Regresso, hoje, aqui a um tema (por imperativos de organização interna do próprio texto, permitam-me que só mais adiante revele qual) que me é, no imediato---isso posso ir já adiantando---directamente sugerido pelo encontro casual com um antigo colega, o meu Amigo Alberto Salgueiro.
O Salgueiro foi, como disse, colega de Escola e, de entre os muitos que tive no conjunto das mais de três décadas em que leccionei, um dos poucos que terá verdadeiramente entendido o potencial pedagógico e didáctico do conceito---do ponto de vista dessas componentes básicas da nossas profissão comum, aliás, capital!---de inter- ou, como prefiro pessoalmente dizer: trans-disciplinaridade.
Por mais de uma vez, conseguimos, de facto, juntar as turmas (e as disciplinas por nós leccionadas: Inglês e Economia) e, em temas como a Revolução Industrial inglesa (um tema que, como se compreende pressupõe especificidades técnicas que um professor de Economia, melhor do que provavelmente qualquer outro poderá ajudar a explicitar) articular ambas de uma perspectiva tão integrante (ou mesmo---por que não?---tão dialéctica e orgânica) quanto possível, orientando debates, em inglês, sobre a componente especificamente económica da unidade temática em causa e registando, em 'papers' igualmente redigidos em língua inglesa e coordenadamente corrigidos por ambos, as respectivas conclusões.
Antes de hoje, tinha voltado a encontrar o Salgueiro e a poder trocar com ele algumas sempre interessantes impressões sobre os mais diversos aspectos das nossas respectivas docências, ainda muito recentemente, no âmbito de um convite que me foi feito para apresentar um filme ("North Country" de Niki Caro, 2005) no extinto "Cine-clube na Biblioteca", para várias turmas do Programa 'Novas Oportunidades'---designadamente sobre um projecto que esse meu ex-Colega e Amigo planeava levar a cabo, nos seus próprios cursos, sobre (esta designação é, porém, da minha exclusiva responsabilidade) "Economia e Expressão Literária".
O conceito básico sobre o qual assentava a ideia era o de (para utilizar expressões correntes do jargão da minha própria prática profissional) "skim-and-scan" todo um acervo de obras de natureza especificamente literária, sobretudo portuguesas, de Fernão Lopes ou até dos Cancioneiros e de Camões a Lobo Antunes ou Saramago, abordando-as, porém, na essência, da perspectiva das respectivas potencialidades informativas (oum de juma forma mais lata: informacionais) em matéria especificamente económica e financeira.
No fundo, algo que eu próprio, de uma perspectiva necessariamente (muito) menos técnica vinha, desde a década de '70 do século passado (por exemplo, na "Seara Nova") fazendo com o Desporto---e cá está, então, finalmente revelado (se o título que lhe dei não bastasse...) o tema da presente 'entrada' do "Quisto" que comecei, como disse, por razões atinentes à estruturação da própria exposição, por não expor de imediato.
O mais recente encontro com o Salgueiro---voltando, porém, ao início---fornecer-me-ia, pois, desta vez, o ensejo para retomar aqui, no "Quisto", o tema tal como eu o vejo, hoje, em Portugal.
E o modo como eu o vejo é básica e muito sumariamente o seguinte:
No plano estr(e)itamente competitivo, ao mais alto nível, existe em Portugal um Clube com capacidade para crescer o bastante para poder tornar-se idealmente 'exportador': o Sport Lisboa e Benfica ou, se quisermos, o Sport Lisboa e Benfica, S.A.D.
É o único clube (a única empresa promotora de espectáculos competitivos, designadamente futebolísticos, no âmbito da componente de onze) verdadeira---e indisputavelmente---rentável, das várias que o País viu nascer a partir de alguns dos antigos 'clubes desportivos'---e isto porque é a única que possui um mercado que esteja (que está, ao menos potencialmente!) longe de confinar-se às (apertadas, económica e financeiramente limitadas) fronteiras do próprio País, uma vez perdido aquele outro mercado incomensuravelmente mais vasto, ao menos, em potência e que era o que incluía as colónias, sobretudo as de África.
