quarta-feira, 16 de setembro de 2009

"Talvez, afinal... (breves reflexões pessoais sobre Democracia a partir de uma notícia do "Monde")"


O "Monde" de 12.09.09 publica uma notícia com origem no martirizado Iraque envolvendo (e como podia ser de outro modo?...) o petróleo e, desta vez, para variar, não os E.U.A. nem a Grã-Bretanha, a Rússia e/ou a França mas a "emergente" China.

China que lançada, como se sabe, numa verdadeira corrida pelo crescimento económico global "chegou", pelos vistos, agora (concretamente no ano passado, diz o jornal) ao Médio Oriente pronta para competir também aí com as outras geopotências que já lá "estavam" pelo alimento electivo do modelo de "crescimento" global em vigor que é obviamente o petróleo.

Através de uma China National Petroleum Company, diz o "Monde" (cf. "Le Monde", Timothy Williams, "Deal With China Stirs Anger in Iraqi Oil Fields") a República Popular chinesa instalou-se, com efeito, na província de Wasit onde sempre segundo o jornal a sua visão alegadamente demasiado unilateral do respectivo modo de exploração "provocou uma onda de descontentamento".

De acordo com a notícia, Mahmoud Abdul Ridha, o chefe do Conselho Provincial de Wasit o problema é que esse modelo faz com que (e passo a citar) "não recebamos nada directamente da companhia chinesa. Há uma crise de emprego. Precisamos de estradas, escolas, estações de tratamento de águas.

Precisamos de tudo!"

Na sequência destas queixas, refere ainda o "Monde", começaram a ter lugar acções de retaliação ("sabotagem e acções de intimidação dos funcionários respectivos") contra a empresa chinesa.

Enquanto lia isto, algmas reflexões me iam acudindo irresistivelmente ao espírito.

A primeira delas diz naturalmente respeito a um fenómeno económico e social que ocorreu em Inglaterra, nos séculos XVIII e, muito em particular no XIX, quando teve início o processo de reconversão económica profunda que ficaria conhecido na História como a Revolução Industrial: o "machine breaking".

O "machine breaking" é a expressão social imediata do modo como a Revolução técnica e, sobretudo, económica teve lugar: segundo padrões de distribuição drasticamente desigual dos custos económicos, sociais e políticos da própria Revolução.

Começa aí, aliás, a meu ver, a 'Modernidade' tal como a conhecemos hoje através, sobretudo, da respectiva mutação histórica, económica, social, política e genericamente 'civilizacional' em pós-modernidade.

Inicia-se aí, com efeito, um modelo cada vez mais tópico e específico de agregação estrutural do Conhecimento à Economia que vai fazer com que a prazo e como tantas vezes tenho repetido o próprio Conhecimento se tenha tornado, primeiro, num produto, numa matéria-prima essencial no contexto do processo de produção social de capital e, em seguida, de certa forma, ele mesmo, no próprio capital.

Consequência inevitável deste processo de agregação ou indexação estrutural do conhecimento à produção social de capital foi a implementação de um modelo estrutural e necessariamente desigual de Modernidade que fez no plano abstracto do Conhecimento o que antes tinha feito no âmbito particular da propriedade material: um modelo de "knowlegde enclosure-ing" caracterizado por se basear, de forma necessária, em paradigmas de produção global que pressupõem a produção prévia estratégica e nuclear não só de "des-propriedade estratégica" como, mais do que isso e antes disso, de agnosia ou "ignorância significada" como componente social essencial do processo posterior de produção de riqueza final.

Ou seja: para que o modelo de "desenvolvimento" baseado na transformação industrial do saber-propriedade em produtos comece a gerar alguma forma social ou "socializável") de riqueza (na forma de salários, desde logo), ele tem necessariamente de, primeiro, produzir quantidades "estratégicas" proporcionais (e "proporcionantes") de escassez: escassez quer de riqueza privada (se, com efeito, toda a gente tiver meios próprios de subsistência, não precisa de sujeitar-se a trabalhar para outrem e durante os primeiros estádios do capitalismo industrial a mão-de-obra desempenha, de facto, um papel literalmente essencial e, por isso, insusceptível de ser dispensado---pelo que o processo de "enclosing" das terras agrícolas e da consequente pauperização global da sociedade inglesa foi vital para a implementação do modo de produção industrial); quer dos próprios bens sobre cuja produção e venda assenta toda a mecânica particular e específica do capitalisno industrial e pós-industrial (e, por isso, aquele, à medida que crescia a sua dependência estratégica da integração de Conhecimento, reforçou ulteriormente o processo de "abstractivização propiciadora" ou "enclosing" da propriedade privada conforme teve lugar segundo o modelo original das "enclosures", através da criação de um Direito próprio que "vedava" ou "enclosed" agora a própria criação intelectual vista como disse, já sem disfarces como propriedade e como capital).

