua eficácia do apelo, quer a intenção com que acredito que foi concebido---e divulgado.
Já é tempo, com efeito, de a RTP perceber que passar filmes não é exactamente a mesma coisa que vender batatas na mercearia ou [sei lá!] peixe no mercado: pressupõe inteligência, cultura e sensibilidade ou até simples e elementar bom senso.
Não faz sentido e soa a hipocrisia pura e simples andar-se constantemente a pedir às pessoas que "respeitem a criação artística" não colaborando com as várias formas de pirataria cultural para, depois, a televisão pública manifestar a sua própria [clamorosa!] indiferença e falta de critérios---eu insisto: falta de inteligência e de cultura!---na relação com as obras de arte, boas ou más, que lhe passam pelas mãos...
Claro que, sabendo nós o que infelizmente sabemos sobre a qualidade técnica dos filmes nacionais em geral [este data dos início dos anos '70: é de 1972] não custa admitir que uma parte considerável da "escuridão" advenha do próprio original em película; a verdade, porém, é quie se pode questionar se vale a pena passar um filme nestas condições e se não haverá meios de lhe "abrir um pouco a luz original" de modo a que ele possa ser realmente visto pelas audiências televisivas.
Trata-se de um filme que já saíu há muito do circuito comercial; que esteve em Cannes em '73; que foi premiado com o Mujol de Oiro em '74 em Cartagena e com o pémio especial no Festival de Teerão, no mesmo ano; há, por outro lado, ainda, pessoas [entre as quais me incluo] que não tiveram oportunidade de vê-lo quando correu nos cinemas; é uma obra de um realizador conhecido e com alguma importância no contexto do chamado [ou do... chamável] 'cinema novo' portiguês, seguramente que justifica a iniciativa da exibição mas, não havendo modo de atenuar as falhas óbvias de luz, francamente...
Enfim, o filme, seja como for, passou; falemos, então, um pouco especificamente sobre ele.
Primeira observação: a sua origem teatral.
O filme parte, como é sabido, de um libreto teatral homónimo de Bernardo Santareno.
Ora, sabe-se como a origem teatral dos textos levante questões---problemas---profundíssimos de "narratividade" para os quais o Cinema foi encontrando variadíssimas soluções, desde a assunção clara, integral, da teatricidade original até à de "escamotear" [de "pôr entre parênteses", de "empocher"] narracionalmente" o ponto de partida do Filme, passando pelos projectos teóricos e práticos de fusão do Teatro com o Cinema que foram uma das caracteísticas do... "cinematro" ou "teatrema" de Olivier ["Henrique V", "Ricardo III", a partir de Shakespeare].
O que me parece demonstrável é a natureza narracionalmente distinta, epistemologicamente específica, própria, dos dois meios de expressão artística: em resultado das limitações impostas à---como consequência do estatismo físico forçado ínsito à---acção teatral, a possibilidade de "inscrever" ideias como tal no drama [e não é preciso remontar a Ibsen ou até a Strindberg!] quando gerida por um dramaturgo competente não se revela necessariamente incompatível com sucesso técnico-estrutural e especificamente artístico da obra teatral como tal.
Um dos problemas que, a meu ver se põem ao cineasta que pretende partir de uma peça teatral para construir um filme é o de encontrar um veículo visível para as ideias que é como quem diz um equivalente visual para a palavra: palavras visuais, por assim dizer.
Entrando nessa condição no Cinema, a palavra corree de facto o risco de se converter num "incómodo" ou "obstáculo" retóricos àquilo que é a essência mesma---o específico, cinematográfico.
Tenho para mim, aliás, que um dos grandes problemas próprios ao cinema português mais moderno advém precisamente do facto de os realizadores se verem com demasiada regularidade confrontados com limitações de natureza técnica que os obrigam a "encostar", por vezes francamente demais, o cinema que fazem ao teatro---nem todos sabendo, como é sabido, iludir [como Oliveira, por exemplo] esse condicionamento material muito forte, recuparando-o como faz o realizador de "Vale Abraão" [discutivelmente e com debatível sucesso aqui e ali, é verdade] de modo a integrar, de modo idealmente estrurutural e natural, a sua visão própria da cinematicidade específica do meio.