Ao lado do Benfica, há um F.C. Porto que (a partir de dada altura, isso ficou perfeitamente evidente!) escolheu o modelo errado de crescer mas... teve (entre outras coisas claramente menos... transparentes e menos legítimas que igualmnte "ajudaram"---e de que maneira!...); teve, dizia, além 'disso', sorte---e o Sporting Clube de Portugal, hoje-por-hoje, não hesito em dizê-lo: seguramente o maior equívoco do futebol nacional...
Comecemos, porém, pelo Porto: durante décadas um clube, se não 'regional', seguramente 'de região' (o igualmente histórico Belenenses, por exemplo, foi ao longo de anos claramente... 'mais nacional' do que o Porto) 'deu o salto para a outro nível' com José Maria Pedroto e, sobretudo, a partir do momento em que um famoso chefe do departamento de futebol do clube se tornou naquele que é ainda hoje o seu presidente.
A táctica usada para se impor (de forma claramente mais ampla---lá está: mais... nacional) e crescer foi, no fundo, a mesma usada pelo extinto regime da ditadura para ele mesmo se impor ou se continuar a impor, sobretudo internamente quando a guerra colonial introduziu nele um factor de desintegração que lhe viria, aliás, como é sabido, a ser fatal: a de apostar na "identificação" constante de "adversários" (e mesmo, em certos casos, "inimigos") externos (a partir de dado momento da sua História colonial, a ditadura começou a falar constantemente---e a usá-la como estímulo à "unidade nacional"---por exemplo, numa recorrente, quase obsessiva "guerra que nos é movida do exterior") no sentido, precisamente, de criar, no caso do Porto, uma dinâmica de mobilização e unidade clubista que permitisse ao clube dar o salto qualitativo que até aí nunca havia verdadeiramente logrado dar.
No caso do Porto, os "inimigos" capazes de levarem a uma potenciação da mobilização interna eram do tipo: o "Terreiro do Paço", o suposto centralismo e mesmo "parasitismo" da capital, Lisboa, sempre pronta para aproveitar o trabalho produzido a Norte etc. etc.
O erro de que atrás falo terá sido o de acabar involuntariamente "inventando" praticamente do nada todo um comparativamente desmesurado e essencialmente virtual mas potencialmente poderoso "Sul" inimigo cujas (aliás, imprecisíssimas!) fronteiras geográficas começavam praticamente... nos concelhos limítrofes da própria cidade do Porto.
À semelhança (mas de igual modo e paradoxalmente, no que é verdadeiramente importante, ao contrário) do que sucede em Espanha com o F.C. Barcelona (que não é um clube de cidade mas, de um modo imcomparavelmente mais lato de região e de uma região comparativamente vasta e com uma História de efectivo e, em algumas circunstâncias, aberto, formal, conflito regionalista) o 'Porto' tentou entre nós uma estratégia análoga de consolidação e dinamização regionais que, todavia, à falta de fronteiras cultu(r)ais precisas (de uma cultura regional cimentada numa História com momentos de guerra aberta como sucede em Espanha com a Catalunha ou o País Basco) mas, de igual modo, de dimensão espacial, não teve (longe disso!) a mesma consequência (eu diria: nem, sequer proporcional) que o 'barcelonismo' teve em Espanha.
Tenho para mim, aliás, que, não fosse a argúcia do seu actual presidente para, por um lado, tentar escorar (como dizer?) "marginalmente" (e em mais de um sentido, aliás!...) o "essor" portista que ele soube desencadear em conhecidos 'jogos de bastidores' que vão claramente (é hoje, na prática, inegável) muito para além da ética e da própria legalidade e assentam numa rede de regionalmente muito fortes cumplicidades políticas, institucionais e económico-financeiras com ramificações facilmente perceptíveis (mesmo se não facilmente prováveis) ao submundo urbano; e, por outro lado, a evidente inépcia---do Benfica, sobretudo, durante muito tempo gerido por amadores e curiosos gritantemente desprovidos de visão estratégica---para encontrar respostas eficazes a um progressivo crescimento local que se vinha já há algum tempo fazendo anunciar com a ascenção de uma série de pequenos (ou médios) clubes regionais do Norte que o presidente portista utilizou como instrumentos estratégicos, negociando informalmente com eles um quadro de divisão local do poder que a todos, em última instância, dentro e até fora da estr(e)ita competiçao, satisfazia; tenho, para mim, dizia, que não fossem, sobretudo, essas duas circunstâncias e a História mais recente do futebol português, nacional e internacionalmente, teria não tenho dúvidas sido muito diferente daquilo que efectivamente veio a ser (1).
