sexta-feira, 11 de setembro de 2009

´"Algumas reflexões pessoais sobre aspectos específicos da questão educativa" [T.i.P., text in Progress, título provisório]

Acabei o dia de ontem a falar de Educação, começo o de hoje falando dela...
É a tal doença, o tal... "quisto didáctico" que, decididamente, não me larga!...

Bom, seja como for, volto, pois, dizia, hoje, ao tema "Educação" e tal como ontem é através do exemplo do Desporto que vou aqui retomar o tema.

Publica o "Diário de Notícias" de hoje, com efeito, uma entrevista com Tomaz Morais, treinador de râguebi (actividade desportiva que, confesso, não aprecio, aliás, especialmente assim como diversos aspectos da sua "cultura" específica, em tempos sublinhados pela Prof. Jenny Candeias numa interessantíssima reflexão publicada n' "A Bola") entrevista essa de onde sou, ainda assim, capaz de retirar (e, por isso, a refiro aqui!) lições que, bem compreendidas, bem assimilidadas e cuidadosamente recontextualizadas, nos permitem encontrar pistas importantes de desejável revalorização e enriquecimento da profissão e da actividade docentes.

Aquilo que de lá extraio é, desde logo (e sobretudo!) uma perspectiva.

Deixem-me que recorra aqui a um 'palavrão' que me é, de resto, caro (que, por imperativos de rigor conceptual e terminológico, ocorre, de facto, com alguma frequência, no meu léxico crítico pessoal), dizendo: "aquilo que da entrevista de Tomaz Morais se pode extrair é uma perspectiva "de episteme" (cá está o tal 'palavrão'!) da teoria e da prática docentes.

Um dos problemas de que padece, efectivamente, a profissão entre nós, hoje, é o esvaziamento e mesmo a perda de uma espécie de "inteligência particular específica da realidade"---"uma inteligência docente" ligada, por seu turno a uma muito "criticamente kantiana" "razão pedagógica" geral---que deveriam, uma e outra, em meu entender, ser típicas (e tópicas) da própria profissão como tal.

Não se trata de "enquistamento epistemológico", de modo algum.

Ou de "corporativização" (de "achatamento corporativizador", como gostam de aduzir e "argumentar" os "enviados da tutela") igualmente tópicos quer da Teórica, quer da Prática docentes.

É, como digo, de uma perspectiva "de episteme", num sentido, inteleccional e socialmente muito nobre e digno, que se trata.

Durante décadas, com efeito, enquanto a Educação (e a Cultura) funcionaram, entre nós, basicamente como um "valor"em si (um valor único, no limite, indissociável) associado a paradigmas civilizacionais---teórica ou filosoficamente humanistas---ainda demonstravelmente ligados às concepções greco-latinas clássicas em geral; enquanto, dito de outro modo, a Educação não se convertera ainda num "produto" e num "bem" cujo "valor" lhe advém (eu não quereria dizer "secundária" nem "exclusiva" mas com certeza) funcionalmente da sua aptidão primária para se integrar, de modo directo, no processo de re/produção social de capital (o que não é, em si mesmo, mau, como é íbvio, desde que não se torne móbil e pressuposto único de "educatividade"); durante décadas, dizia, vigorou, entre nós, um modelo de partilha social de Conhecimento (e de conhecimentos, o que não é precisamente a mesma coisa) ao qual se associava, de forma mais ou menos, indelével e praticamente demonstrável, a "personalidade" das entidades que protagonizavam todo o processo educativo: os liceus, os colégios, as esclolas técnicas.

O modo como o 'Gil Vicente', por exemplo, entendia e re/produzia socialmente "educatividade" era substantivamente distinto, no 'espírito', do modo como o faziam o Camões ou o Pedro Nunes---juntamente com o Passos Manuel, durante muitas décadas, as grandes referências do ensino liceal público masculino, em Lisboa.

O 'Gil' era claramente um liceu mais liberal e popular do que o 'Camões' (cujo entorno sociológico e até cultu(r)al era distinto e ambos se distinguiam, por sua vez do 'Passos', um liceu da Estrela, muito mais de elite.

