Uma leitora do "Público---que, como eu (aparentemente, pelo menos) se interessam pelo prolongamento natural do diálogo cívico e civil (que, entre nós, à falta de um sistema político que o integre e lhe dê expressão ao mesmo tempo consistentemente instituicional e efectivamente operativa); pois, um leitora dessas, dizia, escreveu uma carta ao jornal (cf. "Público" de 02.09.08, "Quando é que se deixa de ser demasiado novo para se ser Mozart?" insurgindo-se contra o que entende ser uma excessiva "academicização formal" ou abusiva "doutorização" da sociedade portuguesa, levada a cabo sob patrocínio dos "pê-ésses" (ou do "pê-éssismo socrático") (ainda) vigente.
Segundo leitora em causa (Isabel P. Coutinho) estariam estes, no fundo, a educar para o desemprego ou, se me é permitida a blague a "educar o próprio desemprego" tornando-o uma alternativa de luxo mas (simultaneamente, de lixo!) intelectual ao trabalho.
Este em linhas gerais, o ponto de vista da leitora.
Agora, o meu.
O meu é este: é evidente que, numa primeira fase ou momento de observação dos factos, a leitora tem carradas de razão.
Como ex-professor no activo, hoje aposentado, tendo exercido nos últimos dez anos de prática docente numa cidade de dimensões médias do interior sul, tenho alunos que comigo fizeram o, por exemplo, o 12º ano nível superior (de Inglês, a disciplina que leccionei) e daí sairam directamente para... as obras, dar serventia.
Faz doer a alma, diria eu: tanto Shakespeare para ir, afinal, "acabar" a misturar cimento!
Tive outros (e outras) que do estudo da Revolução Industrial fizeram agulha directamente para uma caixa de supermercado e, pelo menos num caso, para as mesas de um café local em (impensável!) simultâneo com umas... aulinhas avulsas ministradas numa escola, igualmente local, substituindo uma outra colega nossa em licença de parto.
Tive outros (e outras) que do estudo da Revolução Industrial fizeram agulha directamente para uma caixa de supermercado e, pelo menos num caso, para as mesas de um café local em (impensável!) simultâneo com umas... aulinhas avulsas ministradas numa escola, igualmente local, substituindo uma outra colega nossa em licença de parto.
A minha ex-aluna e amiga S.M., com efeito, fez de facto parte do seu (esperançosíssimo, como se pode constatar!) início de carreira profissional (conheço-a desde o 7º ano e sempre a ouvi dizer que ia ser colega) a vender bicas e croissants aos mesmíssimos alunos aos quais, à tarde, ia ensinar que o caso possessivo no plural leva apenas o apóstrofo e que o plural de "man" não se faz com "s".
Belo (e funcionalíssimo!) acumular de tarefas, não é?
Pois é!
Ela também achava!
Qualquer pessoa, aliás, a quem contássemos casos de "sucesso" como este (que de facto o são! A "alternativa" é a outra que contei antes, envolvendo a carreira do P.P.) o acharia, com certeza...
O problema, porém, diria eu...
O problema é nós pensarmos as questões que envolvem a nossa vida hoje, em Portugal (no tal "Portugal pê-ésse" onde, "de um certo Portugal para baixo" tudo parece dar consistentemente errado, ao contrário, aliás, do que ocorre "desse mesmo Portugal para cima" onde tudo dáexactamenmte ao invés bem certinho---e de que maneira, com que metronómica regularidade!...); isto, sempre pensando nós, como sociedade (mental, cosmovisional, cultu(r)al e claro, política, ) a partir da interiorização consistente, estável, de um modelo supostamente democrático de pensar (a todos aqueles níveis); de pensar o real destinado a "ensinar-nos" (im) precisamente que a "democracia" é, afinal, em última análise, um modelo de legitimização formal e concretamente institucional do status quo objectivo e subjectivo" achado (e não tenhamos medo das palavras!) pelo modo de produção capitalista pós-industrial e, como eu lhe chamo, "neo-moderno" para eternizar-se no (efectivo!) poder das sociedades onde logrou instalar-se--e foram, aparentemente, todas desde a (social, política e civilizacionalmente trágica!) queda do "Muro".
