segunda-feira, 7 de setembro de 2009

"Democracia: A DECO fornece uma pista..." [T.i.P., Text in Progress, incompletamente revisto]

Leio (no "Público" de 28.08.09, cf. texto: "Deco pede atenção para consumidores") que a DECO apresentou aos partidos políticos e coligações candidatos à eleições legislativas um caderno reivindicativo onde, segundo o jornal, a Defesa do Consumidor "apresenta diversas propostas sobre temas que vão do acesso à justiça e dos cuidados de saúde aos serviços de interesse geral, regulação e concorrência e às actividades fiscalizadoras do Estado".
Ora aqui está, diria eu, um modo extremamente fecundo---o modo, no fundo ideal e, todavia, aquele a que ("if at all"...) mais raramente recorremos---de fazer realmente Política!

"Política", disse eu---sublinhando expressamente a maiúscula...

Em Portugal, com efeito, o regime partidário e o modelo de "democracia" nele assente está (não me restam disso, com toda a sinceridade, muitas dúvidas!) objectivamente esgotado.

Regredimos, aliás, com ele, de facto, ao pântano institucionalizado em que se atolou--ou se suicidou!---a Monarquia e de onde a primeira República não foi (obviamente!) capaz de resgatar o País.

Parece, hoje, na realidade, evidente algo que se nos afigurou durante muito tempo (tempo de ditadura...) completamente impensável: que o regime de partidos está longe de esgotar as possibilidades de fazer democracia e/ou de um país ou uma sociedade serem demonstravelmente democráticos.

Mais: que o regime de partidos pode, no limite, revelar-se o modo "estaticamente perfeito" de não fazê-la na medida em que, não a fazendo, se transmite, ainda assim, para o exterior uma completamente falsa e apesar disso (imediatamente, pelo menos!) em termos genéricos, acreditável imagem exactamente do contrário.

Há partidos, há um voto que é formalmente livre, há em geral liberdade de reunião e de expressão de pensamento---logo, deve ser isto 'a tal Democracia' de que tanto se fala.

Sabemos hoje, porém (sabe-o quem o quer realmente saber---e somos, afinal, tão poucos, pelos vistos!...) que, muito mais do que democracia, aquilo que, entre nós, hoje-por-hoje por tal vulgarmente passa é um regime que mais do que (ou mesmo em vez de) respeitar o quadro de vínculações e compromissos de natureza económica, social e política que são, por definição, inerentes às genuínas teórica e prática democráticaa, procura a todo o custo à revelia do respeito por esse quadro de vínculos e não-raro abertamente contra eles conservar-se firmemente "agarrado à História", lutando com todas as armas ao seu alcance para que ela, História, se conserve, pela parte que lhe diz respeito, a ele, com igual fixidez, colada que é como quem diz: solidamente presa a si mesma---e fazendo disso o seu verdadeiro programa de acção e único sustentáculo teórico, reconhecível e (mais grave ainda) demonstrável.

A política tornou-se, neste quadro, como tantas vezes tenho defendido, um mero revestimento móvel da infra-estrutura economocrata do 'regime', traindo assim por completo o seu compromisso social e político legítimo, na medida em que passou há muito a responder perante essa mesma base infra-estrutural e os seus interesses específicos em vez de fazê-lo perante os cidadãos ao serviço dos quais essa base infra-estrutural devia, em todos os casos, encontrar-se .

A "política" que o regime de partidos conseguiu gerar a partir dessa traição nuclear que, insisto, muitos infelizmente entre nós continuam evidentemente incapazes de ver e de perceber está limitada às tarefas meramente funcionais (disfarçadamente funcionais) de "legitimar" (ou melhor: de parecer tão acreditavelmente quanto possível fazê-lo) socialmente, por todos os modos possíveis, ainda e sempre, aquela base infra-estrutural, cumprindo, do seu próprio ponto de vista, idealmente essa sua... "histórica missão" a partir do momento em que consegue (e tem-no, em geral, melhor ou pior, conseguido, é preciso reconhecer...) criar no que, mais do que uma genuina Cidadania, é hoje-por-hoje, um simples... "eleitorado", a impressão (a ilusão imediatamente credível) de que os interesses dela, base infra-estrutural e os desse mesmo eleitorado coincidem, em última (e real!) análise, afinal, rigorosamente em tudo.

É esse, repito (devidamente retirada da argumentação dos seus advogados e partidários a "palha" com que não se cansam, aliás, de regularmente 'decorá-la') o papel "neo-" ou "pós-histórico" (seguramente "meta- ou trans-político"...) da "demomorfia instrumental" que, entre nós, passa comummente, sem grande dificuldade, por Democracia: "legitimar" continuamente o seu próprio núcleo económico na forma que alguns, dentro dela, lhe conseguiram conferir e usar topdos os artifícios formais possíveis para demonstrar que tudo nele está como está porque... não podia ser de outra maneira.