Claro que os objectivos globais da Educação da ditadura eram os mesmos---e os modelos institucionais seguiam quase rigorosamente a divisão das classes sociais: escolas técnicas para os filhos (comparativamente mais 'privilegiados' do proletariado sobretudo urbano, os liceus para os das diversas 'burguesias') sendo que, no (in) essencial, o papel social e politico destas instituições era, de algum modo, ao menos objectivo, fazer com que a paisagem social, económica e até sociológica se mantivesse, com escassas modificações, estável.

Falando especificamente dos liceus, sendo Portugal um país sobretudo rural e, nas cidades, muito mais pós-rural ou pré-urbano do que propriamente urbano; sendo a industrialização o que (não) foi durante décadas (na realidade, durante séculos!) entre nós, os usosd práticos da Educação eram, eles mesms, limitadíssimos pelo que foi possível que, nos liceus sobretudo, vigorasse um modelo de "educatividade" cujos fins em larga medida se encontravam alcançados e, por conseguinte, esgotados na própria aquisição de Conhecimento.

Possui-lo (o possuir a prova simbólica de que se era dele detentor---e também aqui estamos a falar de coisas em si mesmas distintas...) correspondia à possibilidade objectiva de quem se achasse nesssas condiçõeas se reclamar detentor de um "valor".

Era para se alcançar esse estatuto, de algum modo, final que a identidade da instituição era relevante.

Os antigos alunos formavam uma espécie de comunidade virtual, é certo mas sensível---como sucede por exemplo na Grã-Bretanha, com as escolas e universidades: a aquisição de um estatuto não se distinguiia em certa (mas impirtante medida) das condições institucionais específicas.

As pessoas mantinham com o "seu" liceu laços de afecto aos quais estava indissociavelmente ligado um percurso pessoal (experiencial, vivencial, num certo sentido, quase iniciático) que acabava por passar a fazer parte integrante do estatuto final atingido.

Este espírito que as instituições geravam e através do qual se ligavam e ligavam a si os seus alunos era, pois, algo determinante para o sucesso escolar que (e isto é extremamnte importante) era, no limite, indissociável do próprio sucesso pessoal de cada um.

Sabia-se que, sem o liceu (sem aquele liceu ao qual estavam asociadas vivências únicas, muito pessoais, determinantes intrinsecamente ligadas, por sua vez, ao processo particular de crescimento pessoal e de ascensão social) esse sucesso seria de algum modo (muito concreto, de resto) algo extremamente duvidoso, problemático.

Era daquelas salas (do que nelas acontecia) e daqueles professores (do que eles faziam e, sobretudo, daquilo que eles sabiam e estavam a criar condições materiais para que nós mesmos passássemos a saber também assim nos aproximando do estatuto social que eles próprios detinham) que dependia, indissociavelmente, o sucesso.

A autoridade deles, professores e instituição, vinha, claro, do modo como estava cultu(r)al, institucional e politicamente concebida em geral a autoridade mas também da percepção individual de cada um de nós de que sem o Conhecimento que deles nos chegava a aquisição do estatuto em causa seria impossível.

Quer dizer: a autoridade tinha, à época, um fundamento concreto facilmente reconhecível: ela vinha acompanhada de modos muito precisos e concretos de verificá-la---e demonstrá-la.

Quem mandava num liceu---o professor, o reitor, o próprio liceu---fazia-o (podia fazê-lo, encontrava-se legitimado para para fazê-lo) porque possuía maior Conhecimento e o Conhecimento era a própria base ou fundamento de um certo estatuto social abstracto que, uma vez obtido, conduzia a um lugar (a um "posto") também ele muito preciso e definido, na sociedade: aquele que cabia, "por direito", ao "doutor, ao "arquitecto", ao "engenheiro" e por aí fora.

Não está em causa a natureza elitista e classista do modelo de educatividade salazarista.

Estamos a falar de operatividade, de consistência intrínseca, de fundamentação específica do próprio paradigma, como tal.

Não estamos, repito, a falar de "justiça" e injustiça": na verdade, um modelo educativo pode ser eficaz sem ser minimamente justo e pode, pelo contrário, ser abstractamente justo sem ser eficaz---assim acabando, de resto, por converter-se secundariamente num sistema injusto, como acontece, aliás, com a escola, sobretudo pública, de hoje.

E aqui regressamos à inmagem e/ou ao exemplo do Desporto: quanto Tomaz Morais diz, a dado passo da referida entrevista que concedeu ao "D.N." que "Não há nenhum jogador que jogue sem treinador. Quando ele achar "como valho 100 milhões e o treinador só vale três, eu é que vou dizer o que ele tem que fazer", a equipa não vai a lado nenhum".

