Como eu, quero dizer: como eu durante vários anos, fumei.
Depois de uma longa e acidentada luta com o vício, eu consegui vencê-lo.
O meu amigo de que falo, não.
Incapaz de impor-se-lhe, optou por tentar encontrar uma espécie de alternativa, existencialmente tranquilizadora, num alibi para justificar deixar de fazê-lo, parecendo (a si próprio, pelo menos---é, definitivamente, a isto que em inglês se chama, de forma tão clássica quanto eloquente, "wishful thinking"...) ter finalmente encontrado razão válida para tanto.
O alibi em causa (revelo-o eu, aqui, agora que ele não nos está a ouvir...) nem sequer é particularmente original: eu próprio considerei, aliás, usá-lo mais de uma vez, sempre que recaía e diz mais ou menos isto:
"A importância de deixar de fumar revela-se, em última instância, no mundo de hoje, muito (mas mesmo muuuuito!) relativa.
Estamos, com efeito, obrigados a viver, enquanto sociedade, numa situação de estável (e, sobretudo, praticamente total) vulnerabilidade, desoladoramente indefesos, perante toda uma série de eficientíssimas e omnipresentes fontes poluidoras que vão dos automóveis aos electrodomésticos, das indústrias em geral àquelas formas que cada um de nós, de modo autónomo e estritamente pessoal, ainda se lembra de criar.
Então, nesse 'caso', de que efectiva relevância se reveste um vício a menos?...
Na prática, é apenas a redução de uma das incontáveis fontes!
Permanecem activas todas as outras..."
Claro que é difícil discutir com quem não pretende, efectivamente, mudar a realidade mas tão somente, 'argumentar' a sua permanência e a sua estr(e)ita imobilidade---e, pior ainda, para além disso: justificar uma e outra.
Todos nós o teremos já tentado---e com o 'sucesso' que facilmente se pode prever, antes mesmo antes de tentá-lo (passe o relativo pleonasmo...)
Ora, há um coisa que já por diversas tenho repetido, aqui e de resto também sem ser aqui: é, afinal, assim---(im!) precisamente assim!---que funciona aquilo que, entre muitos de nós, igualmente sem a menor dificuldade e de forma completamente a-critica, passa, muitas vezes, por "democracia".
Uma visão (eu chamar-lhe: inversional e) completamente disfuncional do mesmo (in!) exacto teor.
De forma expressa, terá sido Churchill quem melhor e mais definitivamente descreveu e exprimiu essa "visão" básica, primária, falaciosa, (des?) estruturalmente conservadora, e, a meu ver, intrinsecamente in-essencial da realidade que consiste em compará-las sempre com outras piores a fim de criar a ilusão de um bem que, todavia, não se sustém sem o amparo imprescindível do próprio mal de que é suposto estar, todavia 'obrigado' a ser por si só, em todos os casos, o mais completo e absoluto dos contrários.
Segundo ele, a democracia estaria definitivamente nesse caso: seria, pois, o pior dos males políticos---exceptuando, obviamente... todos os restantes.
Como frase, é brilhante.
O mau pintor que (como Hitler, seu adversário electivo durante a Batalha de Inglaterra...) e medíocre escritor, foi Churchill---Churchill que foi, porém, além disso, um político (no meu léxico pessoal, caberia mais naturalmente numa categoria própria que identifico especificamente como a dos... "politicões", algo que apresenta, de facto, algumas semelhanças exteriores com a dos "Políticos-com-maiúscula", revelando-se desta, todavia, na maior parte das restantes características e atributos, de todo divergente); mas, dizia eu, Churchill que foi (como, entre nós, Mário Soares ou, nessa nossa "segunda pátria generacional" que é ou foi a França, o "son ami" Mitterrand, um... "politicão" hábil e inquestionavelmente astuto); Churchill tinha, ao contrário de Soares e como diria um inglês, seu compatriota, além da argúcia, "a way with words", "way" esse de onde saíu o tal "mot d'esprit" que ainda hoje funciona como a "menina dos olhos... argumentativos" de tudo quanto é... "democrata funcional" onde quer que um destes (e são muuuuitos, ao todo, espalhados pelo mundo inteiro...) se encontre.
