quinta-feira, 17 de setembro de 2009

"A Mão Entre o Crepitar"


Vou talvez a muitos surpreender quando revelar a identidade do autor deste poema.

Autor em vida sempre (como dizer?) "benevolentemente injustiçado" a cujo nome (e a cuja memória, depois) se colaria---ao que tudo indica, definitivamente---a etiqueta de "cantor de intervenção" e mero "letrista", continuou até hoje a sê-lo (injustiçado, quero eu dizer) na morte, na morte física---circunstância durante a qual a etiqueta se tem ainda e sempre recusado obstinadamente, como disse, a cair.
E no entanto...

... E, no entanto, José Afonso, o "Zeca"---é dele que falo---foi também um originalíssimo Poeta (Poeta-poeta, quero eu dizer) que falta (e urge) re/descobrir.

Se há coisa que a mim, pessoalmente me fascine na Obra do Zeca (que já tive, aliás, oportunidade de explorar criticamente noutro lugar) é essa espantosa propensão ou vocação inata para a "surrealidade" e para o fantástico (uma característica, aliás, como é sabido, comparativamente muito rara, na literatura portuguesa) que marca praticamente toda a sua Obra, incluindo, aliás, muitas das suas mais conhecidas... letras, onde o impulso para afrontar, questionar e mesmo integralmente desconstruir o mundo logo a partir da sua 'imagem ou reflexo verbal' (e até conceptual) mais de epiderme, mais convencional e comum é, muitas vezes, nos seus melhores momentos de criatividade (de que me permito referir, de modo particular, um, para mim, absolutamente definitivo "O Cavaleiro e o Anjo") poeticamente arrebatador e, de um modo mais lato, mais amplo, (sempre) "textualmente empolgante".

Dividido entre um projecto de intervenção imediata (que lhe era, aliás, insistentemente exigido e que a dado passo, o fez refém voluntário de si) e a "vocação" poética "pura", José Afonso, consegue, nos seus mais bem sucedidos textos, momentos de resplandecente síntese onde ressurge, "lavado mas nunca, em caso algum, traído", todo um património ou acervo, em larga medida, identitário português de surrealismo popular através de cuja cuidada "recuperação", José Afonso faz na Poesia, na Textualidade Verbal que é a sua matéria-prima e a sua "oficina", o que Godard ou Straub e, noutro sentido (e de outro modo) Brecht, todos eles, às suas distintas maneiras, conhecidos (e talentosos) revolucionários, fizeram respectivamente no Cinema, os dois primeiros e no Teatro, o terceiro: "abrir de alto abaixo o respectivo medium" diante dos nossos olhares "assim triunfalmente desinquietados e não-raro, extasiados", obrigando-o a falar---exuberantemente---das coisas em redor, através do expediente estratégico de começar logo por levá-lo a "falar", "in the first place", abundantemente de si.

O registo textual de José Afonso é, com efeito, sempre inquietantemente descentral e estimulantemente inesperado e imprevísivel, sempre saltitando, incansável e falsamente volúvel, ilusoriamente descuidado, às vezes, quase febril, entre o texto e o meta-texto, entre a ideia e o 'fantasma crítico' da ideia, entre o conceito e a impressão, sempre "olhando com as palavras", as sonoridades (as sonoridades!) e as respectivas possíveis sugestões (como num quadro de Cézane, Picasso, Amadeo ou Braque) o mundo de vários ângulos ao mesmo tempo.
Poeta profundamente culto soube sempre fazer da aparente 'inocência' ou mesmo aberta 'adolescência textual' uma forma agudíssima de esclarecimento e percepção e da própria limpidez geral com que concebe topicamente o texto uma verdadeira 'ciência' e até (quase invariavelmente, aliás) acima de tudo, uma ética.

A mão entre o crepitar
De prata em forma de cunha
Fez o formato da cara
Mas não são bolas de pão
São pedacinhos de queijo
Que as ratas buscam e cheiram
Na minha imaginação
Não lhes peçam mais casulos
Com esse olhar de cereja
Sejamos bichos avaros
Deitemos fora o cotão
Dos pedacinhos de queijo
Nascem bolas de sabão.


[Na imagem: José Afonso por Vasco]

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