Ou seja: aquilo de que o treinador Morais nos está aqui a falar, numa actividade em ue o suceso é inmediatamente quantificável e exprimível por um valor objectivo e objectivamente comparável (o resultado desportivo ou, mais exactamente: competitivo) é do próprio fundamento material da autioridade.

Durante décadas, esse modelo fundamentado funcionou no paradigma global e pontualmente nos diversos paradigmas circunstanciai de educatividade.

O aluno sabia que (para usar as palavras de Morais) "não ia a lado nenhum" sem a intervernção do professor.

A sua própria autoridade como indivíduo vinha-lhe social e/ou cultu(r)almente do modo como fosse adquirindo da mão do professor o fundamento para o reconhecimento social e cultu(r)al respectivo que era o Conhecimento---ou volto a dizer distingundo subtilmente a sua expressão num resultado que, no caso, era um diploma, um "canudo" simbolizador ou mesmo (por que não dizê-lo?) simbólico.

Por isso, ele aceitava genericamente não pôr em causa enquanto tal essa autoridade específica e muito concretamente fundamentada---e por isso, não lhe era, no limite genérico, difícil aceitar os rituais particulares---as formas que podia assumir o tal espírito institucional particular---que contribuiam materialmente para consolidar todo o processo.

O problema começa a põr-se quanto o estatuto do próprio aluno se des-organiza e se des-integra do estrito (mas não necessariamente estreito) processo de aquisição social de aprendizagem-e-estatuto (um inglês diria de "learning cum status") e passa a preceder descontextualmente o próprio processo: agora têm-se 'direitos' que não derivam (não vão progressivamente derivando) de um processo que os fundamente.

Agora, ninguém diz (e aceita de forma praticamente implícita) que se diga: "Já posso chegar a casa à noite às dez porque já tenho o 5º ano" ou "já posso fazê-lo à meia-noite porque já fiz o 7º" do antigo liceu.

Agora, eu posso chegar a casa a qualquer hora porque é um 'direito' que eu tenho como indivíduo.

Ou seja: estamos confrontados como sociedade com um sistema de valores que não pode ser prática e/ou objerctualmente verificado e demonstrado.

Estamos confrontados com um sistema ou teoria de valores que se des-integrou já de toda um praxis social, cultu(r)al e política que conduzia, directa e natural (ou mesmo, num certo sentido simbólico, necessariamente) ao que eu próprio chamo: uma sociedade "orgânica".

As sociedades orgânicas (também elas) não têm fatal e necessariamente de ser sociedades "justas": ser "orgânico", neste sentido de ser uma sociedade que opera como um todo conceptual e (genericamente) conceptuante, não tem de implicar ser justo.

Ser "orgânico" significa apenas ser... "orgânico".

Pode-se ser reaccionária e, exactamente ao invés, em tese, ser revolucionariamente orgânico

Agora, o que, a mim pessoalmente, se me afigura óbvio é que a sociedade em que vivemos deixou há muito de ser "orgânica" naquele sentido antropológica e mesmo epistemologicamente preciso em que as suas representações de pordem cultu(r)al, as suas representações subjeccionais e mesmo as suas instituições são vistas (e aceites---e até valoradas ou valoriadas) fora de uma praxis que as vá determinando e verificando.

A autoridade é uma daquelas representações subjeccionais que se soltou, por completo, de um quadro objectual que a explique---e verifique ("that verifies it").

Eu hoje posso aprender na instituição A, B ou C, de um ceryo nível de educatividade material sem que isso traga qualquer aporte potenciador e identizador distintivo, específico, ao processo em causa porque coloquei o objectivo da própria Educação completamente fora dela como processo: como processo em si e como processo de integração ou integratividade social e cultu(r)al, em termos amplos.

Hoje, com efeito, eu não sou educado para integrar uma sociedade---e, sobretudo, uma cultura específica de si, uma 'inteligência de si' que lhe é própria: sou objecto... objectivo de um processo de formação substancial e substantivamente funcional cujo âmbito é incomparavelmente mais pessoal, mais individual do que demonstravelmente social e cultu(r)al.