Relativamente ao hoje clássico 'mot d' esprit' churchilleano, é, pois, caso para dizer: "A frase é boa, é---a ideia... é que nem por isso..."
Isto é, se o mundo devesse deslocar-se como querem os "relativistas inversionais" que se revêm na subtilíssima "consigne" churchilleana, o mundo, na realidade, não... avançaria: estaria continuamente em deslocação, correndo, sim, mas para... o seu próprio passado.
Quer dizer: no fundo, por debaixo do seu (evidente!) brilho retórico imediato, aquilo que Churchill propõe é um plano inquestionavelmente aliciante e exteriormente muito sedutor mas para a desistência e o conformismo.
É, de resto, (im) precisamente assim que a maior parte dos cada vez mais desencantados cidadãos das democracias "instrumentais" (ou mesmo---por que não?---das democracias "pretextuais" de hoje) de hoje se vêem a si mesmos e ao seu lugar num universo histórico, civilizacional e político no qual deixaram, no essencial, já há muito de 'investir existencial e também politicamente' porque há já igualmente muito que deixaram também de poder ter qualquer reconhecível controlo sobre ele, quer no plano da indispensável vigilância crítica, atenta e permanente (sem a qual a democracia pura e simplesmente não existe!), quer no do controlo objectivo, material, concreto, dos actos relativos ao exercício do poder político em sentido estrito (que daquela essencial vigilância democrática deve naturalmente, em todos os casos, resultar).
"Para quê mudar?"---argumentam, pois, na prática, a uma só voz, os "relativistas inversionais" de todas as cores e matizes: "No fim de contas, melhor que "isto" não há! Portanto..."
O meu amigo, na sua complicada "vidinha" de 'adicto legal' ecoa-os, por seu turno, pontualmente: "Para quê, afinal, continuar a lutar num detalhe que, exactamente por sê-lo, em nada de verdadeiramente essencial vai, em termos reais, concretos, alterar o quadro negativíssimo que me (e nos) rodeia e cerca (e assedia!) a cada momento e a cada passo que damos no nosso em geral ambientalmente agressivo e hostil dia-a-dia?..."
Pois (como se já não bastassem eles!) não estão sós, têem pelo contrário nobilíssima companhia, o meu amigo fumador e os "relativistas inversionais" mais ou menos "neo-churchillianos", "desiludidos da política", que atrás descrevo.
Ainda recentemente, o "Público" nos trouxe, com efeito (cf. "Público" de 05.09.09, texto intitulado "O caso de Manuela Moura Guedes") novo (e 'nobre') "exemplo: o de Vasco Pulido Valente que, na sequência do recente "caso JN6" da TVI (programa onde, de resto, pessoalmente participou, como se sabe) veio a público, em termos práticos, "justificar" o lastimável trabalho de manipulação e grosseiríssimo 'populismo' que, para a estação em causa, configurava, porém, um noticiário genuíno.
Diz Pulido Valente mais ou menos isto: "Incomodava-os o Jornal Nacional e o tipo de (chamemos-lhe...) "jornalismo" que lá era (com a minha objectiva colaboração, de resto) feito" ('fabricado', 'cozinhado', diria eu, mas enfim, pronto).
"Ah! Mas isso"---prossegue ele---"é porque vocês não são como eu---que vejo e conheço "tudo-quanto-é-Walter-Cronkite-Chet-Huntley (Chet WHO??!!)-e/ou-David-Brinkley" por esses Estados Unidos fora!"
A velha doença nacional---o pessoano, atávico e característico nacional-provincianismo---numa palavra, pois!..."
