sexta-feira, 4 de setembro de 2009

"Uniões de... fato?"


Não percebo, francamente (nunca percebi!) por que carga d' água há-de a vida pessoal de cada um (aspectos dela, em tese, relevantes, no sentido de serem portadores de algum significado mais ou menos estável e estr(e)itamente) pessoal, íntimo, sem a mínima expressão exterior, designadamente social) devem, para que consideremos que aquilo a que comummente chamamos 'democracia' se cumpra, ter de ser... "sufragados" ou "plebiscitados" em público, como se património colectivo (de colectiva tutela!) se tratasse.

Porque é disso que, no caso da maioria das propostas 'democráticas' de alteração da lei que rege o casamento, de facto (e pretende-se agora que também de direito) se trata: de sufragar ou de plebiscitar, apoderando-se, de forma implícita e absolutamente ilegítima, abusivamente disso, aquilo que cada um faz (perdoe-se-me a crueza da formulação) aquilo que cada um faz na respectiva cama.

Ou fora dela.

Porque, na realidade, a questão é esta: para o modelo de instituicionalidade tradicional de (fortíssima!) inspiração católica vigente no âmbito específico da definição do conceito de 'casamento' e de 'família' apenas duas pessoas de sexos opostos podem ("may" but not "can"...) ao mesmo tempo, "legal e legitimamente", constituir uma.

Mais: dizem a uma só voz a lei e a 'moral' que devem consitui-la uma a fim de se reproduzirem.

A questão é: esse é um modelo de familiaricidade, digamos assim.

Será, porém, o único possível?

Com que fundamento objectivo, material, consistente, definitivo, deve sê-lo, porém?

É inquestionável que, durante séculos, o foi.

Todavia: por que exacta e, sobretudo, fundamentada e fundamental razão, insisto, deverá seguir sendo-o---esse é que é, a meu ver, o cerne da questão.

A família não é, exactamente, nem objecto de Revelação nem mandamento.

A igreja católica (como dizer?) "cobriu-a cultu(r)almente" com um destes últimos, é verdade.

Ele, porém, em si mesmo ,não o é.

O casamento tal como o conhecemos hoje é apenas um modo (ou, tendo em conta a imensa diversidade cultural e cultual do mundo em termos globais, um de inúmeros modos pontuais) de realizar socialmente algo que, na origem, se prendeu com um quadro de bio-funcionalidade muito demonstravelmente preciso (defesa material da vida nas suas múltiplas formas objectivas e até---porque não?---também subjectivas) de que existem, hoje ainda, como é evidente, consequências e decorrências, não apenas institucionais (esse é o aspecto, digamos, móvel; o aspecto puramente formal e variável do problema) mas efectivas e efectivamente actuantes na sociedade (desde logo, protecção natural do desenvolvimento específico dos filhos, como é evidente---mas não só).

Embora tenham obviamente mudado os fundamentos objectivos e subjectivos do "casamento", eles continuaram demonstravelmente a existir.

Com formas distintas mas continuaram a existir.

Por exemplo: falando especificamente dos aspectos subjectivos (uma vez que a pressão dos objectivos se atenuou com a sedentarização e a consolidação de paradigmas completamente estabilizados de socialização) a pressão e o peso destes tornou-se proporcionalmente mais forte.

As pessoas podem casar "para terem filhos" (se bem que me pareça constituir esse, hoje-por-hoje, um fundamento demasiado primário, mecanicista e excessivamente... biológico, digamos assim) ou podem fazê-lo porque existem laços de empatia e identificação entre elas que são fundamento bastante para estimulá-las a fazê-lo e que elas não querem nem dissolver nem deixar que se percam não achando expressão legal, institucional, estabilizadora e, a vários títulos, consolidadora.

Por que exacta ou, pelo contrário, inexacta e insubstantiva razão não pode ser a empatia estável responsável e livremente aceite um fundamento suficiente para as pessoas "casarem" e constituirem uma "família", é coisa que eu, repito, pessoalmente e com toda a franqueza não consigo perceber.

Exactamente porque "casar" deve ser, acima de tudo e antes de mais, um acto de cultura e não qualquer outra coisa como, por exemplo, uma mera maneira institucional de trazer, secundária e instrumentalmente, para as "culturas" (como para a própria Cultura!) aspectos consideráveis embora, da nossa realidade biológica mais nuclear e básica; por isso, dizia, persistir entendendo ainda hoje que tudo aquilo que não seja dócil culturalicização directa, automática, dócil e mecânica, estr(e)itamente funcional da nossa componente biológica é, por sua vez, insubstantivo e imaterial nesta perspectiva da fundação ou constituição de um núcleo (se não quiserem chamar-lhe 'fammiliar', chamemos-lhe, para começar e para distinguir---mas não discriminar...---'familial', por exemplo; persistir... "entendendo", pois, hoje-por-hoje, isso parece-me constituir, na realidade, uma modo de permitir que permaneçam, por sua vez, ulterior e, sobretudo, absurdamente, por inteiro, desencontradas a nossa Cultura e as nossas culturas assim como a própria arquitectura social e civilizacional que seria suposto conferir-lhe expressão operativa concreta, material e, muito em particular, adequada.