Mas não só: isto é, não foi apenas necessário ao capitalismo industrial para que o modelo por ele configurado pudesse triunfar integrar, assim, nuclearmente na mecânica intrínseca do próprio processo produtivo como tal, a produção prévia, a produção propiciante "estratégica", de escassez material: exactamente porque ele se viu forçado, a dado passo, para poder competir com sucesso consigo próprio de transformar ou "mutar" o Conhecimento em capital teve, de igual modo, de gerar ou produzir previamente e em idêntica condição de pressuposto (in) essencial aquela "agnosia significada" a que atrás faço também referência.

O que significa, em síntese, que a produção de des-igualdade é um pressuposto verdadeiramente estratégico e, além disso, múltiplo do próprio modelo de "desenvolvimento" escolhido historicamente pelo "Ocidente" para protagonizar, digamos assim, pelo seu lado, a própria Modernidade.

Ora, aquilo que, no fundo, está a acontecer no Iraque com a ocupação económica estrangeira (e não apenas, como é evidente, chinesa) é, afinal, a prova de que há certas coisas básicas, (em mais de um sentido:) primárias e, a seu modo "essenciais", que não podem pura e simplesmente mudar enquanto não mudar o próprio modo de produção capitalista como tal, quer estejamos a falar do capitalismo assumida (politicamente) privado "ocidental", quer da variante "de Estado" ("state-centered") protagonizada pelo modelo chinês.

O que é interessante no artigo do "Monde" é que, à semelhança daquilo que aconteceu (fugazmente, embora) em Portugal, em Abril de 1974, ou seja, o aparecimento de um modelo original de socialismo (ou, mais genericamente, de... "socialicidade") que (ironicamente) ios chamados "socialistas" deram um contributo relevante para que não triunfasse, também a estrutural desigualdade indissociável, como atrás vimos, do próprio modo de produção capitalista parece ter acordado nas populações locais um descontentamento que começa, aparentemente, a organizar-se.

E a organizar-se como?

Diz o "Monde" que um movimento de defesa dos direitos sociais iraquianos começou já a exigir que, "pelo menos, um dólar" por cada barril exportado fique obrigatoriamente no Iraque a fim de seja ulteriormente reinvestido a nível local "no tratamento de águas, nos serviços de saúde, na criação e manutenção da rede escolar, na pavimentação de estradas e em várias outras necessidasdes da província".

Isto, note-se contra a vontade do próprio governo iraquiano que "tem rejeitado até ao momento as exigências das populações locais [que, todavia] começam a sentir que alguma coisa nova é possível" [sublinhado meu].

Já, aliás, uma coisa nova (e social, políticamente auspiciosa, organizacionalmente óptima) esta de a percepção da própria possibilidade material de mudar a História e mais: de mudá-la num sentido preciso, definido pela base da própria comunidade---i.e. pela comunidade enquanto tal e como tal---se ter formado de forma autónoma relativamente ao poder instituído.

É que este modo de a consciência das coisas (a inteligência da realidade) se formar é o modo típico e ideal da verdadeira democraticidade: a que sobe espontânea e, a seu modo, autonomamente da base até gerar, determinar e instituir formas adequadas, necessárias, de poder formal e não a que (como sucede topicamente no que chamo 'paradigma demomórfico' ou "demomorfia instrumental" ocidental) a que 'desce' do vértice para a base, impondo aquele continuamente a esta a visão (e o interesse ou interesses) situados no topo.

Concluo dizendo: se, afinal (é impossível não constatá-lo hoje!) Portugal "perdeu o 25 de Abril" para um "24 reformado" porque não foi capaz de resistir à pressão para que não levasse por diante a consolidação da sua própria 'via original para o Socialismo' (com maiúscula) como, então, se dizia---e isso re/criou, de um modo geral, na sociedade portuguesa a impressão sufocante e desencorajadora de que talvez, afinal, fosse esta, a que "pê-ésses" e "pê-pê-dês" lhe conseguiram por fim impor, a "forma natural da História" como não se cansaram de lhe repetir eses mesmos que lha impuseram; talvez, afinal, dizia, se olhando para "ocidente", o resultado foi esse que à maioria de nós fez, como disse, "perder momentaneamente a História" para "os outros"; talvez, afinal, olhando, desta feita, para o lado oposto, possamos, bem vistas as coisas, recuperá-la.

Talvez possamos, no mínimo, rever essa impressão, para muitos sólida senão mesmo inelutável, de que a perda em causa foi definitiva...



[Imagem extraída com vénia de lefteyeonthemedia.com]

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