Eu diria mesmo: a pós-modernidade (educativa mas não só) está toda nesse modo des-integrado e des-integrante de conceber a (não) relação dos indivíduos com o todo e das representações e instituições com fundamentos sólida e estavelmente demonstráveis.

O que é particularmente surpreendente numa sociedade que a si mesma se reivindica frequente (e mesmo, não-raro, impacientemente!) "do conhecimento".

Pretendendo-se "do conhecimento" a nossa é, de facto, mau grado isso, uma sociedade que não integra no conjunto e, sobretudo, na base das suas formulações quer subjectivas, quer objectivas, de natureza teórica mas de igual modo, bem prática, o modo de pensar consistentemente integrador e contínua/estruturalmente causalizador (integrador porque causalizador) que as ciências têm como método electivo.

Inclusive as "nossas" formas "pós-modernas" de «Democracia» deixaram, em geral, de ser e/ou de configurar uma ciência ou uma "ciencialidade" (i.e. a representação política ou politicamente operativa de uma necessidade baseada, por seu turno, na consideração globalmente integrante da própria realidade como tal: deixaram de ser---ou nunca puderam objectivamente chegar a ser---uma "teoria da realidade" como seria essencial que fossem) configurando, sim, um sistema de referências "epistemologicamente puras", quase "transcendentes", que precedem a própria realidade com elça, porém, apenas acidental ou incidentalmente se "cruzando".

Isto resulta (já o disse inúmeras vezes) do modo como, enquanto sociedade económica e política, incorporamos o Conhecimento: como uma propriedade privada e um proto-capital cuja função única é reproduzir-se continuamente a si mesmo.

Do Conhecimento chegam à sociedade os produtos---por meio dos quais aceitamos separar-nos da propriedade do próprio Conhecimento enquanto tal.

Por isso, ele nunca chega realmente às escolas (senão já desactivado relativamente a essa função precisa de re/produzir socialmente capital) e, por isso, a elas nunca chega tão pouco a atitude científica, o espírito (e a necessidade intelectual e inteleccional) de ciencializar mais ou menos natural e/ou espontaneamente o real que está na base e no cerne da 'atitude científica' tipo.

Por isso, foi possível a uma (péssima!) equipa ministerial---permitindo, desse modo, que se escapasse por completo... "para a atmosfera" o pouco que ainda seria possível gerar, reter e ulteriormente funcionalizar de um certo, potencialmente fecundo em termos especificamente pedagógicos e didácticos, espírito de instituição--ou, até, apenas de sala-de-aula que, repito, ainda fosse possível que pudesse nos dias de hoje ser---"malgré tout"---gerado); por isso foi possível, dizia, a uma (escandalosamente inapropriada e até inepta, insisto) equipa ministerial propor aquela virtualmente inimaginável medida da... "avaliação" do trabalho docente pelos pais.

Tal... "medida" configura, a meu ver, a gota-de-água que faltava para que ficasse simbolicamente consagrada a tarefa de destruição da própria "essência epistemológica" da actividade docente enquanto expressão codificada e operativa de necessidade tecnica e epistemologicamente exprimível, digamos assim.

Voltando ao exemplo escolhido do râguebi: naqueles 'universos operativos' concretos onde as representações em geral ainda não se des-integraram por completo, há um 'espírito' "de balneário", no caso da modalidade competitiva em questão que pode ser (e é, pelos vistos!) contínua e, sobretudo, beneficamente reinvestível na repotenciação ulterior contínua da actividade em si.

Há, dito de outro modo, um ritual ou, mais genericamente, uma ritualicidade potenciante que conserva, por assim dizer o espírito dinâmica e/ou operativamente "colado" à acção ou acções a produzir pelo modelo em causa.

Não se melhora este abrindo-as discricionariamente ao exterior.

Entendamo-nos: não se melhora, seguramente, tornando o modelo objectualmente opaco para o exterior.

Mas não se progride tão-pouco devassando-o arbitrariamente (mesmo admitindo---muito remota e muito apenas teoricamente...---que as intenções com que tal se faça sejam em si boas) e destruindo-lhe assim aquilo a que poderíamos possivelmente chamar o específico necessitário (isto é, o conteúdo e a essência em técnica) de que todo o modelo e o próprio processo no seu todo, em boas condições de operatividade, se alimentam.


[Imagem extraída com a devida vénia de br.geocities.com]

Sem comentários: