Ontem, cá em casa, foi dia de... "S. Woodie".
Dito de outro modo menos... hagiográfico ou menos hagiológico: foi dia de rever o fabuloso "Manhattan" de Woodie Allen...
"Manhattan" é Woodie no seu melhor, uma espantosa mistura de Bergmann e Fellini, cuidadosamente revisitados a partir da perspectiva da classe média/alta novaiorquina acabadinha de (não!) sair da egotística, neurótica e cultu(r)almente claustrofóbica "ilha existencial" que é uma certa "Academe" norte-americana "de luxo" (Bergman e Fellini, de resto, expressamente citados---e confessadamente homenageados---no filme) e Buster Keaton---mais Keaton (cuja filha também anda, de resto, por "ali", em carne e osso...) do que, por exemplo, Chaplin.
... Keaton que era o homem, o cineasta, da ambivalência e da esquizofrenia expressionais---o estóico da comédia, uma figura tão paradoxal---e tão inquietantemente---trágica quanto (supostamente apenas e sobretudo) 'cómica'.
[Não por acaso seria Keaton que Beckett escolheria para protagonizar o seu inquietante e tão insolitamente beckettiano "Film" embora o actor tivesse posteriormente "confessado"---e que melhor tributo poderia ele preastar ao genial criador de Godot, afinal?...---"não ter percebido patavina do filme"].
Voltando, porém, a "Manhattan": num certo sentido, ele é o "Barry Lyndon" de Allen no preciso sentido em que é um filme que não procura "demonstrar" (pelo menos, a priori...) coisa alguma; um filme que se "resume", em última instância, à sua condição de 'objecto' em si e por si fascinante, hipnótico, encantatório.
Um filme-filme.
Cinema.
Como em Bergman (sempre) ou no Fellini (sobretudo) do "pós-" (nele, aliás, muito discutível...) «neo-realismo».
É claro que "por trás" do objecto-"Manhattan", regressando ainda e sempre a ele, em si estão "coisas" ( pistas textuais, sugestões concepcionais, cosmovisionais, etc.) que vão de Strindberg e Kirkegaard (também eles, de resto, expressamente citados) ao grande (e hoje, em mais de um sentido, 'mítico') cinema «comercial» norte-americano dos anos '40 e '50: também os nomes e as "personae cinematograficae" de Veronica Lake e Rita Hayworth são (com dificilmente escondíveis encantamento, contagiante nostalgia e irreprimível saudade, aliás) citados no filme.
É claro que a "nabokoviava" atracção de Allen pelas parceiras (muito!) mais jovens também está lá (Nabokov e especificamente "Lolita" são também incluídos na longa lista de citações ou "citações" do filme) assim como, através do próprio modo subtilmente... "significado" como o catártico e redentor romance da personagem de Allen com a de uma sublime Mariel Hemingway é nele introduzido---uma intelectualizadíssima e (muito) apologética "defesa" daquele que é, esse sim, um traço caractereológico e possível proximidade artística de Allen com Chaplin.
Tudo isso é, pois, verdade, tem inegável alcance crítico e abre contínuas pistas de re- e/ou mesmo sobre-"leituração" cujo interesse nunca será demais realçar; o grande mérito de "Manhattan" é, porém, em última instância (volto a dizer, como acontece com "Barry Lyndon" relativamente ao conjunto da opus kubrickeana) para mim, pelo menos, o de o de constituir um fabuloso---eu diria mesmo: um verdadeiramente hipnótico, encantatório---"objecto narrativo" soberbamente animado com personagens magistralmente (re?) construídas (já vimos muito brevemente a partir de quê) e por um quase tocável, quase físico e material, inúmeras vezes confessado, fascínio do próprio Allen por Nova Iorque (por uma certa paradoxal e, em larga medida, puramente interior Nova Iorque---lembremos aqui o verdadeiro achado, cirurgicamente contextualizador e definidor de um "espírito", de um registo, de um "mood" muito alleniano, que é sequência da "overture", com a sobreposição de um texto que finge fazer-se em tempo real e que parece incapaz de precisar-se e que, por isso, recomeça continuamente dando subtil terstemunho das contradições do gosto do próprio Allen, da arracionalidade intrínseca (muito kirkegaardiana...) da paixão e as amorosamente filmadas "vistas a preto-e-braco" da cidade)---tudo isso sem esquecer, obviamente, aquele outro hipnótico fascínio no fascínio que é aquele que Allen sente por si próprio, naturalmente...
