Termino, por hoje (hoje foi dia de... "antologiar") com uma mui barrocamente camoneana reflexão (de D. João Manuel) sobre um certo "desconcerto [pessoal] do mundo" que é, sobretudo um "desconcerto do mundo pessoal".
Uma confissão: não adiro geralmente ao Barroco (quando muito ao rococó---a algum rococó austríaco ou alemão do sul, bávaro, por exemplo).
Mas, ainda assim, não demasiado...
Com excepção da Música (a música barroca é, para mim, definitivamente um "caso" àparte...) e de um ou outro poeta entre os quais incluo Camões (o lírico---que do Barroco nos soube quase sempre dar uma versão profundamente "existencializada" e, às vezes, mesmo franca---e sofridamente...---pré-"existencialista") e os metafísicos ingleses, com Donne (de quem já aqui falei e que é seu mais labiríntico e, a vários títlos, estimulante representante) à cabeça.
O poema de D. João Manuel que aqui incluo não fica muito longe (em meu entender, pelo menos) de algum Camões mais intelectualizadamente introspectivo, mais habilmente elíptico e também mais poeticamente reflexivo.
O ritmo global do poema é notável de fluidez---uma espécie de "fluidez espiral" assente num jogo cuidadosíssimo de sons "escuros" e sibilantes sugerindo a dorida e complexa, melancólica e labiríntica, subjectividade do próprio tema, tudo isso pontuado por "ângulos fónicos" vivos que agitam inesperadamente a própria "água do poema" por cuja superfície lançam "estratégicamente" círculos concêntricos de som que o são também de emoção e sempre intelectualizadíssima, muito 'pensada', dor.
ESPARSA
Se me atormenta a tristeza
Que tantos males ordena
É porque minha firmeza
É maior que minha pena.
E que me veja matar
Conforto devo de ter
Em ver tão viva ficar
A razão de assim não ser.
D. João Manuel [in "Poesia Portuguesa do Século XII a 1915", selecção de Cabral do Nascimento, Editorial Verbo, col. Livros RTP, Lisboa, 1972]
[Na imagem: "Everything in the Garden", colagem sobre papel de Carlos Machado Acabado, republicada de "De um Não-Alexandre Onírico" in www.triplov.org]
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