...E que se queremos "salvar-nos" (como sociedade, como paradigma ou modelo político, claro, mas num ceryo sentido até genericamente "civilizacional") teremos de "salvar" primeiro a Economia que, salvando-se ela, há-de, por sua vez, secundária, terciária ou, se calhar... quaternamente "salvar-nos" a nós...

O 'pântano' partidário---o enquistamento e apodrecimento objectivo da dinâmica global dos partidos---serve às mil maravilhas esse propósito anti-social e anti-historicamente ideal de não deixar que a História se liberte da "educada" e (disfuncionalmente) "estratégica" prisão onde uma cuidadosa "desfactualização significada" (que é, pois, teórica, ideológica mas também concretamente institucional) de que é objecto e vítima no sentido de se conservar sempre rigorosamente imóvel, na prática, a encerrou.

Para alguns (recordo, sem expressamente as citar, as declarações ainda não muito distantes de, de um modo ou de outro, dois quadros nacionais ligados à instituição militar, um deles com grandes responsabilidades na área da segurança interna) o 'regime' começa a estar 'maduro' para protagonizar um (chamemos-lhe) "processo de reclarificação musculada" do tipo daqueles que, nas décadas de '20 e '30 do século passado eram geralmente vistos como a saída ideal para "pôr em ordem (e na ordem) a "casa social" e sobretudo a "casa política" das democracias demasiado laxistas e socialmente indisciplinadas.

Aparentemente, salvar-nos-á do (amarguíssimo) "remédio" em causa, diz-se também, o facto de "estarmos na Europa".

Para muitos, isso significa, pois, alívio porque desse modo, tudo pode continuar exactamente como está, rigorosamente na mesma não estando, pois, na realidade, em causa os pingues benefícios que dessa imobilidade (desse apodrecimento social e político consistente, dessa contínua estagnação objectual) da sociedade portuguesa, sabem poder, assim, continuar com toda a tranquilidade e segurança a gozar.

Para quantos vêem no status quo, porém, uma situação económica, social e politicamente injustíssima, indecorosa e, por isso, de todo indesejável nem a manutenção mais ou menos inerte e sem prazo desse mesmo status quo (respaldada numa espécie de subtil mas muito reconhecível e muito efectivo "policiamento institucional", desde logo, objectivo, de presença da chamada União Europeia) nem a perspectiva (hoje-por-hoje sobretudo teórica e académica, embora) de um "desvio musculado" do própro curso dito "democrático" vigente constituem soluções desejáveis.

Sempre foi minha contenção de que o 25 de Abril abriu a Portugal uma "via", de facto, mais ou menos 'original' para um ideal Socialismo que nada tem, sendo como o designei 'ideal', pois, a ver com as grosseiras caricaturas que dele nos vêm consistentemente a ser dadas desde o primeiro governo constitucional (aquele que encerrou compulsivamente, como é saido, um termo social, histórica e politicamente brutal e indesejável o fecundo "laboratório político" daquilo que muitos continuam ainda hoje, com a boçal miopia dos imbecis e cegos de carreira, a chamar depreciativamente PREC.

A originalidade dessa via situava-se, a meu ver, numa espécie de estrutura dual ou "estrategicamente dualizada" (eu diria: de início, instintivamente dualizada) de poder assente não numa suposta partilha institucional-formal e constitucional desse mesmo poder entre um governo e um presidente da república mas entre o poder político institrucional no seu todo e a própria cidadania como interlocutora em tempo tão real quanto possível e obretdo determinante do poder formal, organizada como se pretendia que viesse a ter estado em órgãos de base devidamente estruturados e adequadamente formalizados, digamos assim.

As diversas comissões que à época se formaram podiam, com efeito, ter sido o embrião de uma estrutura verdadeiramente democratizada e democrática de poder que nunca chegou, todavia, na prática a existir porque as forças que triunfaram do 25 de abril vieram, afinal, a ser aquelas que a 25 de Abril de '74 não pretendiam, na realidade, uma mudança substantiva do sistema de poder mas uma mera 'flexibilização funcional' dele, de modo a inclui-lass também a elas.

Ou seja: o P.S. e o P.S.D. (então P.P.D.) aquilo que pretendiam, realmente, do regime era, no fundo, apenas que ele libertasse os mercados da arcaica tutela corporativa a que ele os tinha rigida e exclusivamente submetidos.

Pretendiam um ajustamento formal e funcional da realidade política de modo a que aquela "abertura" encontrasse expressão jurídica e especificamente constitucional adequada.

Nada mais.