Por outras palavras: é admissível que configure um modo objectualmente disfuncional de impedir que se desenvolvam; que, como gosto de dizer, impedir que "voluam" e objectualmente se renovem, de forma natural, as nossas formas modernas de expressão social e cultu(r)al, em nome de fundamentos objectivos ou objectuantes que o próprio (lá está!) o próprio... "voluir" natural da realidade terá, em tese, tornado já, na essência, objectiva mas, sobretudo, subjectivamente obsoletos.

Mas, se admitirmos que duas pessoas, de sexos... opostos (estranhíssimo vocábulo este, se usado neste particular contexto mas enfim!...) possam unir as respectivas existências porque lhes... apetece; porque (dito de um modo menos especulativo e menos... provocatório) entendem que partilham gostos, pontos de vista, etc. em quantidade e em qualidade suficientes para desejarem permanecer juntas a maior parte do tempo das respectivas vidas (e mesmo para além delas na forma de coisas muito concretas como heranças, legados, doações e por aí fora) independentemente de quanto se propõem fazer no respectivo leito ou leitos; se admitirmos isto (e eu admito-o sem quaisquer reservas! Quem sou eu para não admiti-lo!) que direito tenho eu de ir questionar se as duas pessoas em causa levam aquela vontade de partilha a qualquer forma específica, concreta e material de "sexualização"??!!

Dito de outro modo: por que há-de o sexo ser a 'fronteira' definitiva entre o aceitável e o reprovável---um e outro 'devidamente' institucionalizados, quanto mais não seja, no caso deste último, por absurdo?

Vou eu perguntar (tenho eu o direito legal, reconhecível e pretende-se agora que também reconhecido de perguntar) se os membros de um casal dito "normal"... vão, de facto, "para a cama"?
Ou com que regularidade o fazem?
E já me perguntei eu a mim próprio qual a regularidade bastante para "legitimar" ou "normalizar" um casamento?...

Ou seja: na prática, sou eu ainda hoje quem exige que para se viver junto; para se ser uma "família" se copule (ou, pelo menos, que se pareça copular) uma vez que sou eu quem determina também (ao que se pretende através da figura do referendo ou da plebiscitação objectiva) que o sexo seja uma condição e um pressuposto incontornáveis (eu diria: essenciantes) da família.

Um dever.

Sou, pois, eu (é a moral vigente ainda hoje infiltrada no aparelho jurídico formal e a montante dele no inconsciente colectivo de muitos de nós) quem impõe às pessoas, como um dever que... copulem para poderem casar.

Sou eu (é a moral---ainda---vigente) que subalterniza os aspectos subjectivos, os aspectos culturais de sociabilização específica, particular, estrita---mas não estreitamente privada--- impondo-lhes outros de natureza in/essencialmente primária e (aí sim!) estr(e)itamente biológica.

Porque se assim não fosse, não subsistiriam razões (ou verdadeiros fundamentos) fossem umas e outros de que natureza fossem, para que duas pessoas do mesmo sexo pudessem livremente "casar-se" se o desejassem, isto é, se se verificassem que estavam reunidas as condições de empatia interpessoal livre (incluindo, obviamente, as de índole sexual!) que eu, pessoalmente, considero válidas bastante para substanciar e justificar o direito a um "casamento".
Ao casamento.

Porque eu não vou perguntar nem aos casais de sexos... opostos (continuemos a desigar desse modo os sexos à falta de termo menos opinativo, menos preconceituoso---"pré-conceituoso"---e menos "significado"...) se "vão para a cama" um com o outro---assim como não pergunto (e muito menos, exijo!) aos outros que (e se) não vão: esse é um aspecto particular e, sobretudo, íntimo (passe a redundância) do seu foro individual; uma componente ou (Eventual? Real?) não componente do seu universo relacional próprio sobre a qual eu não possuo, como é evidente, no plano da legitimidade qualquer, mesmo suposta e apenas hipotetica, remota tutela e eles completa e integral liberdade.

Eu sempe achei, ao contrário da maioria das pessoas, que, por exemplo, a pornografia não tem, de forma implicíta e necessária, que ver com "sexo" e "sexualidade".

Nunca achei que entre 'erotismo' e 'pornografia' a diferença se prendesse, especificamente no caso do Cinema ou da Imprensa, com supostos e muito moralistas "nus frontais" ou "penetrações expressamente exibidas".

Acho, sim, que a diferença está no modo como no Erotismo a sexualidade coincide rigorosa e idealmente com o exercício responsável e verdadeiramente livre---com a propriedade consciente---do próprio corpo e como a pornografia está, ao invés, configurada em modelos de comportamentalidade (deixem-me que seja completamente explícito: sexual ou não) caracterizados pela apropriação objectiva de uma sexualidade (e, por via de regra, de um sexo, também) por outro (que, por acaso, até é o meu...).

