Do "Público" de 06.09.09 consta uma espécie de (vamos chamar-lhe assim:) brevíssmo dossier sobre aquilo a que Alfred Sauvy chamou, em tempos, "as quatro rodas da fortuna", ou seja, o automóvel.
Sobre alguns aspectos ligados à sua produção industrial mas também (e, num certo sentido, mais importante ainda, como veremos) à sua política, concretamente em Portugal.
Pessoalmente, devo dizer que sempre vi no automóvel (e mais pós-modernamente noutro "móvel": no "tele"...) a ilustração acabada daquilo que entendo ser a grande maldição, o grande "cancro", das sociedades formalmente tecnológicas, como é, evidentemente, o 'caso' daquela em que vivemos.
Em Portugal mas não só.
Em resultado, com efeito, do modo como as sociedades capitalistas, designadamente as de 'capitalismo pós-industrial', integram por definição em si o conhecimento e/ou a tecnologia, isto é, como um proto-capital ou matéria-prima essencial no contexto do 'processo de re/produção tópica contínua' do mesmo (um proto-capital que só gera valor na condição de (a) permanecer rigorosamente privado e (b) gerar em seu redor uma quantidade significada de agnosia ou não-conhecimento que é o complemento indispensável e (chamar-lhe-ia eu, medindo bem as palavras:) "orgânico" da condição anterior; em resultado disso, com efeito, ia dizendo, é na prática inevitável que nessas mesmas sociedades capitalistas se verifique sempre um "décalage" natural crónico entre o conhecimento, desde logo na forma dos 'objectos' que a partir dele é possível gerar e a sociedade em geral.
Esta é, como tantas vezes tenho repetido, do próprio conhecimento mantida tão consistente quanto, em última análise, de facto, estrategicamente separada, primeiro, porque se contenta geralmente com os objectos do conhecimento e, depois, porque é do interesse "estratégico" de quem o detém como sua propriedade que ele permaneça, nas suas diversas formas, tão longe do público quanto possível, de modo a garantir que os níveis ou valores de "carencialidade estratégica" de onde emerge para o capitalismo o "valor" permanecem, por seu turno, activos exactamente como factor essencial dessa "valorização" (conversão em "valor") sistémica e caracteristicamente capitalista.
É com efeito, um embuste muito comum esse que consiste em afirmar que o capitalismo "gera riqueza".
Ele gera (obviamente!) riqueza: se a não gerasse a sua razão de existir pura e simplesmente desapareceria.
É um truísmo, afirmá-lo---ou recordá-lo.
Aquilo que os seus advogados e, de uma maneira geral, os seus propugnadores, porém, não dizem é que, para gerar riqueza, o capitalismo tem de, primeiro, gerar, "a toda a volta", digamos assim, "carência"--todo um sistema de "carencialidade significada" sem o que de um saber qualquer não é possível extrair o "valor" que o capitalismo exactamente como sistema e modelo ou paradigma socializado e estabilizado de produzir---o capitalismo como cultura ou como cultura de si próprio---nele intensivamente procura.
Ora, essa "carencialidade significada" possui, na prática, inúmeras formas.
Uma delas---a mais genérica delas, digamos assim: a "mãe" de todas as outras---consiste na "ausência educada" do próprio desejo individual e colectivo [do desejo, chamemos-lhe: cultu(r)al] de saber.
Ou seja: na aceitação implícita (aliás, secundariamente re/valorizada mais tarde como uma cultura em si) da divisão (ou confirmação ulterior da divisão existente) da sociedade em classes segundo a propriedade do conhecimento como tal.
Na chamada sociedade "de consumo" que é a expressão máxima desse singularíssimo "contrato (neo- ou pós-) social" já se pôde formar apocrifamente um "valor" e mesmo, no limite, como digo, toda uma "cultura" em torno desse princípio tácito de que uns, uma classe, fica com a propriedade estr(e)itamente privada do conhecimento, outros---outra classe---com os produtos inertes a partir dele continuamente gerados.
Cada um recusa, assim, na forma de um acto ou de toda uma acticidade cultu(r)al específica e tópica, a propriedade do que eu próprio chamo os "meios de produção social" de conhecimento, aceitando mais ou menos espontaneamente, a partir de um dado ponto do processo, negociá-la com outrem que, em troca, se obriga a prodigalizar "a toda a volta", no contexto muito específico de um mercado, os produtos que a partir dele for capaz de gerar.
É claro que (e essa é outra forma de carencialidade específica, mais concreta) ao prescindir do conhecimento (da propriedade natural da "ciência da ciência", por assim dizer) cada um prescinde, de igual modo, ipso facto, como cultura e/ou sempre na forma de um cultura, dos meios de aceder directamente ao real, quer simplesmente para 'conhecê-lo' (assim como às leis que o regem), quer para, idealmente e como dizia (e, sobretudo, valorizava) Marx, poder, se assim o desejar, mais do que "conhecê-lo", transformá-lo.
É claro que (e essa é outra forma de carencialidade específica, mais concreta) ao prescindir do conhecimento (da propriedade natural da "ciência da ciência", por assim dizer) cada um prescinde, de igual modo, ipso facto, como cultura e/ou sempre na forma de um cultura, dos meios de aceder directamente ao real, quer simplesmente para 'conhecê-lo' (assim como às leis que o regem), quer para, idealmente e como dizia (e, sobretudo, valorizava) Marx, poder, se assim o desejar, mais do que "conhecê-lo", transformá-lo.