Eu diria mesmo: pretendiam, no limite (chamemos-lhe "teórico" ou "teorético") que a "democracia", agindo, porém, táctica e sobretudo, estrategicamente, com a aparente liberalidade e exterior benquerença genérica que a ditadura tinha achado de todo inútil empregar na sua relação lata com a sociedade, se colocasse exactamente onde os grosseiros mecanismos de gestão do poder se haviam, por seu turno, colocado.

Ou seja: o que estaria mal no regime deposto não seria, de facto, o conteúdo (o conteúdo especificamente económico) da sociedade mas a sua forma política simplesmente instrumental: o modo funcionalmente político de garantir a sustentabilidade social e política precisa da base infra-estrutural que herdara no imediato intacta do anterior regime e que ela, insisto, pretendia de facto abrir mas não no essencial alterar.

Quem olha hoje-por-hoje em seu redor não terá muitas dificuldades para perceber que em resultado natural do modo como o regime de "democracia funcional ou inorgânica" pelo qual se rege hoje a sociedade portuguesa entende (e integra em si!) a ideia de democracia (i.e. usando-a como um "argumento social e político" para não mudar a História) que virá obviamente a possibilidade de renovar ou mesmo (por que não dizê-lo?) resgatar esta da prisão da própria arquitectura institucional do regime dito democrático.

Parece isto um paradoxo mas não é.

E seguirá parecendo-o enquanto não percebermos para que serve, realmente, a "democracia" hoje, a que forças e objectivos ou interesses históricos, sociais e políticos muito precisos ela está hoje efectivamente vinculada e que papel, sobretudo político (in/essencialmnte conservador e mesmo objectualmente reaccionário) é a que sua estrutura institucional chamemos-lhe 'simplesmente exterior, formal e muito em especial inorgânica' é hoje-por-hoje (as?) sistemicamente forçada a desempenhar na História.

Ora, é aqui que "entra" a DECO ou melhor: é aqui que entra a visão da realidade política onde ela e toda uma ampla série de instituições do tipo dela se podem inserir.

Intervindo como voz da sociedade civil e dando voz, num conjunto que se pretende tão amplo quanto estruturado, das aspirações e legítimos desejos dessa mesma sociedade civil.

Não servil: civil.

A saída para um regime de "demomorfia bloqueada" como aquele sob o qual vivemos hoje não está, como disse, nem na conformada (e estúpida) aceitação do status quo como 'o menor dos males' relativamente desde logo às ditaduras (às ditaduras formais, assumidas!) num qualquer projecto delirante de regresso histórica, social, política e até civilizacionalmente apócrifo a estas).

Está, sim, em projectos conscientes e sérios de "redialectização" da própria História assentes, diria eu, desde logo, na responsável e estratégica recuperação daquele sistema de base por comisões que fez a originalidade do nosso 25 de Abril.

Não se trata de qualquer programa de mais ou menos oblíqua "sovietização" da vida social e política nacional.

Não se trata tão pouco de tentar substituir dissimuladamente o sistema de democracia representativa por outro de democracia directa, na prática, impossível de concretizar por razões práticas que são, aliás, tão evidentes que me dispenso de enunciá-las aqui.

Eu diria que se trata, sim, de recolocar a Política na ordem (e com o papel orgânico) naturais e, por isso, certos.

Primeiro, de substraí-la do papel disfuncional que lhe foi apocrifamente distribuído de "ancilla economiae", i.e. de revestimento instrumental e/ou utensílio (e até expediente!) funcionais da economia, obrigada por definição a "argumentá-la socialmente" sempre que a própria realidade, segundo a visão dessa mesma economia, a isso pareça forçar; em seguida, de devolvê-la à direcção e sentido igualmente certos, ou seja, como atrás disse, redialectizando sistemicamente a vida política através do recurso nobre de conferir expressão não apenas imediata (ou tão imediata quanto possível) à voz capital da Cidadania, convertida idealmente em interlocutora orgânica do poder formal, assim impedido de ir muito longe à revelia da vontade dela e, sobretudo, contra a vontade dela como, muito em especial expressão verdadeiramente determinante.

Termino recordando que (i) o que faz a diferença entre democracia e mera "demomorfia" é que nesta, o poder é ciclicamente negociado com o conjunto da sociedade atrav´wes de eleições enquanto que na verdadeira democracia é o exercício do poder, não o próprio poder que o é, nessas mesmas eleições; e que (ii) uma democracia não se realiza quando o poder desce em vez de subir e que ela seguramente não se exerce quando o único modo de a sociedade recuperar fugazmente na prática o poder antes de voltar, como hoje sucede, a cedê-lo é (ao contrário das autênticas democracias que podiam ser teoricamente descritas como o regime ou regimes em que se encontra expressamente consagrado nas respectivas leis o direito de as sociedades escolherem livremente as formas que deve assumir o seu próprio futuro) o direito a escolher sem impedimento reconhecível as formas do próprio... passado.


[Imagem extraída com a devida vénia de diplo.uol.com.br]

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