Porquê?
Desde logo, porque ao 'Porto' falta acima de tudo e antes de mais, uma coisa absolutamente essencial do ponto de vista da consolidação do seu próprio crescimento: um mercado.
Um verdadeiro---e amplo---mercado.
Que o Porto comprometeu ainda mais; que ele hipotecou, aliás, em larga medida quando aceitou delinear a sua estratrégia para crescer à custa da hostilização generalizada do próprio mercado potencial que é o conjunto do País, lançado "pêle-mêle", no contexto dessa estratégia, na categoria de força adversária ou, no mínimo, estranha e mesmo hostil.
É verdade que o clube tenta contornar esse óbice recorrendo ao expediente, duplamente útil, da figura administrativo-jurídica do empréstimo de jogadores e até treinadores a clubes de todo o País, de Setúbal e Braga, de Coimbra a Olhão: duplamente útil porque os roda a todos e, ao mesmo tempo, assegura zonas de infiltração nesses clubes que lhe permitem ter uma palavra precoce no mercado de jogadores através de trocas e mecanismos gerai de reciprocidade.
A verdade, porém, é que isso não lhe tem manifestamente permitido superar os problemas nucleares de implantação popular que a sua estratégia genericamente hostil e até a personalidade particularmente pouco simpática do seu ainda presidente ajudaram substancialmente a potenciar.
Parece-me possível adiantar já que bastou o Benfica (que sociologicamente representa no subconsciente colectivo nacional, o próprio "Povo", o proletariado, a massa do sector "blue colour" durante décadas prevalecente num país rural e generalizadamente pobre vs. uma burguesia que, embora 'pequena' no tamanho e na relevância efectiva no contexto da divisão social do poder fascista, fazia visíveis esforço para não parecê-lo---desde logo, nas escolhas, em matéria de símbolos institucionais, designadamente clubísticos...---e para demarcar-se desse universo particularmente pouco atractivo dos "descamisados".
Era todo um sector social e sociológico que se acantonava, digamos: simbolicamente, em torno do outro clube da capital---o clube que um barão ou vicsonde havia fundado e que pudera, por exemplo, em tempos remotos, "roubar" jogadores ao "clube dos pobres", ao Clube do sapateiro, do engraixador, do operário, do camponês, exactamente porque era rico e tinha um campo com relva e banhos de água quente que, dizem as crónicas, foram razões de peso para aliciar aquela que foi a primeira grande 'vedeta' de futebol nacional, o caprichoso e dizem que genial, Artur José Pereira); mas, dizia eu: bastou o Benfica "arrumar organizacional e competitivamente a casa" com um presidente organizativamente consistente e bom gestor e contratando finalmente um bom director desportivo e um óptimo treinador assim como---"last but not least"...---verdadeiramente bons jogadores para voltar a instantaneamente a galvanizar e a mobilizar o País competitivo (e o económico!) mesmo sem que o Clube tenha conseguido nas últimas décadas mais do que um único título de campeão.
A verdade é que, ainda muito recentemente, as instâncias do futebol mundial, mau grado essa persistente ausência de troféus, colocaram o Benfica entre os dez clubes competitivamente mais importantes de sempre de todo o mundo.
O dilema futuro do Benfica é, como tantas vezes tenho repetido, um que já em tempos (nos do Eusébio e das duas Taças dos Campeões Europeus ganhas pelo Clube) ele, de algum modo, enfrentou e que o treinador de então, Bela Guttmann resolveu fazendo alinhar internamente uma espécie de segunda equipa, reservando à primeira a represenação no plano externo.
