sábado, 27 de fevereiro de 2010

"Sobre Alguns Aspectos de Uma Ecologia Desejável da Produção Linguística: Ainda o Acordo Ortográfico"


Ainda o chamado Acordo Ortográfico.
Sobre ele, uma breve reflexão incidindo especificamente sobre dois aspectos que passo a detalhar.

Primeiro, a noção de "consoante transparente" [ou signo verdadeiramente funcional"].

O presente "acordo" assenta, como é pelos seus mentores e propugnadores em geral, expressamente admitido num imperativo [muito limitado, redutor, confuso e linguisticamente exógeno, porém] de ser "funcional".

A perspectiva pela qual é aferida a natureza "funcional" das "reformas" propostas é, todavia [e aqui é que reside o problema] o reflexo de um espírito [um "espírito-de-época"] de des-estruturação consistente, de des-cientifização das formas comuns de saber [e especificamente de "aprendizagem", no âmbito escolar intermédio, um fenómeno de que, como professor, tive, de resto, amplas oportunidades de constatar]; de des-tecnologização global tópica que resulta [é uma velha tese minha que retomo aqui] por sua vez, do fenómeno igualmente tópico nuclear de apropriação do saber e da sua utilização especificamente política no processo de produção histórica privada de capital sobre o qual tenho persistentemente elaborado teoricamente noutros lugares deste "Diário" e não só e cujos efeitos se fazem sentir em toda a sociedade, em geral].

O que eu quero dizer é o seguinte: funcionalizar continuamente a expressão linguística das pessoas e dos povos em geral é, em si mesmo, algo de [obviamente] positivo, de um ponto de vista epistemológico específico, próprio.

Aquilo que os acordiastas ignoram é que, em geral, a língua "se reforma natural e espontaneamente a si própria" sem precisar, em geral, de intervenção exterior normativa demasiado "musculada" e 'excessivamente prévia', digamos assim.

Quando alguém se põe a "mexer" ou mesmo a "brincar" com a língua por imperativos puramente políticos o resultado é inevitavelmente o sofrimento da língua, claro, mas, sobretudo [e, de forma paradoxal, relativamente à intenção original do reformador] o do pensamento que através dela [i] se expressa mas, muito especialmente, o que através [ii] dela é continuamente re/feito.

Há, na realidade, uma ecologia da produção linguística como 'escala técnica' do "círculo producional" global que é a construção contínua de pensamento ou de "inteligência específica da realidade" que, interferida arbitrária e autoritariamente, de forma exógena e disfuncional, do exterior [configurando um "delito ecológico" como outro qualquer] conduz de imediato a "crises" no contexto próprio de todo o processo [que, insisto, não é autónoma e exclusivamente linguístico, linguístico-formal] e, no limite, à desfuncionalização final do mesmo.

Retomo aqui o "caso" das consoantes ou signos funcionais.

Vistas de fora, consoantes como o "p" em certas palavras do português, parecem completamente "inúteis".

E, se, por exemplo, no Brasil, se escreve "receção" lendo-se com o "e" aberto [«recéção»] "recepção" porque existe um impulso articulatório---não sei se natural, em toda a verdadeira acepção da palavra [não é isso que está aqui agora fenomenologicamente em causa, de resto] mas objectivamente presente, em qualquer caso, para a abertura generalizada da massa vocálica---em Portugal, isso não acontece pelo que, no contexto específico do português falado em Portugal, o "p", passou a desempenhar aí a função de abrir ou clarear a vogal que, de outro modo, espontaneamente fecha.

Se nós compararmos os termos portugueses "recepção" e "recessão" percebemos, de imediato, aquilo que eu estou a dizer.

É, por isso, absurdo para não dizer outrra coisa] pretender que o "p" é estruturalmente "inútil" quando nãso se lê.

Insisto: não é inútil porque ler-se não é tudo o que se exige de um signo linguísto.

Também não lemos os acentos e não é por isso que [até agora, pelo menos...] os "deitámos todo fora".

Deitámos há muito o 'trema', o 'umlaut' alemão e o resultado foi que temos hoje, por exemplo, dificuldade em explicar logicamente---com alguma discernível lógica objectual, em todo o caso, pelo menos em certos estádios básicos da aquisição de língua, numa fase em que a aprendizagem dos mecanismos etimológicos determinantes ainda não desempenha qualquer papel verdadeiramente relevante, assentando, de facto, em referenciações de natureza muito mais imediatamente prática e objectual---por que razão «aguentar» "é" «agUentar" e «unguento» "é" «ungUento» mas... «guerra» não é «gUerra», como em italiano...

Pois...

Tal como na ecologia chamemos-lhe 'genuína' ou global, em sentido lato, interferir em excesso e, sobretudo, de forma arbitrária e autoritária, exógena ou exogenamente política, na realidade pode ter consequências imprevistas e, sobretudo, perversamente disfuncionais.

A línguas, insisto, possuem uma "ecologia da evolucionalidade formal" ["ciclos ou círculos eco-estruturais e eco-estruturantes que se geram e idealmente regeneram continuamente a si mesmos] numa dinâmica globalmente própria que não asdmite impunemente interferências e/ou concretas manipulações ["tampering with"]---por muito "politicamernte generosas" que sejam as intenções de quem tenta fazê-lo.

