O que vou dizer é, à primeira vista, polémico, reconheço.
O desejo premeditado de sê-lo, no sentido da abertura de um possível processo de sã discussão em torno de aspectos verdadeiramente essenciais nossa vida colectiva, está---reconheço-o também---longe de estar ausente dos propósitos que nortearam a sua escrita e apresentação pública neste espaço de [ao menos, potencial...] reflexão e debate que é o "Quisto Didáctico".
Seja como for, o que quero dizer, aqui, hoje, começa pela seguinte constatação: na passagem histórica [e, especificamente política] do Portugal da ditadura [aquele onde o "pós-guerra orgânico global de '45" se refugiou quase até ao fim do século XX depois de ter sido, há muito já, em diversos aspectos, expulso da maior parte das sociedade europeias e mundiais da época...]; na passagem, dizia, desse Portugal artificialmente retardado e artificiosamente "preso ao Tempo" que foi, na in/essência, o salazarismo para o Portugal formalmente democrático que passou a vigorar entre nós, a partir de Novembro de '75, perdeu-se aquela que era, em meu entender, uma das grandes virtualidades estruturais da arquitectura política, objectiva e também subjectiva do Estado Moderno que o fascismo, queira-se ou não, conservou---e até, de uma forma estruturalmente perversa, embora [e aí é que reside, de facto, o problema] potenciou.
Falo daquilo que designo pelo "Estado" [ou pelo paradigma teórico de "estaticidade"] orgânicos, um e outro----sendo o primeiro a concretização instituicional da Idea [num sentido quasi-hegeliano...] configurada em termos históricos institucionais concretos no [e pel]o segundo daqueles conceitos.
Derivadas ambas as representações teóricas em causa do ideia de Estado-nação encontraram no âmbito particular do fascismo as condições económicas perfeitas para se "instalarem firmemente na História" e constituirem mesmo um dos seus "rostos institucionais e civilizacionais" electivos, durante, como se sabe, várias décadas.
O capitalismo industrial, com efeito, eufórico com o sucesso funcional do paradigma de organização colectiva rigidamente vertical-descencional que aplicara até um limite socialmente quase intolerável nas grandes fábricas, nos grandes "núcleios usineiros" tópicos do século XIX sonhava alargá-lo consistentemente à sociedade no seu todo, fechando, desse modo, sobre a civilização moderna um 'círculo perfeito' que seria o "capitalismo político" ou "capitalismo total" de que o facismo italiano e, muito em particular, o implacável nazismo alemão viriam a constituir um sinistro apogeu, um verdadeiro "paroxismo institucional" e um limite, uma fronteira, históricos e políticos absolutamente radicais e extremos.
Somos muitas vezes [sobretudo agora, numa altura em que a democracia formal ou instrumental desiludiu já a maioria dos portugueses e europeus de hoje] levados a mitificar uma suposta "ordem perfeita" [quando não mesmo uns alegados desinteressado "altruísmo" e "pura generosidade" social] do fascismo e, portanto, a esquecer que esse fascismo foi o capitalismo industrial elevado à potência máxima e que as 'ditaduras tópicas' dos anos '20 e '30 do século XX, abrigando, no domínio político institucional, a ideação moderna do "Estado orgânico", é verdade [uma 'ideação' potencialmente benéfica, em termos de organização social e política, para as sociedades humana em geral---e como tal, i. e. como sociedades humanas, nos vários sentidos possíveis da palavra "humano"] dele se serviram, primariamente, para vinculá-lo ao serviço de um modelo económico preciso e estruturalmente desumano, intrinsecamente des-igual e des-igualizante, em vez de o utilizarem para benefício das sociedades como tal.
Mas o "Estado orgânico", insisto, no essencial estava lá.
Esteve longo tempo na História [foi uma espécie de herdeiro conceptivo ou teórico, mais ou menos directo, da Revolução Francesa] sendo progressivamente teorizado e corrigido por diversos pensadores modernos, presidiu à formação de Estados como a Itália, por exemplo e o fascismo herdou-o, desvirtuando-o, repito, nas suas potencialidades estruturalmente humanistas e democráticas mas, em caso algum, o negando.
Aliás, é exactamente porque ele "estava lá", na História, que pôde ser usado como foi pelo grande capital financeiro [alemão mas não só---essa é outra questão: a da cumplicidade evidente de outros países com o fascismo e o modo como ele parecia capaz de gerir politicamente os interesses do grande capital que, à época, explorava a História à procura de 'pouso institucional' e até civilizacional certo e favorável---recordemos Henry Ford...]; é dizia porque ele, Estado orgânico "andava por ali" que o grande capital financeiro alemão e transncional da época pôde utilizá-lo, dizia, para "agarrar-se firmemente à História" e assegurar-se mesmo, nos países onde o modelo autoritário triunfou, de que "ela não lhe fugiria", pelo menos, facilmente...
Mesmo entre nós [onde o fascismo assumiu naturalmente formas substantivamente menos extremas e graves, com, apesar de tudo, menores implicações e decorrências globais] o Estado orgânico foi "solidamente atrelado ao carro do capitalismo" e, volto a dizer, embora muitos não "reparassem" no facto, foi, sobretudo, a economia que dele beneficiou [e de que maneira!] enquanto durou.
Tudo isto não obsta, porém, a que, quando a ideação cultu[r]al, civilizacional e especificamente política "Estado orgânico" se desintegrou [o que, entre nós, começou demonstravelmente a acontecer quando a História do capitalismo retomou, na "circunstância portuguesa", o seu curso natural fugazmente interrompido, como se sabe, pelo período de gorada 'gestação' revolucionária e/ou 'laboratório social' que vai de Abril de '74 a Novembro do ano seguinte] a sociedade portuguesa não tivesse, objectivamente, beneficiado o que quer que fosse, em última mas real análise, com a mudança.