Por tudo isto e porque Aleen é, de facto, um génio do "wit" e um cineasta precioso, "Manhattan" é uma daquelas "coisas" que se revê vezes sem conta e sempre com uma (dificilmente descritível para o exterior) impressão de ternura e puro maravilhamento.
6 comentários:
Gosto de Woody Allen. Pelo que sei, o actor/realizador não é muito diferente das personagens que interpreta/filma. Gosto dele, especialmente em "Zelig" (1983). Gosto dele, pronto.
Excelente filme que me fizeste vontade de rever.
É isso!
É assim que eu próprio definiria, em última análise, a minha "relação" cinematográfica com o Woodie Allen: é um cineasta cuja obra se vê e se saboreia, sempre com um sorriso, entre o terno e o (às vezes, involuntária ou mesmo deslumbradamente) empático.
As fragilidades que evidencia, o seu espanto, fina e sempre um pouco cinicamente, irónico com a realidade (incluindo-se a si próprio decididamente nela) seriam possivelmente também e EXACTAMENTE COM AQUELA FORMA, as nossas se possuíssemos como ele o talento de saber como afastar-nos criticamente dessa mesma realidade e de nós próprios, para a (e nos!) olharmos, a essa "desejavelmente crítica distância", nem que fosse pelo brevíssimo espaço de hora e meia que dura em média um filme e... num filme.
Ora, o que eu acho é que o Allen nos fornece, nos filmes que faz (e este "Manhattan" é, de facto, uma 'coisa' absolutamente fascinante!) esse espelho estável ["finamente decorado" com uma inteligência agudíssima, não raras vezes, cintilante] que reflecte e refracta, ao mesmo tempo, a(s) nossa(s) angústia(s) de natureza existencial, as nossas vulnerabilidades, em geral.
O modo como se entrega, sem propriamente se entregar, ao nosso olhar 'instintivamente violador' de espectadores da sua inquietação e das suas muito... 'hamletianas' ansiedades chega a ser quase comovedor---e só (felizmente!) o não é (não é APENAS isso!) porque, quando a pieguice e a crua masturbação mental e até moral ameaçam irromper e pôr em risco aquilo que era impiedosa auto-análise e auto-representação, o estóico (e tão característico) delicadamente sardónico cepticismo "woodie-alleniano" faz, por sua vez, a sua aparição em cena e salva tudo...
Há um título do Unamuno que, de algum modo, sumariza e 'define' o Cinema (com maiúscula!) do Allen: "Nada Más Que Todo Un Hombre"...
É isso: o homem e o seu espanto existencial como finíssimo, inteligentíssimo e, de alguma forma, 'total' (no sentido de completo, 'perfeito') e, ao mesmo tempo, 'definitivo' e 'absoluto' "espectáculo".
Ana:
Força!
Vê o que puderes do Allen (há uma edição parcial da Obra dele re/editada pelo "Público").
Vê e, depois, não deixes de 'vir aqui', discutir com a gente, dar a tua própria visão do que... viste.
Beijinho!
sou woodyodependente :)!
tudo o que o Carlos diz sobre o cineasta/actor, está certo.perfeito.
só hoje, descobri este seu "cantinho" :)! continuarei a passar por aqui.
foi muito bom, também, conhecer a Mia :)!
beijocassssss
vovó Maria
Força!
Quando quiser e sempre que quiser!
Fico à edpera!
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