DAQUELE, claro...
E por que digo eu que esta "democracia" (o democapitalismo) nos ensinou já (com sucesso, pelos vistos) a pensar a realidade (a História, desde logo) exactamente ao contrário, designadamente no caso presente da leitora do "Público" que se preocupa com o desemprego de (previsivelmente, ainda mais!) licenciados, se for avante a extensão da escolaridade obrigatória "pê-ésse"?
Não comecei eu por lhe dar razão?
Comecei, de facto---mas comecei precisamente tendo em conta aquela perspectiva disfuncionalmente "inversional" de que imediatamente atrás falo.
Ou seja: se nós imaginarmos (se aceitarmos, ao menos implicitamente) que o modelo dito democrático achado pelas sociedades do Ocidente para "fechar" ou "acabar", como ou sem Fukuyama, "antes" e "depois", a História (e, dentro dela, a Política e tudo o mais que sejam Ciências humanas), então é verdade que "já temos licenciados a mais" e que é quase um crime social e económico produzi-los em ainda maior número.
Agora, se conseguirmos (apesar dos Sócrates, das Lurdes Não-sei-quantos, dos Pedreiras, dos Lemos e tutti quanti...) repor a História (e a Política e tudo o mais) "pela ordem certa e natural") não nos será difícil perceber como o que há não serão licenciados a mais (que diabo! Será uma sociedade em que vedamos a sempre a uma certa "quota" de cidadãos o direito à Informação que deve constituir o nosso modelo tópico e utópico de idealidade social e política??!!).
O que há é, num certo sentido, aliás, muito preciso, economia---economocracia!---a mais ou, melhor dizendo, o que há é um modelo económico-social de "politicidade" (eu não chamo a isso Política!) obsessivamente centrado na funcionalização ou capitalicização intensiva e extensiva da realidade (no projecto de conversão obsessiva do real em valor) que gera artificial e, sobretudo, anti-humanisticamente essa aparente necessidade "estrutural" (e pior ainda: ideal) de atirar licenciados---cidadania disfuncional e excedentária "de carreira"!...---"pela borda fora".
Na realidade, se nós tivéssemos, não uma economia com um "revestimento instrumental politiforme móvel" em volta; se tivéssemos, pois, não uma sociedade para uma economia (para realizá-la e legitimá-la como imaginária "forma" ou "desenho" naturais da História") mas, como deveria, aí sim naturalmente, uma economia para uma sociedade, um paradigma de economicidade naturalmente concebido para servi-la e possibilitá-la; nesse caso, não teríamos seguramente pessoas "a mais" para um modelo de História e Sociedade, como hoje sucede.
Começaríamos (teríamos naturalmente) nunca conceberíamos teoricamente, numa palavra, um modelo de economia astuciosamente disfarçado de História, de historialidade, para um lado e as próprias pessoas como tal, para outro.
Porque é isso, numa palavra, o que está errado no capitalismo como "cultura" de si.
Numa sociedade civilizacionalmente sã (não digo 'perfeita', digo «sã») o valor das coisas nunca será gerado como acontrece no modelo capitalista a partir da criação de uma "raridade significada" (de uma rarefacção estratégica nuclear) dos objectos a fim de criar artificialmente a sua necessidade e inclusive utilidade.
O "valor" capitalista é isso.
Diz-se, com frequência, que o capitalismo "gera riqueza".
Gerá-la-á sim mas a partir da produção ou geração prévia, estratégica e (in) essencial de pobreza.
Se o pão nascesse espontaneamente nas árvores (como sonhavam os marinheiros de Cook...) deixaria, tão imediata quanto "naturalmente", de ter (ou de ser) "valor".
Ao "valor" assim concebido às avessas não interessa se aquilo a que chamamos 'fome' é, chamemos-lhe: uma condição, no fundo, natural das pessoas---uma lei biológica.
Interessa, sim, que há níveis ou valores úteis dela e que tudo o que se situar fora desses níveis e para além deles, não conta.
