sábado, 5 de setembro de 2009

"Democracia ou Partidocracia?---Algumas Reflexões Pessoais"


Adquiri recentemente o hábito (já o é, de facto!) de visitar regularmente o blog do Samuel, o notabilíssimo "Cantigueiro".

Conhecem o Samuel, claro!

É um cantautor que eu vi pela primeira vez num saudoso "comunitário" existente na Cruz Quebrada onde (ou em estreita relação com o qual) tive, de igual modo, a oportunidade de travar (algum, não muito profundo, admito) conhecimento com, por exemplo, o falecido ex-padre José da Felicidade Alves (uma das pessoas mais lúcidas, esclarecidas, modernas e corajosamente intervenientes que conheci) ou a ex-provedora da Casa Pia, Catalina Pestana.

Do Samuel, conservo ainda um velho (e riscadíssimo!) 45 rotações com quatro canções que, a dado passo, andaram nos ouvidos (e seguramente também nas bocas!) de muitos jovens almadenses quando, nas aulas de Português por mim dadas na velhinha "Anselmo de Andrade" (em mil bocados repartida...) algumas foram com as do Zé Mário Branco e (claro!) do "mestre" Zeca delas chamadas à lição, a fim de ilustrar diversos modos de expressar-se esteticamente pela escrita em Português.

Eram os inesquecíveis tempos da Revolução---da Revolução histórica, da Revolução política mas, de igual modo e, num certo sentido, mais importante ainda, da revolução interior que ajudaram a fazer os textos do Zeca, do Adriano, do Zé Mário mas também do 'Manel' da Fonseca, da Sophia de Mello Breyner (o lado mais distinta e mais proporcionadamente... "apolíneo" da Revolução, como gosto de chamar-lhe) e de tantos outros (até Redol, por lá andou nesse âmbito introdutório da "poemúsica" por onde decidimos preambular o estudo, sob muitos aspectos, experimental e pioneiro de uma estética da expressão escrita que entusiasmou e motivou à época para a cultura portuguesa gerações de jovens).

Pois, como disse, também o Samuel por "ali" andou---esse mesmo Samuel que vim, muitos anos (e uma contra-revolução) depois reencontrar aqui no interior do País já sem a frondosa e rebelde fecúndia capilar de outros tempos mas com o mesmo denodado empenhamento cívico e político de sempre.

Sucede que, num dos 'posts' do "Cantigueiro" surgiu, a dado passo, ensejo para um debate (capital!) sobre a questão da "democracia por partidos", da "democracia com partidos" e por fim, da "doença senil" de ambas, a "democracia apesar dos partidos" ou mais simplesmente "partidocracia".

Ora, para mim (que sou, também, vou já confessando publicamente o pecado de ter sido o desajeitado autor das designações imediatamente atrás avançadas); para mim, dizia, aquilo que hoje se vive entre nós (à semelhança, diz-me o "Notícias" de hoje mesmo, do que sucederá, por exemplo, na outrora revolucionária Nicarágua de Ortega) é claramente já uma desintegração partidocrata do que nunca terá, alguma vez, verdadeiramente chegado a ser uma genuína "democracia por partidos".

Aquilo que a (des!) qualifica como tal é, penso eu, o próprio modo (só posso imaginar, ao fim destes anos todos:) deliberadamente imperfeito, inacabado, como se veio a construir por inspiração e impulso, desde logo, de um dos mais perversos, fáceis-de-manejar e, no fundo, apenas instrumentalmente virtuais "partidos políticos" portugueses, o P.S. o edifício institucional da "democracia" entre nós.

Não sei quantas vezes já tive ensejo de abordar a questão da necessidade urgente (e ingente!) envolvendo a necessidade de introduzir naquilo que (tal como está) não passa de um "modelo demórfico" insubstantivo não configurando, em última (mas também verdadeira!) análise, em caso algum, uma genuina democracia um quadro de avaliação formal (no sentido de oficial e oficialmente nstitucionalizado) da Política e dos políticos em Portugal: um quadro que passe, como digo especificamente noutro lugar deste "Diário", (a) pela criação de uma "Mesa" ou "Tribunal de Aferição e Verificação Política", com poderes tribunalícios integrais e formais, genericamente decalcado, nos aspectos essenciais, do Tribunal de Contas e/ou dos Tribunais Fiscais onde deveriam ser obrigatoriamente depostos os programas dos candidatos, individuais e colectivos, a cargos de representação pública assim como todo um detalhado quadro de cálculos envolvendo os modos precisos para pô-los em prática; (b) um sistema devidamente tipificado de penalizações para os políticos incumpridores, i.e. para aqueles que, por incompetência ou dolo, exorbitassem dos seus mandatos e/ou de qualquer outro modo incumprissem aquilo a que se haviam formalmente proposto no programa enviado à "Mesa de Aferição" específica---políticos esses que deveriam ser pelo Tribunal referido punidos com penas públicas de suspensão temporária ou eventualmente, nos casos mais graves, definitiva da possibilidade de candidatar-se de novo assim como ainda (c) a impossibilitaçãop total da formação de maiorias ditas "absolutas" e que, em termops práticos, mais não configuram do que dispositivos dissimulados de "suspensão consentida", de "suspensão estratégica" ou de "suspensão... democrática" da própria democracia, como a (desagradibilíssima!) experiência portuguesa dos mandatos de Cavaco Silva e presentemente José Sócrates demonstram à saciedade.