Ora, no caso dest' "A Promessa", parece-me a mim que a tentativa de lidar cinematograficamente com a teatralicidade do texto de Santareno [1957] passou muito mais pela inserção de quadros paisagísticos, alguns, de facto, muito belos [estou-me a lembrar, por exemplo, do plano final do filme que é, de facto, esplendoroso] numa acção que permanece sobretudo teatral do que por uma efectiva cinematicização estrutural da mensagem artística.
Há momentos de excesso [de "débordement"] expressional que no palco funcionariam às mil maravilhas [a sequência da violação, por exemplo, pelo modo como está encenada, aqui soa demasiado "a teatro" e por consequência, não sendo obviamente o filme... teatro, se parecem também demasiado com uma mera procura mais ou menos fácil do "efeito"]; há, dizia, momentos de excesso que vêm directamente do Teatro e que nunca são efectivamente "traduzidos para Cinema" onde a linguagem é muito menos [até plástica, até visualmente] retórica do que no palco.
Isto, repito, sem prejuízo da evidente beleza de alguns enquadramentos do filme---daqueles que as condições específicas da exibição permitiram "bom gré, mal gré" ver...
Não seria obviamente impossível---nem ilegítimo, longe disso!---recorrer, como 'programa estético e narrativo' próprio a um registo "à Dreyer", por exemplo mas pessoalmente, confesso, continuo a pensar que não sendo "A Promessa" um mau filme nem coisa que se pareça, falta ali alguma fluência estrutural, instrínseca, fornecida a partir do próprio argumento para flexibilizar então, com completa eficácia, a narração e convertê-la num 'objecto' indusputável e genuína---cinematograficamente--- "orgânico".
Não ignorando, volto a dizer, que um filme pode ser 'cinematograficamente orgânico' de um modo chamemos-lhe: dialéctico, incorporando assumidamente o Teatro nessa organicidade...
Segundo aspecto: parece-me claro que a grande mensagem final do Teatro de Santareno assenta numa espécie de projecto global de exaltação, algumas vezes [até para Teatro...] francamente retórica, simplificadora---quando não, em mais de um aspecto, francamente simplista, tendencialmente esquematizante e, muitas vezes, convencional, da ideia [ou da ideação, conceito que, para mim, devo dizer, possui um matiz semântico distintivo, específico, próprio] condutora, omnipresente, de Liberdade.
"A Promessa" original, a sua, parte do motivário bíblico ['Maria', 'José', 'Salvador'----um velho bêbado semi-paralítico...---o próprio Cristo errante na pessoa de Labareda?] para negar a visão auto-repressora, auto-mutiladora---a "promessa" por meio da qual negam, de forma absurda e desprovida de qualquer razão aceitável, a própria base material da circunstância matrimonial, amputando-a de parte da sua natureza específica: a comunhão também sexual.
Fazem-no, repito, de forma em cujo centro está presente, de forma simbólica [na "promessa"---]a própria gratuidade in/essencial do que fazem: por quê e para quê, com efeito, auto-mutilar-se sexualmente se isso em nada contribui para a salvação do velho pai de 'José'?