Se, por outro lado, para produzir um determinado objecto para satisfazer essa mesma fome for apenas necessário o trabalho de um homem, a referência de "valor" situa-se aí, não na possibilidade ou desejo de satisfazer a fome.
O problema da economocracia é que ela tende, sempre, por definição, a achar as respectivas referências de funcionaliade e, por conseguinte, de estr(e)ita viabilidade, dentro de si como problema técnico, não na realidade em geral designadamente social e humana como questão ligada à respectiva utilidade precisamente social e humana.
É por isso que é objectivamente correcto que há, de facto, uma economocracia (um regime efectivamente económico e instrumental ou pretextualmente social e político) cujo objectivo e fundamento estão configurados (e se esgotam) no propósito de satisfazer-se a si mesmo enquanto objecto técnico, não central, não efectivamente social; onde outros acham que há "democracia" mas não há.
Não tenho dúvidas em afirmar que "quem está humana, social e civilizacionalmente certo" é o socialismo---não a trágica paródia dele que está configurada no "socratismo" (ou sequer no "soarismo" que o antecedeu e cuja História real permanece, ainda hoje, completamente por fazer).
Para o socialismo, com efeito, o valor de um objecto não se mede nem se fixa exclusiva (e desumanizadamente!) pelo investimento em capital (constante e variável) que a respectiva produção implicou.
Mede-se, desde logo, pela sua aptidão para satisfazer as necessidadades essenciais do conjunto da sociedade em que a economia se insere e que ela serve) e mede-se, de igual modo, no plamo mediato pela capacidade desta para possibilitar objectivamente a sobrevivência material dessa mesma sociedade.
Ou seja: para o verdadeiro socialismo, como princípio, nãso basta que um produto seja técnica ou intrínseca---técnica--abstractamente "barato".
Esse "barato técnico" para o socialismo autêntico inexiste: é uma pura (ou, pelo contrário, uma impura) abstracção.
Se ele conduzir à desarticulação e à desintegração final do mercado visto como "objecto social", esse sim: puro (como está, hoje-por-hoje, de forma aguda, crítica---de "crise"...---a acontecer nas sociedades ditas "ocidentais" em resultado do modo "socialmente disfuncional" como elas integram em si, por definição, o conhecimento na forma, desde logo, de tecnologia); se, dizia, a fixação da "acessibilidade" ou "barateza" dos produtos conduzir, de modo inevitável, à desarticulação da própria sociedade como tal, a começar pela desarticulação do mercado como componente demonstravelmente instrumental dela, essa "acessibilidade" ou "barateza" deixam de ser "valor" e passam , naturalmente, à condição, insisto, natural, de "erro" ou "disfunção".
É assim que eu acredito convictamente que se pensa em Democracia: na sociedade humana como referência nuclear de habitação e organização, teórica e prática, da História.
Falemos nós de produtos ou direitos---como o de cultivar-se ou adquirir (como prefiro dizer) a propriedade efectiva dos meios de acesso à realidade, à respectiva produção.
Dito de outro modo: à propriedade dos meios para transformar livre e conscientemente essa mesma realidade sempre que a necessidade de fazê-lo humanamente se imponha à consciência e inteligência da História que, por essa via e a partir dessa perspectiva nuclear, nos é, igualmente, possível que possuamos.
Concluindo (com um brevíssimo regresso ao ponto de partida destas notas, i.e. àquela "questão" de haver hoje "licenciados em excesso", entre nós): não é democrático dizer que há ou que possa sequer haver pessoas educadas "a mais": aquilo que, volto a dizer, é preciso que entendamos que há por detrás dessa singularíssima 'ilusão de óptica' (ou de ética...) cosmovisional, chamemos-lhe assim, é um modelo de sociedade onde alguns de nós pura e simplesmente não cabem para que o resto da sociedade (para que a sociedade) siga sendo material e/ou objectivamente... possível.
Só que, não tenhamos ilusões, a isto não se chama nem "saúde histórica, social, política e civilizacional" nem (muito menos!) Democracia...
[Imagem extraída com a devida vénia de 12anoturmaf.estilosdevida.googlepages.com]
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