Por outro lado, ainda, para que da mera construção demomórfica fosse possível passar a uma genuína democracia, seria absolutamente inevitável refazer (e apoiar institucionalmente essa reconstrução radical) a relação orgânica dos partidos políticos com a sociedade e, no fundo, com a própria Democracia como tal.

Ou seja: como foi dito do curto mas interessantíssimo debate sobre esta questão ocorrido no "Cantigueiro" não há (não haverá, na sua vertente parlamentar 'burguesa', pelo menos) democracia sem, partidos.

É verdade--- mas não é menos verdade que pode, de igual modo, não havê-la (e, no "caso" português actual, não a há, pura e simplesmente!) pelo simples facto de haver partidos.

Não a há se não for (eu diria:) estrategicamente re-vista a tal relação estrutural desses mesmos partidos com a sociedade onde se geraram e onde a sua acção deve exercer-se.

Portugal, o Portugal de Abril, dos Vascos Gonçalves e dos Otelos (dois Portuguais distintos entre si mas no limite não necessariamente alternativos) conheceu nesses fecundíssimos dias de meados de '74 e a maior parte de '75 uma especificidade relativa que o tenebroso refluxo conservador ou restaurador novembrista (que o cinismo e o maquiavelismo impropriamente dito "socialista" ajudou nuclearmente a não permitir que florescesse e fecundasse a vida cívica e poolítica nacional que foram as inúmeras "comissões" que, à época, se formaram a fim de polarizar o impulso de intervenção política das massas populares.

E houve-as de todos os géneros: das de moradores às de utentes dos serviços públicos; das de inquilinos às de estudantes; das de trabalhadores às de doentes da "Caixa".

As "comissões" foram o germe (quase?) original português de uma democraticidade verdadeiramente de base que poderia ter sido o embrião de uma entidade mais ou menos "federativa" da Cidadania que pudesse idealmente operar como o interlocutor (e o primeiro vigilante, o vigilante imediato) e por isso, legítima e também genuinamente estratégico dos partidos.

A consolidar-se este modelo, a vida pública portuguesa não seria mais (não teria, de facto, sido) uma espécie de "autocracia ciclicamente referendável" com a mediação formal dos partidos (de alguns deles, seguramente) os quais se encontram, de facto (se não de direito, seguramente de facto!) na situação estratégica de mediar e, pior ainda, "significar" a relação dos cidadãos com o poder.

Não de ligar os cidadãos e o poder mas de separá-los subtilmente dele através de uma hábil des-integração do que chamo o "Tempo" ou a "temporalicidade" democráticos.

Ou seja, com recurso ao expediente astucioso de introduzir uma espécie de corte longitudinal ou intervalo apórico no curso originalmente uno do Tempo democrático, ficando o poder com o... poder em tempo real e a cidadania com uma espécie de temporalicidade (cada vez mais) de natureza (im) puramente "moral" e, no fundo, de veto objectual a posteriori que não tem poder para intervir na formulação efectiva da decisionalidade política como tal, estando-lhe reservado o mero poder (?) de desaprovar as deliberações tomadas sem a sua intervenção.

Não está aqui em causa, para mim, a essência da democracia dita (muitas vezes, de forma totalmente imprópria e inadequada) "representativa": está em causa, sim (como dizer?) dialectilizá-la no sentido de recuperar a organicidade ideal da própria Democracia.

Para que a democracia com partidos ou até por partidos não se converta disfuncionalmente numa estrutura inerte particocrata é essencial que os partidos tenham como interlocutor em tempo tão próximo quanto possível do tempo real a própria sociedade organizada---como começou a suceder logo a partir de Abril ou Maio de '74.

A Democracia pressupõe vigilância, pressupõe instrumentos de intervenção democrática e eficaz e/ou efectivamente fiscalizadora e aferidora de modo a que não seja, pelo menos fácil, que suceda imaginando a maioria de nós seguir vivendo nela estar já a fazê-lo num outro regime de facto, perigosamente próximo de ter-se convertido (sem que fosse possível a muitos apercebê-lo de imediato) num autoritarismo referendário ou mesmo, nos casos limite das maiorias absolutas como a actual "pequena ditadura consensual estratégica" e/ou "autocracia de homologação institucional periódica".


[Esta 'entrada' do "Quisto" é dedicada expressamente à memória de Vasco Gonçalves e a Otelo Saraiva de Carvalho]

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