Ora, eu não conheço---humildemente o admito---o jornalismo "à Cronkite" ou à "Chet Huntley" ("whatever-ever a Chet Huntley may be!").
Não tenho francamente nem pachorra nem feitio sequer para a consagradíssima C.N.N. (não a do "Albino Castanho", a C.N.N. mesmo!) que me chega via cabo num pacote de onde constam, aliás, "coisas" nos diversos sentidos, muito mais próximas, mais interessantes e incomensuravelmente mais relevantes para mim.
Não me interessa, pois, minimamnte o tipo de 'jornalismo' de que Pulido Valente se serve para legitimar aquele, incontestavelmente trapalhão, afascistado e popularucho video-tablóide em que ele próprio, um intelectual permanentemente enfastiado com a mediocridade nacional, regularmente colaborou e agora tenta, de algum modo, legitimar (legitimando-se a si mesmo, de caminho) a posteriori.
Não o conheço---mas se era parecido com "aquilo", não me serve.
Não era por haver outros igualmente (no mínimo) discutíveis do ponto de vista da sobriedade, da seriedade e da isenção e rigor informativos assim como da perspectiva do respeito devido à inteligência e à autonomia crítica de cada um, que aquele passa automaticamente à condição de "bom".
De bom... "por tabela" ou "por ricochete"...
... Tal como não é por haver fábricas actuando em condições criminosamente ignoradas pelas autoridades ambientais e/ou um uso (autenticamente incivilizado!) do automóvel, estrategicamente incentivado por lei a multiplicar-se "ad infinitum" com o pretexto civilizacionalmente irresponsável do fomento do emprego (que é, sobretudo, em termos práticos, o do reforço e da intensificação contínuos de um (des) modelo de "crescimento" objectivamente insustentável e colectivamente suicida)---que ficam satisfatoriamente 'legitimados', excepto para uns quantos compatriotas nossos "com a cabeça, pelos vistos, lastimavelmente encalhada na História", os vícios e adicções individuais, supostamente negligenciáveis, pois, quanto mais não seja... "por comparação"; tal como não é tão pouco, ainda e sempre, por haver regimes ainda piores que aquele em que temos hoje-por-hoje de viver, que este último fica, por seu turno, menos mau e tem ainda, "par dessus le marché", de ser declarado "tacitamente imelhorável" e/ou objectivamente "in-corrigível".
Enquanto nos obstinarmos, com efeito, em nos pormos teimosamente... "de cabeça para baixo" para pensar, seja a nossa História comum, sejam os nossos vícios mais pessoais e até íntimos [há um modo-de-(não!)-ver que é comum a todos esses domínios da vida e que tende a passar, a prazo, exactamente pela prática intensiva e constante, a "cosmovisão"]; enquanto nos obstinarmos, dizia, pois, em, em vez de lutarmos determinadamente para erradicar os que não podemos deixar de perceber que são maus, procurar sempre justificar os diversos status quo que nos incomodam, lesam ou até politicamente degradam e envergonham através do recurso indigno à comparação... "legitimadora" com outros piores ainda; enquanto assim for, dizia, continuaremos fatalmente condenados a fazer o nosso percursozinho pessoal e colectivo pelo Tempo e pela História, inevitavelmente conformadinhos e cabisbaixos, em direcção a um passado onde havemos todos previsivelmente de perecer, sempre indulgentes e contentinhos, banhando-nos eternamente na ilusão de termos feito... "a pior coisa possível... tirando todas as restantes".
Senão mesmo tendo feito, afinal, "não apenas a única mas também a melhor de todas as coisas possíveis", numa trágica paródia do lúcido, esclarecido e caracteristicamente impiedoso "optimismo crítico" voltaireano...
So que (para o caso de não terem reparado... ) Voltaire e o seu imenso "Candide" já morreram, feitas as contas, há um tempinho...
[Imagem extraída com a devida vénia de marriedtoaballer.com]
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