O dilema em causa é permanecer "português" tendo inevitavelmente---exactamente porque o seu paradigma de crescimento é natural, i.e. radica naturalmente num mercado que ninguém lhe pode na prática contestar e substantivamente disputar---e, ao mesmo tempo, exportar (e capitalizar consistentemente nas exportações) para mercados incomparavelmente mais rentáveis fora das fronteiras do País.
A prazo, não tenho dúvidas, a estratégia do Benfica vai passar por tentar condicionar institucionalmernte a política de definição de modelos competitivos que lhe permitam sair substancial e até substantivmente das fronteiras nacionais---sem que o Clube está (a meu ver: fatalmente) condenado a aceitar reduzir-se às curtas dimensões do pequeníssimo merado interno.
Mas, num mundo de "Europas", de globalizações, de multinacionais, etc. o espectáculo desportivo está (eu diria: por definição) "condenado" a exportar (se) também---ou, pelo contrário, virar as costas os tempos (e ao próprio Tempo!) e paulatinamente definhar.
É por isso que um dos grandes embustes ou, no mínimo, equívocos da competição nacional é aquele que passo a expor e que é corporizado, ainda, pelo Porto.
Num País onde a imprensa desportiva se degradou drasticamente desde os tempos do grande jornal (e não só grande jornal desportivo!) que foi "A Bola", co-fundada por Cândido de Oliveira (um dos primeiros grandes visionários mas visionário lúcido, racional, esclarecido do futebol entre nós); "A Bola" dos tempos de Alfredo Farinha, Vítor Santos, Carlos Pinhão, Carlos Miranda, Homero Serpa, Aurélio Márcio (um homem que escrevia horrivelmente mas sabia de futebol como poucos) etc. etc.; num País com estas características em que o espectáculo jornalístico, o 'espectáculo da opinião' tomou decididamente o lugar da própria opinião, tornou-se comum à imprensa em geral aceitar implícita (porque a-criticamente) determinadas "verdades feitas" que, de tantas vezes repetidas, acabaram por passar a "absolutas"---a verdadeiros dogmas.
Uma dessas "verdades" diz que o F.C. Porto é o clube melhor gerido em Portugal porque realiza anualmente milhões em transferências de jogadores.
Ora, a verdade é que isso apenas tem de suceder exactamente porque (a) o clube em causa não dispõe de um mercado primário para o produto que é suposto vender (espectáculos desportivos ou mais rigorosamente: competitivos) e (b) porque ele próprio não está interessado em que assim deixe de ser, preso como está de um modelo de controlo na prática "corporativo" (porque o clube em causa controla em termos práticos o mercado mantendo-o artificialmente com uma certa forma disfuncional que lhe convém exactamente porque assim domina os próprios mecanismos da competição, recorrendo ao poder do voto que negoceia com os clubes que "ajuda"); um modelo corporativo que impede que, em Portugal, seja o próprio mercado a determinar quantos clubes devem competir em cada liga, por exemplo máximo, para que essas mesmas ligas possam ser minimamente rentáveis---em termos, insisto, estritamente nacionais.
É claro que um clube ao qual interessa ganhar sempre é indiferente que modelo competitivo no seu todo se modernize e rentabilize globalmente: interessa-lhe sim, enquanto puder, negociar o seu próprio domínio a troco de um sistema, chamemos-lhe descensional, de redistribuição "em escada" de poder(es) (e não só no plano da estrita competição, note-se) ganhando no próprio modelo organizativo os apoios e (a avaliar pelo que se tem lido e ouvido nas escutas ligadas ao "Apito Dourado") também as cumplicidades que lhe permitem, na prática, ganhar sempre.
Na verdade, porém, o que acontece é muito simplesmente isto---que é, a meu ver, exactamente o contrário de uma boa e sã gestão: incapaz de oferecer-se a si mesmo um verdadeiro mercado para o produto futebol, o 'Porto' aposta num modelo de (passe o 'palavrão'!) "ordinaricização" de receitas extraordinárias e, ipso facto, a uma espécie de investimento paralelo "invisível" (?); de, se assim quisermos, da sua própria "paralela" conversão "under the counter" de empresa oficialmente produtora de espectáculos competitivos em duas: nessa, claro, mas também numa outra empresa-sombra de agenciamento de jogadores a partir da qual o clube vai recapitalizando continuamente um "negócio" que por si só pura e simplesmente se não sustém.
É a isto que se persiste hoje entre nós (mesmo a nível dos jornais ditos "da especialidade", como os do "Diário Económico") em chamar-se "uma gestão modelar"...
Mas... se um país se recapitalizar equilibrando continuamente as suas contas públicas cronicamente deficitárias recorrendo, de modo regular, a receitas extraordinárias, isso é... "boa gestão das contas públicas"?
Se uma empresa de, digamos, produtos farmacêuticos, tiver, ano após ano, de recorrer à venda de máquinas do seu próprio parque industrial ou de carrinhas da sua frota de distribuição; à cedência de contratos profissionais à concorrência; ao licenciamento cíclico de funcionários a fim de poupar nos respectivos salários; tudo isto porque porque não consegue vender produtos farmacêuticos que são, todavia, o seu ramo legal, "legit", de negócio, em quantidade suficiente para assegurar a sua sobrevivência material como empresa de comercialização de... produtos farmacêuticos, é correcto e é, sobretudo, tecnicamente exacto dizer que funciona em termos económico-financeiramente saudáveis?...
Fosse o próprio mercado a mandar e tudo seria, no caso do futebol português (voltando a ele) previsivelmente bem diferente.
Corrijo: fosse o próprio mercado a mandar e tudo seria já hoje nesse domínio bem diferente.
É por tudo isto que até aqui já disse que me permito avançar também que a próxima tarefa estratégica do Benfica tem necessariamente de ser aquele esforço que atrás referi no sentido de reestruturar esse mercado, consistentemente deformado por um modelo organizacional arcaico, arqueológico, que, volto a dizer, serve na realidade interesses corporativos locais (das "empresas"---ou melhor: basicamente de uma empresa---que teme o mercado) mas não os das que o não temem, antes precisam capitalmente dele para crescerem de forma natural até ao limite das suas muitas potencialidades, artificialmente contidas no presente em consequência precisamente daquele "corporativismo objectivo" que, como todos os corporativismos, é, na realidade, um substituto adventício e artificial do mercado, usado exactamente contra este.
Por fim, o Sporting.
O Sporting foi, como disse, durante décadas, o clube de uma burguesia urbana e muito moderada ou muito mitigadamente '(pré)industrial' que em Portugal contrastava frontalmente com a ruralidade generalizada do próprio País, no seu todo.
Ainda há pouco, relendo as memórias do grande guarda-redes que foi Carlos Gomes---"O Jogo da Vida"---eu tinha a possibilidade de evocar os tempos em que as "treze famílias" que "todo lo todo lo podían" em Portugal, designadamente no Barreiro, punham e dispunham como queriam de coisas e pessoas, envolvendo, ao mesmo tempo, uma certa imagem social e sociológica mais ou menos "antropologicamente simbólica" do próprio Sporting---de tal maneira e em tal grau que, conta Carlos Gomes (que, recordo, foi jogador----e que jogador!---do clube) os jogos com o Sporting eram localmente vistos como ensejos para protestar camufladamente contra o poder do 'regime', de tal modo regime' e poder, a dado passo, se encontravam, no (in?) consciente colectivo inter-associados.
A tal ponto era aguda esta percepção de hostilidade contra o poder da ditadura espelhado no Sporting e expressa no jogo contra os leões que (conta ainda Carlos Gomes) a própria G.N.R. era regularmente chamada para o extinto campo Manuel de Mello, ficando, diz ele, durante os jogos a cavalo disposta a todo a volta do campo, virada para a assistência, com ordens expressas para intervir se o público se manifestasse contra o clube visitante e, naturalmente, a favor do Barreirense, localmente, cujo grande adversário sociológico local era a C.U.F., o clube da empresa dos Mellos.
Outro exemplo, de uma associação de natureza sociológica e o apodo sarcástico de a "agência de empregos" aplicado à própria sede do clube situada no luxuoso Palácio Foz em Lisboa...
Também o Sporting, pois, atingiu o seu período de apogeu competitivo numa altura em que não teve por quanto já disse verdadeiramente de competir no mercado por, desde logo, nem sequer haver à época verdadeiro "mercado" (no futebol e fora dele---eram os tempos do 'auge corporativo' do 'regime') mas tão-somente, no caso do futebol, uma espécie de brumoso não-amadorismo geral assente, em termos de receitas, basicamente, sobretudo no caso dos chamados Grandes, num astuciosíssimo 'mecenato' privado que interessava, no fundo, a todas as partes: às que investiam, como ainda e sempre recorda Carlos Gomes no livro (que, pagando se promoviam e abriam canais de negócio) e àquelas sobre as quais ia caindo o dinheiro que lhes permitia (com a ajuda prestimosa adicional de um aparelho jurídico "leonino" onde a famigerada "lei da opção" possibilitava legalizar objectivamente a 'escravatura competitiva' mais extrema) controlar completamente o universo competitivo sem grande despesa ou necessidade de particular eficiência organizativa.
Ora, quando o Sporting se viu, de repente, deposto o 'regime', na situação de ter de competir a sério num mercado onde não era claramente uma força amplamente consolidada; onde não era, em todo o caso, a que mais mercado tinha, deparou-se com uma situação cujo agravamento gradual não foi, desde aí, visivelmente capaz de obstar.
Era um clube poderosíssimo quando não havia mercado e os clubes eram, na prática, mantidos, como já disse, a partir de fora deste (já vimos como: através de 'mecenas' privados interessados em investir na sua própria promoção; de cumplicidades no aparelho de estado e por via destwe até na polícia, desde logo política, como o próprio Carlos Gomes teve, desgraçadamente para ele, ampla oprtunidade de perceber ); era, pois, o Sporting um clube que se via, de repente, obrigado a, num regime de mercado, manter uma certa imagem de poder que só podia vir, agora, desse mesmo mercado onde o clube não gozava reconhecivelmente do mesmo poder para se movimentar que tinha quando 'não havia mercado' ou não era, em última instância, em si mesmo substantivamente relevante que o (não) houvesse.
Este dilema (como manter intacta ou pouco menos uma preponderância que antes era quase natural e se tornara, de repente, num problema económico e finceiro complicadisíssimo?); este dilema, dizia, o Sporting nunca foi verdadeiramente capaz de resolvê-lo e uma série de péssimas medidas de gestão que foram deixando o clube gradualmente refém das dívidas em nada contribuiram para ajudar na respectiva solução ao acumularem uma dívida que acabou por manietar completamente o clube...
Ao Sporting (e, por isso, lhe chamei 'o maior equívoco competitivo' em Portugal, hoje) não é previsivelmente possível sobreviver a uma travessia do deserto que lhe permitisse, por exemplo, transformar-se momentaneamente num "Belenenses" (i.e. num clube com um plano de gestão substancialmente menos oneroso), descer de divisão, recuperar financeiramente e voltar com a mesma pujança institucional, identitária e competitiva de antes.
Não o é porque os seus apaniguados previsivelmente o não acompanhariam nesse dificílimo percurso e não é porque não o acompanhando estes o próprio mercado muito dificilmente lhe permitiria regressar àquela pujança e àquele poderio anteriores.
Previsivelmente, volto a dizer, o "combóio do sucesso" estaria, nesse caso, (quase?) fatal e definitivamente perdido.
É verdade que o Sporting foi globalmente capaz de, dentro de ceros limites, integrar (eu diria: secundariamente, estrategicamente) uma cultura de (como dizer?) "conformismo sublimado" (expresso em propostas de "construção" de uma identidade pragmática comparativamente nova do tipo "somos diferentes: podemos perder que continuaremos devotadamente sportinguistas") mas a verdade é que a pressão sempre que o clube não ganha (e dantes, não havia "não ganhar": quando "não se ganhava", implicitamente "perdia-se"...) o obriga a voltar obsessivamente ao problema, de onde, francamente, não se vê muito bem (nâo se vê, ponto final!) como há-de o clube lograr sair.