O que é pornográfico não é o corpo nem as suas formulações e/ou atributos exercendo-se de forma livre e consentida: o que é pornográfico (a fronteira passa, para mim, claramente por aí!) é que uma sexualidade e, repito, por via de regra, um dos sexos tenha de se submeter ao outro---e, adicionalmente, que alguém extraia daí estímulo ou mesmo prazer tout court.

Ora, assim sendo, pode de facto haver uma extrapolação subtil deste princípio para a própria moral tradicional---e desta para a Lei---na medida em que uma e outra contêem modos subtis mas extremamente sensíveis (e, de um modo ou de outro, sentidos!) de condicionar (senão mesmo de "educadamente" colonizar---não as deixando exprimir-se livremente por acção ou in-acção) as múltiplas sexualidades ou sexualicidades que compõem a sociedade, de uma maneira geral.

Isto é: impor às pessoas modelos precisos, pré-definidos e não suficientemente fundamentados (real e credivelmente fundamentados!) de sexualicidade; modelos esses cujo peso ou cujo centro de gravidade, chamemos-lhe: teórico se acha todo situado para além da vontade individual; e impor, por outro lado, modelos ou paradigmas dessa mesma sexualicidade como pressuposto incontornável e/ou angular, verticial, de felicidade pode ser (a meu ver, é mesmo!) uma forma indevidamente cultu(r)alizada e (mais grave, ainda!) institucionalizada de violentar não apenas a sexualidade mas o próprio direito de cada um (deixem-me que diga deste modo:) ao exercício tão autónomo ou tão livre quanto possível, do seu corpo e da sua vida, em termos amplos.

Eu confesso que valorizo de forma particular uma certa contenção e uma certa discrição verbais que me levam a evitar expressões que poderiam, noutras circunstâncias, revelar-se de uso fácil e até quase instintivo do tipo "pornografia institucional" como modo de descrever e/ou definir (voltando agora especificamente ao início destas notas) a maneira como se pretende referendar a estrita intimidade de cada um assim como, para além até disso, o direito humano básico à, como a designei, "liberdade livre" de exercício do próprio corpo, naqueles aspectos dele e do seu modo de existir que não influenciam nem interferem com a felicidade e a própria liberdade dos outros, em geral.

Uma das coisas que me lembro de ter aprendido num inestimável livro de Kenneth Walker ("Sex and Society") que li há muitos anos numa tradução portuguesa da Europa-América e que recomendo ainda hoje vivamente foi a expressão (e, sobretudo, o conceito absolutamente 'luminoso' e fundamental---e, simultaneamente fundamentante e/ou fundamentador que lhe subjaz e que devia servir de referência básica quer para a discussão pública, verdadeiramente essencial, em torno destas questões do casamento e da família quer para o futuro legislador que nelas deva trabalhar) de "consenting adults".

Poucos conceitos, com efeito, me parecem, a um tempo, tão eloquentes---tão simples e tão cabalmente categóricos, definitivos---e animados de um espírito tão 'esclarecida' ou tão 'educada e civilizadamente', tão humanisticamente libertador como esse.

O "adult consent" deveria, com efeito, ser sempre, em todos os casos, para as pessoas como para as leis dos Estados (para já não falar nas Morais ou Éticas específicas de cada cultura) o grande elemento fundamentador das práticas humanas e/ou sociais, políticas e até civilizacionais.

Vivemos hoje num mundo que se pretende livre mas que não admite, ainda hoje (e de forma, a todos os títulos, dificícil ou mesmo impossivelmente explicável---e, muito em particular, tolerável) a forma mais essencial e mais básica, mais nuclear, de liberdade que é, volto ainda uma vez a dizer, a do exercício (ou da propriedade) fundamental do próprio ser.

Do "self" estranhamente forçado, ainda hoje, a demonstrar objectivamente, material e concretament, em claríssimo sacrifício de direitos intrínsecos seus dificilmente ignoráveis, conceitos (pré-juízos) e a realizar nessa mesma perspectiva de in/fundamental e in/fundamentado sacrifício (e não se pense que uso aqui a palavra de modo gratuito---longe disso!) princípios abstractos de "moral" sobre cuja acção concreta, porém, não nos é a cada um reconhecido o direito a, efectivamente... interferir.

E isto ("ao que se diz"...) em... democracia e em sociedades onde a laicização do Estado é, em teoria, um dado (perfeitamente) adquirido!!
[Imagem ilustrativa extraída com a devida vénia de es-homemcristo.edu.pt]

3 comentários:

Rui Magalhães disse...

Muito boa reflexão.
Ora aí uma visão distante, objectiva e coerente dum tema em que a sociedade parece querer encarar dum modo superficial e homofóbico.

Carlos Machado Acabado disse...

Pois, Amigo...
O problema é que há uns quantos que reflectem e outros (muitos mais) que... deflectem...

Mas a gente vai sempre tentando, não é?...

Pode ser que, um dia...

Rui Magalhães disse...

Pois...Mas a sociedade não é estática e parece cada vez mais querer pensar por si própria e não estar dependentes duns quantos "opinion maker" do sistema estabelecido.