Se eu quisesse aqui "falar linguista" [como os autores de uma famigerada e taxonomicamente delirante tabela ministerial ainda recente] diria que, nos processos de [permitam-me que recorra, ainda neste ponto em concreto, mais uma vez, a uma semântica própria] nos processos de "volução" ou "deslocação formal" linguística se verificam basicamente dois movimentos: um que vem da "semias" para o "sema" ou "semas" e outro que vai, de algum modo, revitalizado, do "sema" ou "semas", de volta para a "semia".

É este duplo movimento, esta tectónica intercomplementar espontânea, orgânica, permanente que permite fazer [e manter!] o vínculo ecológico ideal da "langue" à "parole" e da "parole" à "langue", para utilizar uma semântica saussureana clássica.

Que permite ligar o universal ao particular e este, de novo, ao universal.

Que promove a democratização da produção de língua e pensamento [e pensamento! E 'inteligência da realidade'!] e, ainda uma vez o repito, conservar o equilíbrio ou equilíbrios ecológicos, ecoformais, genericamente funcionantes nos mecanismos de produção de língua ou de "idiomaticidade".

Porque [e esse é o outro aspecto da questão que eu queria aqui voltar a abordar] nós vivemos hoje, essa é que é a realidade, numa suposta "sociedade do conhecimento" ou "gnoseotopia" de raiz tecnológica que alegadamente forneceria um rosto estável e mesmo tópico à História---marcando, de forma indelével e nuclear, determinante, o nosso modo característico de abordá-la e de abordar, em geral, a realidade.

De facto, assim não é: a "gnoseotopia" é uma ficção civilizacional [e especificamente política] que outro conteúdo não possui para além da sua natureza [im] puramente estatística e simplesmente formal, isto é, não é por haver muita tecnologia e muito saber "em suspensão" numa sociedade que esta possui um e outro, democraticamente distribuidos pelo conjunto dos indivíduos e das classes que a compõem, tal como sucede, aliás, com qualquer outro bem a começar pelo próprio capital...]

De facto, nas sociedades de capitalismo tecnológico [é "disso" que estamos realmente a falar] não foi apenas o saber, o conhecimento, que foi "enclosed" para ser continuamente reinvestido no processo de produção histórica e social de capital: foram, a montante e a jusante, o essencial dos meios subjectivos, a ciência abstracta, de gerar naturalmente inteligência da realidade.

Não apenas o conteúdo do saber mas, de igual modo [e até sobretudo!] a sua forma, a sua técnica em abstracto.

O saber pressupõe, com efeito, também ele, um 'universo ecológico' próprio, uma ecologia da respectiva produção que é exterior ou recorre a componentes exteriores [as escolas, etc.] mas, de igual modo interior [um específico abstracto ligado ao desenvolvimento próprio da inteligência, da criação de estruturas causais prévias na consciência a partir das quais se organiza todo o olhar cognitivo ou cognicional que vai ser lançado para o exterior, etc.]

Ora, esse património é naturalmente é implícita e reconhecivelmente] privatizado com o resto do saber e é, por seu turno, esse processo que permite que, no conjunto das sociedades de capitalismo tecnológico, persistam, de forma tópica, formas de representação, chamemos-lhe "teórica" da realidade que, de facto e em si, em muito pouco diferem da superstição e/ou dos paradigmas 'primitivos' de cognicionalidade por desrepresentação totémica, ligadas a modelos de causalização puramente "sintomáticos" ou "epifenoménicos" cognicionalmente inertes e atípicos.

No limite, existe, hoje, nas sociedades em que o saber foi efectivamente privatizado e se encontra no essencial já "enclosed", formas espuriamente "políticas" de preencher o 'vazio gnoseomórfico' assim criado: a emergência de formas de sacralização, formalmente causal ainda, dos meros fenómenos, dos "sintomas" do real [porque os mecanismos de sequenciação abstracta da realidade exterior são de ordem instintiva, biológica e filogénica e não dependem, em meu entender, do respectivo conteúdo sendo-lhe de facto sempre---e muito---anteriores].

Existe uma "ciencialidade" sincrética, amorfa, difusa, multifenoménica que substituíu já a propriedade da ciência e dos meios de acesso directo à realidade que foi, como digo [mas nunca será demais repetir se queremos realmente saber como a realidade histórica e política se forma---e se explica---no in/essencial hoje] privatizada e convertida numa propriedade [dos grandes conglomerados multinacionais] onde é usada como matéria-prima na produção de capital.

Fora dessa classe sacerdotal gnoseomórfica, o saber que circula é o tal saber totémico que sequencializa objectualmente sintomas e epifenómenos.

É aí que se formam as nossas representações dismórficas e disfuncionais do real; é aí que os aprendizes de feiticeiro da linguística se movimentam e actuam sempre impermeáveis è Ecologia e à percepção da verdadeira consistência ecológica global do real.

Hoje é uma função da linguagem que se atira copm toda a despreocupação para o lixo, amanhã um curso de água que não menos alegre e não menos despreocupadamente se bloqueia para construir uma estrada ou um bairro inteiro e assim, de "conquista" em "conquista", de "estádio" ou "representação" de "desenvolvimento" em "estádio" e "representação" de "desenvolvimento" vamos alegremente caminhando para... para aquilo que todos nós, no fundo, sabemos perfeitamente que não vamos conseguir como espécie, mais cedo ou mais tarde, evitar.


[Imagem ligeiramente amputada extraída com a devida vénia de]

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