A tentação de "ler" ou "leiturar" quase literalmente o simbolismo do temário obviamente bíblico leva à admissão da hipótese violentamente "sacrílega" de, através do recurso ao par composto por José e Maria [até a questão da concepção virginal de Maria lá pode estar através da suspeita de José, eco possível da do José bíblico relativa à concepção da esposa, de que ela o teria traído com Labareda, numa espécie de inversão radical e total esvaziamento da própria natureza virginal---leia-se: 'auto-suprressivamente espiritual' de Maria] o autor estar a dizer que não será através da aceitação da proposta de negação da 'liberdade de ser' contida na negação simbólica do corpo e de alguns dos seus atributos ou atribuições próprios que, no limite [e na realidade!] se pode "salvar" o Pai---Deus, a ideia de Deus, a ideia de um rumo ou direcção para a ascção humana, sugerindo-se desse modo uma re-leitura muito mais humanizada e atév francamente mais humanista do mitário bíblico, utilizado aqui, nesse caso, como uma espécie de metáfora de algo muito mais lato, muito mais amplo que é, no fundo, a nossa própria maneira de abordar a questão do Homem, da sua condição e da sua relação, em última análise, com a Liberdade.
Com o direito a agir de acordo com a sua integralidade ou inteireza e/ou totalidade.
Para o homossexual Santareno, este projecto ficcional de insurreição e revolta contra a repressão vinda de um quadro moral que por sistema mutila [que mutila das mais diversas formas e maneiras, de resto] é, com certeza, algo que se impõe naturalmente, não sendo difícil compreender o possível sarcasmo que talvez subjaza à admissível desconstrução que de um conjunto de aspectos particularmente relevantes do temário bíblico é feita na peça original.
Não mais difícil de entender é, também, o perigo para o seu próprio modo de lidar com a Liberdade que a ditadura viu [e quando não viu, terá intuído] no teatro de Santareno.
Mas se o regime viu no modo como na peça é tratada a religião institucional que fornece o pano de fundo témico para o discurso metaforicamente libertador em tese levado a cabo por Santareno, já António Macedo, o realizador d' "A Promessa"-filme, um homem assumidamente virado para o esoterismo iniciático viu nela o ensejo ideal para avançar com a sua "demonstração ficcional" das, do ponto de vista esotérico e iniciático, insuficiências e fragilidades do cristianismo romano exaustivamente desancado no filme onde, por exemplo, a figura de 'Mário', o irmão cego surge como um possível 'símbolo' de sabedoria ou perfeição gnóstica: metaforicamente sem olhos, o Homem, o seu espírito , "vê" melhor---e é, sem dúvida, curioso notar como o ciclo auto-supressional pode, posto originalmente em causa por Santareno na su' "A Promessa", em tese, reabrir-se ou reiniciar-se, ressignificado e redireccionado, nesta segunda leitura de sinal admissivelmente iniciático e/ou esotérico].
No fim, podem as duas leituras, a de Santareno e a de Macedo, coincidir: se Labareda pode ser Cristo errante na Terra, Santareno "mata-o" [mata simbolicamente o Cristo a quem foi feita a promessa, i.e. aquele de quem dependia o falso, infundado, "sentido" da "promessa" a fim de permitir a libertação, igualmente simbólica, do corpo ou dos corpos, a recolagem destes à sua integridade natural] tal como o "mata" Macedo para quem a ressurreição pressupõe iniciaticamente, de forma nuclear, a Morte e para quem está, sobretudo, em causa mostrar como a libertação de José e Maria pressupõe a "morte" da suas vinculação a um edifício teológico-institucional que os conserva reféns de si e impede que assumam a sua 'verdadeira identidade teológica', digamos assim.
Concluindo: é "A Promessa", sem dúvida, um filme não cinematograficamente perfeito, é verdade, mas inquestionavelmente interessante e globalmente considerável; francamente estimulante pelas várias possíveis leituras de um conjunto de motivos, de um modo ou de outro, referenciais no contexto da cultura ocidental que admite; pela multiplicidade de questionamentos que induz ou permite induzir a partir da consideração crítica dos mesmos e, por via deles, de muito do que somos como Identidade colectiva e como Cultura; pela fértil polissemia que contem e que, se outro mérito não tivesse, teria seguramente esse de nos estimular a que nos interroguemos, reflictamos e, idealmente, fiquemos a conhecer-nos um pouco melhor.
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