Porque [é a minha tese, pelo menos] o mal do Estado ou do paradigma global de "estaticidade" genericamente em vigor entre nós de 1926 a 1974 não estava no modelo de Estado como tal, i.e., na "ideação" teórica em si mas, na realidade, nos usos [des] estruturais, económica, social e politicamente perversos, que o capitalismo---a infra-estrutura económico-financeira dos regimes políticos da época---pôde, no concreto, atribuir-lhe.
O que eu digo é, muito claramente, que, concretizado a partir de outra perspectiva social e política; posto em prática por sociedades onde os modelos de organização social e política dependessem muito mais da sociedade como tal do que de umas classe possidente ligada ao grande capital "proprietário" efectivo dos "meios de produção de História"; concretizado por sociedades nas quais uma Esquerda efectiva e activa, genuína, tivesse já implantado generalizadamente a ideia de que a democracia não é um "objecto providencial", a espécie de totem político no fundo completamente inacessível à acção do Homem que alguns se obstinam em ver nela mas, exactamente ao invés, uma construção concreta, progressiva e talvez nunca conmpletamente terminada dos indivíduos e, especificamente, dos indivíduos enquanto cidadãos e que só há possibilidade objectiva, concreta, material, de Democracia na História quando ela começa a existir materialmente concretizada em instituições políticas específicas e concretas; o que eu digo, pois, é que, assim entendido e começado a realizar na História, o Estado orgânico é, não me restam muitas dúvidas, a forma teórica e prática de Estado que melhor pode servir a sociedade humana no seu todo e no seu caminho em direcção à felicidade individual e colectiva possível .
Ou seja, é essencial distinguir 'Estado' e 'uso ou usos políticos e especificamente económicos do Estado'.
Qualquer marxista não só entende a necessidade básica desta distinção como, em caso algum, deixará de fazê-la quando se trata de abordar a História e as múltplias questões que a sua "habitação" pelas pessoas e pelas sociedades necessariamente envolve.
Já muitas vezes o afirmei: é difícil não ver e, sobretudo, não perceber que estamos hoje como comunidade global perante a iminência de nos vermos confrontados com uma dessas "esquinas da História" que ciclicamente a levam a restruturar-se, em muitos casos dramaticamente de forma substantiva e profunda, radical.
Grande parte dessa iminiência de drama advém dos usos dados ao Estado que foi, em meu entender progressivamente des-organicizado por quem não percebeu que, a única possibilidade de sobrevivência do modelo de sociedade supostamente "sem estado" ou com um estado puramente "funcional" que se foi gradualmente instituindo no Ocidente a partir do projecto de implementação histórica global do neo-liberalismo é, paradoxalmente a existência do estado e que o modelo em causa apenas pode existir enquanto o projecto de suprimir o estado não atinja um ponto teórico a partir do qual todo o sistema entra naquilo que, em lógica formal, se designa por uma "falácia de composição".
Porque não é materialmente possível a sobrevivência do "estado sem estado" sem... um estado organizado que recapitalize continuamente o modelo que, no outro extremo, vai sendo natural e consistentemente descapitalizado pelo modo "significado" como integra a técnica e a tecnologia---o Conhecimento, os meios de acesso directo da consciência à realidade e à sua gestão---na História, dando origem, a prazo, à substituição gradual, disfuncional, do papel clássico do capital variável---o proletariado clássico que a pós-modernidade se gaba de ter extinto como classe...---pelo capital constante---a técnica e a tecnologia, o Conhecimento, concretados em 'proletariado mecânico' a partir do qual, porém, é impossível, a partir do tal 'ponto teórico' atrás citado, recuperar as dinamias auto-possibilitantes anteriores do sistema porque se torna impossível reconstituir o mercado sem que o Estado---suprema contradição---pura e simplesmente o substitua, daí em diante negando nuclearmente as premissas do estado sem... estado]
O que eu digo é que o tal ponto teórico se encontra demonstravelmente próximo de nós porque a quantidade de tecnologia convertida ou rapidamente convertível em "proletariado" [ou "neo-proletariado"] "constante" é demasiada para que o capitalismo pós-industrial actual consiga recuperar "espontaneamente" as referidas dinamias auto-possibilitantes sendo que a referida quantidade, associada aos valores agudos de concorrencialidade global, não é de molde a permitir facilmente [sem uma outra forma de "crise" estrutural] o recurso a políticas intensivas de des-industrialização com as que foram [e mesmo assim sem grande sucesso] tentadas no período entre guerras mundiais.
Estamos, portanto, numa fase crítica da História humana em que, por um lado, existe a bondade social e política do Estado orgânico e existem cumulativamente partidos e forças sociais e políticas em geral capazes de perceberem isso e recuoperaram a ideia em condições objectivas e tendencialmente subjectivas muito favoráveis enquanto que, por outro, existe a falência funcional anunciada do Estado in-orgânico [do 'Estado broker' ou 'recoveiro', do 'Estado funcional' ao qual o capitalismo pós-industrial vinha regularmente "encomendando" o programa de sustentabilidade política própria em vias de bloqueio estrutural objectivo].
É altura de essas forças despertarem e partirem para a acção política alargando ao conjunto da sociedade aquilo que elas sabem há muito mas que, pelo facto de as condições objectivas da História não lhe terem sido favoráveis, não pideram fazer ouvir---e, sobretudo, entender.
A ver vamos se estão à altura da tarefa---e/ou quais o estão.
[Na imagem: "A Onda" de Hokusai]
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