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Estes, em síntese, diversos aspectos, em meu entender, relevantes do quadro competitivo nacional.
Grandes questões dele, ainda mais sumariamente enunciadas: vai o Benfica conseguir negociar na Liga um quadro competitivo e organizativo que lhe permita começar regularmente a exportar e a exportar-se?
Como ficará, nesse caso, a paisagem competitiva interna?
Que acontecerá aos outros clubes, aos que não dispõem de um mercado potencial e realmente tão amplo e favorável?
Portugal não pode gerar internamente (não tem capacidade material para isso, como a não têm o País de Gales ou o Mónaco) uma Liga toda ela, como tal, competitiva internacionalmente: a solução só pode ser (como se passa com as empresas rentáveis entre nós, noutros ramos) "parti-la" e exportar, exportar, exportar o que puder ser exportado: é assim no resto da paisagem económica e económico-financeira (é assim, goste-se ou não!) por que não há-de sê-lo na indústria que tem inevitavelmente de ser o espectáculo desportivo a um certo nível?
E como sobreviverão as "empresas competitivas" que não o podem objectivamente fazer? Naturalmente, deixando de se empresas?
Pessoalmente, devo acrescentar, não deposito ("to say the least"...) grandes esperanças numa "Europa" feita "a martelo e em laboratório", como a que a partir, desde logo, de um tal "tratado", dito de Lisboa, se pretende "fabricar".
Não creio, por isso, que o futuro de Portugal (e nem sequer falo do 'Portugal competitivo', d 'Portugal desportivo') passe por uma qualquer "federalização" que acabe por envolver a própria competição e que leve à dissolução, mesmo a muito longo prazo, da liga nacional numa qualquer liga "Europeia" ou mesmo "europeia-regional".
[A experiência (da antiga R.D.A. por exemplo) não é muito promissora].
Na competição como fora dela, acredito que o futuro não vai passar pela "federalização" mais ou menos integral e final, definitiva, do País mas, ao invés, por uma redefinição a partir de dentro da nossa identidade e da nossa situação específica, autónoma, no concerto europeu (não "europeu": europeu, mesmo!) e mundial.
Acredito, por isso, que como atrás digo vá haver clubes (ou um/dois clubes?) em condições de exportar o seu produto e todo um comparativamente amplo leque de outros que vão ter de diminuir de dimensões ou ver o seu estatuto competitivo redefinido de acordo com uma realidade específica, a portuguesa, que mau grado os planos vigentes de "europeicização integral", acredito não vai deixar de existir no essencial como existe hoje e como existem hoje as nações europeias, no seu todo.
É que a "Europa" já existe, não precisa de ser inventada.
O que é necessário---e mesmo urgente!---urgente que o seja é o uso social, económica e politicamente equilibrado, verdadeiramente justo e correcto da que existe...
No futebol e, sobretudo, fora dele!
NOTA
(1) É igualmente minha tese que teria bastado que o Benfica ou alguém no Benfica, tivesse(m) percebido a importância capital de ter contratado um goleador como Ulf Kirsten, primeiro e Jardel, depois ou um médio como Deco que Vale e Azevedo "vendeu" ao Porto para essa História já tê-lo sido...
É discutível?
É mas eu continuo a acreditar que é, além disso, verdade...
[Na imagem: outro dos meus ídolos de infância---outra "pecaminosa e imperdoável traição" ao meu vibrante benfiquismo de sempre...---o Grande Frederico Barrigana, o "Mãos de Ferro" que aqui comovidamente evoco numa homenagem que serrve ao mesmo tempo para provar o meu... "ecumenismo" clubista demonstrativo de que tudo quanto digo, aqui e em qualquer outro lado, é ditado pela análise objectiva, nada me movendo contra os outros clubes cujo grande defeito e iregressível fatalidade foi apenas a de não de... não serem o Benfica...]
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