O resultado é que, também na vida prática, na relação directa de cada um com os objectos, o carácter desigual (des-igual e também disfuncional) da divisão do trabalho (e da propriedade) capitalista se fazem sentir: se eu, com efeito, não conheço as leis que regem o real por detrás dos objectos em troca dos quais cedi a propriedade do próprio conhecimento que permitiu gerá-los também não sou capaz de proteger-me eficazmente dos efeitos que essas leis têm inevitavelmente sobre a saúde e sobre a própria vida humana como tal.
Para mim (estimulado como cultura ou pela própria Cultura a fetichizar os objectos---na medida em que aceito recebê-los alienados das leis objectivas que regulam o seu funcionamento natural e necessário); para mim assim "educado" e/ou "culturalizado", um automóvel não são os gases que expele nem---muito menos!---todo o ciclo de poluição que foi preciso desencadear ou gerar, criar, a fim de que o objecto-carro se tornasse materialmente possível); para mim assim cultu(r)al e politicamente condicionado, dizia, o automóvel é sobretudo (ou é na realidade!) um sinal "puro" de estatuto económico e social que eu aprendo a conduzir sem primeiro ter aprendido a contextualizá-lo em termos ambientais mas também sociais, cultu(r)ais, políticos, civilizacionais, etc.
Para mim, neste quadro, é indiferente que o automóvel tenha já há muito deixado de ser a resposta útil a uma necessidade objectiva e que ele se multiplique de forma literalmente descontrolada e infinita desequilibrando por completo a relação utilidade/inconvenientes.
Mais: na realidade, eu desejo que ele se multiplique!
Quero que haja muitas marcas, que haja muitos modelos; quero poder trocar regularmente de carro; quero ter o maior possível (ainda que---lá está!---seja também o mais poluente e aquele que obviamente mais inconvenientes cria numa cidade, sobretudo se for pequena e não tiver sido originalmente concebida para ter trânsito---e estacionamento---automóvel).
É perfeitamente comum eu associar... naturalmente (sou estrategicamente condicionado para fazê-lo e o condicionamento resulta---exactamente porque eu nunca fui educado para ser capaz de, aí sim, natural e espontaneamente, contextualizar cada objecto no saber que ele pressupõe e, que, pelo facto de existir, realiza!); é perfeitamente comum, dizia eu associar, então, naturalmente a ideia, já nem digo de afluência mas de "desenvolvimento" e de "Progresso" em abstracto ao volume dos carros e à sua quantidade num dado local.
E o mesmo se passa não tanto com as dimensões (aí a i/lógica funciona precisamente ao contrário...) com os telemóveis mas, como é (desgraçadamente!) evidente não só: na realidade, passa-se o mesmo com virtualmente tudo aquilo que sai da estrutura, chamemos-lhe: 'producional' assente naquela divisão prévia e... primária da sociedade em classes 'de saber' e/ou segundo o saber.
É parte (parte integrante) do preço a pagar pela transacção social e até civilizacional do conhecimento---da partilha (eu costumo designá-la por endocolonial) do saber.
É neste contexto que eu pessoalmente equaciono a (perversíssima!) política "europeia" de, sem outras medidas complementares "significadas" e "significadoras", subsidiar o abate de veículos velhos.
O próprio jornal que dá a notícia associa naturalmente (e demonstra mais ou menos estatisticamente) a relação existente entre esses incentivos e a compra de mais carros.
Tal como o modelo de "desenvolvimento" ocidental e especificamente "europeu" está concebido, é até, no imediato, socialmente desejável (e até, de um certo ponto de vista igualmente imediatista prioritário!) que o processo de incentivo se mantenha, sem o que, por exemplo (devido, repito, ao modo completamente disfuncional, insustentável e desregulado, não-planificado---insustentavelmente disfuncional porque completamente des-regulado---tipicamente capitalista, como a "Europa" concebe as ideias de "desenvolvimento" e/ou de "Progresso") os níveis de desemprego apenas podem aumentar!
Quer dizer: chegámos (teremos chegado) a um ponto em que a "euro-economia" apenas pode manter-se... "saudável" e, mesmo, no limite, viva (e com ela a toda a "sociedade funcional" chamada a protagonizar a "sua" economia" e que, em torno dela gravita) nse se mantiverem estáveis os factores de sustentabilidade objectiva do próprio modelo.
Ora, eu digo que termos aqui chegado apenas foi possível porque, como sociedade, deixámos que no plano económico (mas também político! Mas também político!" O fenómeno é na in/eassência, o mesmo, na economia" e na "política") exactamente porque, num caso como noutro, aceitámos (e fizemos inclusivamente disso literalmente toda uma "cultura") que a divisão social em classes nos privasse enquanto colectivo dos meios necessários para fiscalizarmos eficazmente os padrões de cultura assim como os respectivos fundamentos objectuais.
Para os fiscalizarmos a partir deles.
Para que pudéssemos como sociedade ter preservado (preservado politicamente) os meios que nos pudessem ter permitido possuir formas reconhecíveis e operativas de gerar uma inteligência estável e contínua da realidade---uma 'consciência orgânica' dela.
Vemos hoje (é o outro texto do informalíssimo dossier que comecei por citar) a Auto-Europa aflita a sofrer as consequência do afunilamento económico-social, temendo que o fim dos tais incentivos na Alemanha ditem a quebr de actividade da empresa e com esta os despedimentos.
É inevitável: redução da "biodiversidade produtiva" ou "producional" (uma região praticamente inteira a viver de uma única indústria) associada aos pressupostos disfuncionais que atrás tentei, mesmo de forma necessariamente muito sumária, descrever, só pode dar nisso.
E "isso" é apenas um "exemplo".
Um único.
[Imagem ilustrativa extraída com a devida vénia de raymond.cc]
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